sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Mangue, homens e caranguejos em Josué de Castro: significados e ressonâncias


Djalma Agripino de Melo Filho

Médico epidemiologista, mestre em saúde comunitária pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Rua Nunes Machado, 119/603, 50050-590 Recife — PE Brasil, djalmaf@truenet.com.br


Pretende-se analisar, na obra de Josué de Castro (1908-73), médico e geógrafo recifense, reconhecido internacionalmente pela publicação de Geografia da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951), a eclosão da metáfora homem-caranguejo, criada para designar uma nova espécie de homem que habitava os mangues do Recife. Procede-se a uma releitura do texto de onde provém a metáfora com o propósito de revelar a existência subjacente de outras figuras, como a sinédoque e a metonímia. Busca-se ainda compreender duas recentes atualizações da metáfora original, a partir da hipérbole homem-gabiru e da personificação caranguejo-com-cérebro. O olhar recaiu funda-mentalmente sobre três obras de Josué de Castro. Na primeira delas, Documentário do Nordeste, publicada inicialmente em 1937, o autor descreve o ciclo do caranguejo, processo real que forjará a maiêutica da metáfora homem-caranguejo. A segunda, Fatores de localização da cidade do Recife, constitui a tese com a qual se efetivou, em 1947, na cátedra de geografia humana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Trata-se de um ensaio geográfico sobre o Recife onde se destaca o mangue como paisagem integrante da cidade, desde seu surgimento. A terceira delas, Homens e caranguejos, um romance autobiográfico publicado em 1967, retoma temas e textos das outras duas obras.



O mangue como cenário

Já no século XVII, os nobres de Olinda atravessavam o Recife, "pisando em ponta de pé, receando os alagados e os mangues" (Mello, 1987, p. 35). Eis o medo do desconhecido, implicando vigilância, pois o perigo ali se encontrava, e desprezo pela paisagem. Esses sentimentos negativos em relação ao mangue, cultivados pelos colonizadores, deixaram marcas que até hoje persistem no imaginário social do recifense. O mangue é sinônimo de zona de prostituição, é lugar a ser poluído com o lixo urbano, além de constituir espaço potencialmente a ser aterrado sob os olhos da especulação imobiliária.

Coube a Josué de Castro, percorrendo de forma multi ou transdisciplinar os diversos âmbitos da ciência, ética e estética, destacar aspectos positivos da paisagem, retirando desta maneira o mangue do "mangue" onde se encontrava, embora isto não signifique dizer que nas obras estudadas ele apareça sempre como um espaço paradisíaco.

A ligação entre o mangue e Josué de Castro inicia-se na infância. Seria um exagero afirmar que o geógrafo e médico tenha nascido no mangue, mas isso quase se verificou, segundo o relato autobiográfico:

Nasci (no Recife) numa rua que tinha o nome ilustre de Joaquim Nabuco, o grande abolicionista dos escravos, nos tempos do Império. A casa em que nasci tinha ao lado um grande viveiro de peixes, de caranguejos e de siris. Se não nasci mesmo dentro do viveiro, como os caranguejos, já com dois anos estava dentro dele. Escorreguei um dia no barro de suas margens e fui retirado de dentro de suas águas meio afogado. Daí em diante, mergulhar nas águas do mangue tornou-se um hábito. Mudei-me depois para outro bairro mais perto do rio. ... Bem ao lado da casa começava a zona compacta dos mocambos, das choças de palha e de barro, amontoadas umas por cima das outras num enovelado de ruelas, numa anarquia desesperadora. As casas entrando por dentro da maré, a maré invadindo as casas. Os braços do rio passando pelo meio da rua e a lama envolvendo tudo (Castro, 1967, pp. 16-8).

Essas imagens, além de influenciarem o modo de pensar e de agir de Josué de Castro, impregnarão toda sua obra e o acompanharão até sua morte, em 1973, quando se encontrava exilado em Paris, por força de ato da ditadura militar brasileira (1964-85).

Criei-me nos mangues lamacentos do Capibaribe cujas águas, fluindo diante dos meus olhos ávidos de criança, pareciam estar sempre a me contar uma longa história. ... Eu ficava horas e horas imóvel sentado no cais, ouvindo a história do rio, fitando as suas águas correrem como se fosse uma fita de cinema. ... Foi o rio o meu primeiro professor de história do Nordeste, da história desta terra quase sem história. A verdade é que a história dos homens do Nordeste me entrou muito mais pelos olhos do que pelos ouvidos. Entrou-me por dentro dos meus olhos ávidos de criança sob a forma destas imagens que estavam longe de serem sempre claras e risonhas (idem, ibidem, pp. 18-9).

É pelo olhar que a alma tem acesso ao mundo, diz o pintor Leonardo da Vinci (1452-1519): "É janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento" (apud Chauí, 1993, pp. 31, 33). Olhar "é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si". Expondo nosso interior para o mundo, fala-se, pois, em "janelas da alma".

Sem descartar o risco de reducionismo, parecem haver na obra de Josué de Castro, pelo menos naquelas onde o assunto é abordado, quatro olhares sobre o mangue que serão aqui focalizados: o mangue como ancestral do Recife; o mangue como fábrica de vida e exemplo de equilíbrio ecológico; o mangue como fonte de conhecimento; e o mangue lugar dos "excluídos sociais".

Considerando o primeiro aspecto, Josué de Castro demonstrará que o mangue não constitui apenas uma paisagem que compõe o Recife, mas sim, em que pese os incontáveis aterros, realizados ao longo de mais de quatro séculos, o próprio substrato de onde surgirá o Recife. Nesse caso a relação entre ambos, numa perspectiva filogeográfica, envolve a produção de um signo.

Peirce (1999) distingue três tipos de signos: ícone, índice e símbolo. Um ícone, embora tenha semelhança com seu objeto, não apresenta conexão física com ele; um índice, embora não seja semelhante ao objeto, guarda com ele uma relação de contigüidade, ou seja, uma conexão física que a mente do interpretante registra e, por último, um símbolo que, embora não tenha liame real com o objeto, expressa uma relação mentada.

Se, numa seqüência temporal, o mangue, ao ser aterrado, foi formando o Recife, a presença deste constitui condição suficiente para atestar a presença daquele. A relação de causalidade subjacente ao índice é expressa em Josué de Castro (1948, pp. 15, 16, 11) quando afirma que "Não há, pois, a menor dúvida, que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife, foi criação dos mangues." Neste caso, o Recife, no âmbito semiótico, poderia ser considerado um índice de mangue:

Foi nesses bancos de solo ainda mal consolidado — mistura ainda incerta de terra e água — que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro da água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas.

O Recife é filho dos mangues. Um filho produzido pela cultura que, muitas vezes, deseja apagar os indícios que ainda teimam em se reproduzir.

Enfim, o que não se pode negar é que a cidade se projeta na paisagem como um signo de vitória cultural sobre o natural e merece sempre a mais cuidadosa atenção daqueles que se dedicam a ler, nas amplas páginas vivas da superfície da terra a interminável história que a Humanidade ali escreve ininterruptamente.

Numa segunda perspectiva, Josué de Castro (idem, ibidem, p. 19) vê o mangue como nicho ecológico, onde ocorre intensa atividade biológica. A partir de sua percepção fitogeográfica, o mangue é concebido como "um tipo especial de associação vegetal tipicamente anfíbia, que prolifera nos solos frouxos e movediços dos estuários, dos deltas, das lagunas litorâneas — solos de transição entre os tratos de verdadeira terra firme e os ocupados permanentemente pela água — nas regiões equatório-tropicais do mundo".

É, portanto, nessa paisagem, que acompanha o litoral brasileiro, indo do Amapá a Santa Catarina, onde se verifica uma curiosa ecologia (oikos, em grego = casa). A falta de firmeza do solo, que poderia ameaçar a vida das plantas, é contrabalançada pela existência de raízes adventícias ou raízes-escoras que oferecem sustentabilidade ao vegetal. O ambiente é rico em material orgânico, por isso acontece ali grande atividade biológica e há escassez de oxigênio. Nesse caso, estabelece-se uma economia, pois os pneumatóforos suprem essa carência.

Afora a própria vegetação de mangue, caracterizada principalmente por cinco espécies: a Rhizophora mangles, L., da família das rizoforáceas; a Laguncularia racemosa, Gaertn, e a Conocarpus eretus, Jacq., da família das combretáceas, a Avicennia tomentosa, Jacq. e a Avicenna nitida Jacq., da família das avicenáceas (Castro, 1948), lá estão bromélias, orquídeas, liquens e algas marinhas que se fixam nos troncos das árvores abrigando microorganismos e invertebrados marinhos que servem de alimento para outros animais. As ostras, fixadas nos troncos e raízes, aparecem em grandes populações. Entre os crustáceos, encontram-se o caranguejo (Ucides cordatus), o guaiamum (Cardiosoma guanhumi), o siri (Callinectes sapidus), o camarão-branco (Peneaus schimit) e o camarão-rosa (Peneaus brasiliensis). Os dois últimos compõem a fauna temporária, pois só vivem no mangue durante a fase jovem para se protegerem dos predadores. Entre os moluscos, encontram-se a unha-de-velha, o sururu, o mexilhão e a lambreta. Seguindo o fluxo das marés, tainhas, baiacus, bagres e linguados também visitam os mangues, além das garças, mergulhões, gaivotas e socós (Carneiro Leão, s. d.).

Os caranguejos, entretanto, são um dos mais conhecidos habitantes dos mangues. Pertencem ao filo Arthropoda e à classe Crustacea, alimentam-se de detritos e são importantes para a dinâmica do manguezal, pois "cavam buracos, formando verdadeiros túneis, provocando a aeração da lama, facilitando a circulação da água e fornecendo proteção a outros animais. Quando cavam estes túneis os caranguejos promovem a renovação de nutrientes de camadas mais profundas da lama, permitindo a reutilização destes nutrientes por plantas e outros microorganismos" (idem, ibidem).

A questão ecológica dos mangues é assim destacada por Josué de Castro (1948, p. 23):

o mangue abriga e alimenta uma fauna especial, formada principalmente por crustáceos, ostras, mariscos e caranguejos, numa impressionante abundância de seres que pululam entre suas raízes nodosas e suas folhas gordas, triturando materiais orgânicos, perfurando o lodaçal e umidificando o solo local. Muitos desses pequenos animais contribuem também com suas carapaças e seus esqueletos calcários, para a estruturação e consolidação do solo em formação. Desempenha também essa fauna especializada um importante papel no equilíbrio ecológico da região ocupada pelo homem, ao possibilitar recursos de subsistência para uma grande parte das populações anfíbias que povoam aqueles mangues, vivendo nas suas habitações típicas — os mocambos.

Outra imagem fascinante registrada por Josué de Castro (1967, p. 15) é a do mangue como uma grande mãe parindo vida e terra de suas entranhas:

...os homens vêem, até hoje, crescerem diante de seus olhos, as coroas lodosas, e transformarem-se, pela força construtora dos mangues, em ilhas verdejantes, fervilhantes de vida. E vêem, assombrados, proliferarem em torno das ilhas maiores, outras pequeninas, como saídas durante a noite de seu próprio ventre, em misteriosos partos da terra que o mangue milagrosamente ajuda.

Numa terceira incursão ao mangue, o médico e geógrafo Josué de Castro (ibidem, p. 12) também lança seu olhar investigador, que rompe com os liames da cotidianidade e dirige-se à dimensão universal, conferindo um estatuto de cientificidade à investigação das causas da fome:

...não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite.

Durante toda vida, Josué de Castro procurou unir três perspectivas para compreender o problema da fome: a científica, onde explicou a origem do mal que aflige a humanidade; a pedagógica, onde se dedicou a formar gerações de estudantes, principalmente no campo da geografia e da nutrição; e a política, onde, além de denunciar as precárias condições de vida da imensa maioria populacional que habita o planeta Terra, planejou e executou ações que visavam minimizar o sofrimento humano produzido pela fome. Do ponto de vista científico, destacam-se a amplitude e a diversidade dos meios e instrumentos de trabalho utilizados por Josué de Castro para perquirir muitas vezes um único objeto: a fome e suas conseqüências. Com o propósito de alcançar a dimensão inter e transdisciplinar, procurou integrar, do ponto de vista teórico-metodológico, conhecimentos advindos, pelo menos, da geografia, biologia, medicina, nutrição, higiene, epidemiologia, história, sociologia, antropologia, ecologia, economia e política.

Na quarta e última perspectiva, aqui destacada, Josué de Castro dedicará uma enorme atenção ao mangue como lugar dos "excluídos sociais". Considerando que o "espaço urbano é diferentemente ocupado em função das classes em que se divide a sociedade urbana" (Santos, 1987, p. 83), os mangues recifenses, sob imposição do olhar excludente do capital, abrigaram ao longo do tempo uma significativa população de seres humanos expulsos pelo latifúndio e pelas secas:

...assim vai o Recife crescendo com uma grande população marginal que vegeta nos seus mangues em habitações miseráveis do tipo dos mocambos. É que o Recife — a cidade dos rios, das pontes e das antigas residências palacianas, é também a cidade dos mocambos — das choças, dos casebres de barro batido a sopapo com telhados de capim, de palha e de folha-de-flandres. Além dos que emigravam da zona do açúcar, por motivos vários, deve-se acrescentar os que desciam expulsos pelas secas do outro Nordeste, o do sertão semi-árido... (Castro, 1948, pp. 73-4).

Distante da visão telúrica, guardada desde a infância, o olhar indignado de Josué de Castro chegou a vislumbrar o mangue como um terrível monstro que com seus tentáculos prendia os homens, excluídos da pólis, para lhe sugar o corpo e a alma. De conquistado, o mangue tornava-se conquistador. Desprovidos da força hercúlea, os habitantes dos manguezais, numa perspectiva pessimista, jamais se libertariam dessa escravidão.

A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues — homens e caranguejos nascidos à beira do rio — à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues, com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e a densa rede de suas raízes perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando tentáculos invisíveis por dentro de sua carne, por todos os buracos de sua pele: pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos.

E, assim ficavam todos eles, afogados no mangue, agarrados pelas ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhes sugavam todo o suco da sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estranha, os mangues iam, assim, se apoderando da vida de toda aquela gente, numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa área de terra — esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife — estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudo nesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador: tanto a terra como o homem (Castro, 1967, pp. 13-4).

A emergência da metáfora homem-caranguejo

O principal mérito de Josué de Castro talvez tenha sido o de revelar o fenômeno da fome para a humanidade, desnaturalizando-o e demonstrando que foram as relações sociais e econômicas, estabelecidas entre os homens, que o produziram e o mantêm. Em estilo autobiográfico, ele confessa que logo cedo entrou em contato com a fome nos alagados, nos mangues do Capibaribe e nos bairros miseráveis do Recife.

Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios — habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues e de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com suas duras carapaças também enlambuzadas de lama (Castro, 1967, pp. 12-3).

Este excerto oferece substrato suficiente para dar início às reflexões de natureza lingüística sobre as relações dos homens (que vivem nos mangues) com os caranguejos. Segundo Guiraud (1960), a criação de palavras ocorre por quatro mecanismos: onomatopéias, influência estrangeira, alterações morfológicas e mudanças de sentido. Embora não apareça, a expressão homem-caranguejo encontra-se implícita no texto ora analisado. Ela constitui uma inovação, um excesso que transborda o texto, por isso é expulsa dele para ganhar "vida própria".

Do ponto de vista morfológico, houve criação de uma palavra composta, formada por dois substantivos (homem + caranguejo) para expressar a idéia de uma determinada espécie de homem. Não havendo perda da integridade silábica, a composição ocorreu por justaposição: homem caranguejo ou homem-caranguejo.1

Na perspectiva semântica, Ullmann (apud Guiraud, 1960) afirma que a inovação lingüística ocorre por: a) transferência de nome por semelhança de sentido; b) transferência de nome por contigüidade de sentido; c) transferência de sentido por semelhança de nome; e d) transferência de sentido por contigüidade do nome. Não havendo, pois, semelhança ou contigüidade dos termos homem e caranguejo, o processo de inovação não se enquadra, portanto, nos itens "c" e "d". Restam, pois, duas possibilidades.

A primeira refere-se à transferência de nome por semelhança de sentido (a) que tem a metáfora como figura emblemática e pode ser de três tipos: substancial (semelhança de forma, de função ou de situação); sinestésica e afetiva. Antes de sua "expulsão", como metáfora, a associação homem e caranguejo subsistiu no texto por força de alguns termos que criaram um liame entre homem e caranguejo: "fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo" ou "nunca mais se podiam libertar desta crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos". Em outra passagem, Josué de Castro (1967, p. 13, grifos do autor) reforça essa semelhança: "Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando, em tudo, aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como caranguejos para poderem sobreviver. Parados com os caranguejos na beira d'água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos." "Parecidos com...", "semelhantes a ..." e "como..." constituem, entretanto, "presilhas lingüísticas" que, apesar de evocarem a metáfora, impedem a sua parturição, o seu nascimento. Nesse caso, considerando-se "homem" e "caranguejo" como dois conjuntos onde o primeiro homem seria representado pela letra A e o segundo caranguejo, pela letra B, apareceria a relação A @ B (homem semelhante a caranguejo).

Em outro momento do texto, não se encontram as referidas "presilhas lingüísticas" e isto facilita a parturição, sem fórceps, da metáfora. Josué de Castro registrou a existência de uma interseção entre os homens (que vivem nos mangues) e os caranguejos, aqueles são "anfíbios, habitantes da terra e da água" e são "meio homens e meio bichos". Avulta-se aí uma metáfora, substancial segundo a classificação de Ullmann (apud Guiraud, 1960).

A metáfora é uma figura de linguagem que "consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito entre um traço característico de A e o atributo predominante, atributo por excelência, de B, feita a exclusão de outros, secundários por não convenientes à caracterização do termo próprio A" (Garcia, 1985, p. 85). Considerando a convenção anteriormente adotada, agora a relação seria de interseção: A Ç B (homem-caranguejo).

A partir dessas digressões semânticas ou semiológicas, pode-se concluir que durante a formação das expressões homem caranguejo ou homem-caranguejo, houve transferência de nome por semelhança de sentido, daí o aparecimento da metáfora. Todavia, e sem muito esforço, pode-se levantar a hipótese de que também existiu transferência de nome por contigüidade de sentido, referida no item b da classificação de Ullmann (apud Guiraud, 1960).

Josué de Castro assinala que há uma convivência espacial dos homens (que vivem nos mangues) com os caranguejos ou até mesmo uma relação causal entre ambos, sobressaindo-se uma relação de contigüidade. Quando ele afirma que a lama dos mangues do Recife é "povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo", possivelmente está destacando a matéria (caranguejo) que forma o objeto (homem) ou empregando a espécie (homem-caranguejo) pelo gênero (homem). Nesse caso, a expressão homem-caranguejo carrega consigo uma sinédoque, pois há uma relação real de natureza quantitativa entre os conjuntos A (homem) e B (caranguejo): A É B ou B Ì A (o homem contém o caranguejo ou o caranguejo está contido no homem).

O hibridismo semântico de natureza mentada desemboca na metáfora homem-caranguejo, tal como ocorre com laranja-pêra, banana-maçã, manga-espada, no reino vegetal; ou peixe-boi, peixe-espada, no reino animal, enquanto o de natureza real produz a sinédoque, tal como escola-oficina, navio-escola. O "hibridismo biológico", entretanto, reforça a sinédoque, pois são "seres humanos que faziam assim irmãos de leite dos caranguejos". Do ponto de vista matemático, a relação de inclusão A É B ou B Ì A é também uma relação de interseção A Ç B, uma vez que B é subconjunto de A. Todavia, na perspectiva semântica, uma e outra encontram-se distanciadas, pois a inclusão ancora-se na realidade exterior, enquanto que a interseção só acontece na mente do interpretante.

Significado do homem-caranguejo

A apreensão do significado da metáfora homem-caranguejo pode ser feita a partir da diferença entre o homem particular e o indivíduo. Marx distinguia, segundo Heller (1991), o homem particular como pura existência e o indivíduo como o ser que desenvolve as forças da essência humana, integrada pelo trabalho, socialidade, consciência, universalidade e liberdade (Márkus, 1974). Portanto, pode-se falar de desenvolvimento humano (progresso), desde que não haja perdas correspondentes, quando o homem se tornar mais produtivo, mais sociável, mais consciente, mais livre e mais universal. Desde o nascimento, ele traz consigo essas possibilidades que poderão ser ou não desenvolvidas no transcurso da história. Infelizmente, nas sociedades forjadas nas relações de subordinação e domínio, há obstáculos que limitam o desenvolvimento dessas potencialidades, aumentando o abismo entre o homem como ser particular e o homem como ser genérico, pois "o mundo tem oferecido à média dos particulares poucas possibilidades de ordenar sua vida sobre a base da individualidade" (Heller, 1991, p. 65).

Heller (op. cit., p. 55) considera o indivíduo o homem "que se acha em relação consciente com a genericidade e que ordena sua vida cotidiana com base também nesta relação consciente — evidentemente no seio das condições e possibilidades dadas. O indivíduo é um singular que sintetiza em si a unicidade acidental da particularidade e a universalidade da genericidade."

Em síntese, pode-se construir a seguinte equação: o homem-particular está para a vida cotidiana assim como o indivíduo está para a genericidade. O primeiro caso se relaciona com as "necessidades existenciais" e o segundo com as "necessidades propriamente humanas".2

Qual seria então o significado de homem-caranguejo? No âmbito sociológico ou mesmo filosófico, o homem-caranguejo encontra-se mergulhado na particularidade ou vida cotidiana, comprometido fundamentalmente com a conservação/reprodução de sua vida, não mantendo uma relação consciente com a genericidade. Nesse caso, não poderia ser considerado um indivíduo, pelo menos no sentido helleriano do termo.

Josué de Castro (1967, pp. 28-9) descreve a reprodução desse homem-particular mediante a ecologia do ciclo do caranguejo que se desenvolve nos mangues do Recife:

Se a terra foi feita para o homem com tudo para bem servi-lo, o mangue foi feito essencialmente para o caranguejo. Tudo aí é, ou está para ser caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fabricando com a lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado, o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo e com sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a do corpo de seus filhos. São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.

Nesta aparente placidez do charco desenrola-se trágico e silencioso o ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos todos atolados na lama

Nessa perversa ecologia, parece não haver possibilidade para o surgimento do indivíduo. Em vez de caminhar na direção da genericidade humana, os homens-caranguejo ficariam sempre retidos em sua miserável vida cotidiana:

os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado para dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiriam sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, se afundando para sempre dentro da lama. A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues — homens e caranguejos nascidos à beira do rio — à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama (idem, ibidem, p. 13).

O mangue revisitado: atualização e recriação da metáfora

Na década de 1990, vem à tona o resultado de duas novas leituras da obra de Josué de Castro. Uma delas, seguindo os passos do homem-caranguejo, lança um novo olhar sobre a cidade, descobre e cataloga uma nova espécie: o homem-gabiru (Portella et alii, 1992). Com as mudanças ocorridas no espaço urbano, guiadas pela lógica capitalista, os mangues foram sendo aterrados. O homem do campo, expulso da terra pelo latifúndio, passa a integrar outra paisagem, troca o mocambo pela favela, levando sempre consigo a velha companheira: a fome.

O homem-caranguejo fora substituído pelo homem-gabiru, ... porque, saindo do mangue, ele foi viver em tocas, em morros, em casebres e em velhos sobrados abandonados, fugindo ao convívio dos seus semelhantes, enxotado e detestado por ele, vendo-se privado do seu principal alimento. O olhar que observa é de ódio e de medo, mas o medo é recíproco, o pobre, o miserável, passou a se tornar agressivo, porque sai de seu esconderijo para procurar o alimento nas ruas, nos depósitos de lixo ou para roubá-lo dos transeuntes menos prevenidos; tornou-se um rebotalho social, perdeu a cidadania, o respeito próprio e se animalizou, sem que o poder público tivesse o menor interesse por ele. Daí o homem-gabiru que come restos — quando come — esconder-se dos outros homens e não ter alternativa no meio em que vive (Andrade, 1992, p. 11).

Gabiru, segundo o Aurélio, vem do tupi wa´wiru e significa o que devora mantimentos, por isso, mediante metáfora, compôs-se a taxonomia da "nova" espécie de homem. Eles vivem de lixo, pedem esmolas, causam repugnância, atacam e roubam. "Gabiru é o rato de esgoto, conhecido das cidades. Tem uma incrível capacidade de proliferação, foge rápido. Mas também ataca quando está com fome, até mesmo roendo pessoas. Levanta medo, nojo e um forte desejo de exterminá-los" (Portella et alii, 1992, p. 7).

Já na década de 1940, o poeta Manuel Bandeira (1986, pp. 283-4) "espantava-se" com uma determinada espécie de homem:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Na década de 1990, esse "bicho" foi catalogado, sendo descritas suas características, hábitat, hábitos, alimentação, reprodução, expectativa de vida, morfologia interna. Na verdade, a nova metáfora homem-gabiru constitui uma hipérbole da metáfora original homem-caranguejo, pois o mangue "transbordou", "ganhou o asfalto" e, por isso, o "homem-caranguejo transmutou-se em homem-gabiru" (Portella et alii, 1992, p. 19).

Uma das letras de Chico Science (Da lama ao caos) reforça a existência da hipérbole:

Vi um aratu pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro sul
Saiu do mangue, virou gabiru
Oh! Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem mais urubu ameaça.

Por outro lado, a hipérbole pode ser verificada empiricamente à luz da sociologia, da economia ou da epidemiologia.

Se houve uma mudança "quantitativa", na passagem da metáfora original homem-caranguejo para a nova metáfora homem-gabiru, o mesmo não se verificou no âmbito qualitativo, ambas as espécies constituem exemplos de homens particulares, vinculados à reprodução da vida cotidiana.

A segunda releitura de Josué de Castro ocorre no âmbito do Movimento Mangue. Quase vinte anos após a morte de Josué de Castro, o mangue é novamente visitado. Se há no mangue uma intensa atividade biológica, essa "energia" poderia ser captada pela cidade, para "sacudir" a mesmice na qual ela se encontrava atolada, além de proporcionar cura para seus males. Com essa preocupação, surgiu no Recife, na década de 1990, um movimento artístico-musical — o Movimento Mangue ou o Manguebeat. Segundo Fred Zero Quatro, autor do Manifesto Caranguejos com Cérebro I (1994), o objetivo do movimento "era engendrar um 'circuito energético', capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama". Na primeira das três partes do referido manifesto, exalta-se a singularidade da ecologia dos manguezais, que apesar "das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas de casa, para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza". Na segunda parte, Manguetown — A Cidade, numa linguagem marcadamente clínico-funcionalista, questiona-se a noção de progresso e diagnosticam-se os males desse "corpo" que cresceu "à custa do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais". Os efeitos da "esclerose econômica", a "síndrome de estagnação" e o "mito da metrópole" produziram, pois, miséria e caos urbano na "quarta pior cidade do mundo para se viver". Assim se cantava a Manguetown:

Estou enfiado na lama
É um bairro sujo
Onde os urubus têm casas
E eu não tenho asas
Mas estou aqui em minha casa
Onde os urubus têm asas
Vou pintando, segurando as paredes do mangue do meu quintal
Manguetown
Andando por entre os becos
Andando em coletivos
Ninguém foge ao cheiro sujo
Da lama da Manguetown
Andando por entre becos
Andando em coletivos
Ninguém foge ao cheiro sujo
Da lama da Manguetown
Andando por entre becos
Andando em coletivos
Ninguém foge à vida suja dos dias da Manguetown
Esta noite sairei
Vou beber com meus amigos
E com as asas que os urubus me deram ao dia
Eu voarei por toda a periferia
Vou sonhando com a mulher
Que talvez eu possa encontrar
Ela também vai andar
Na lama do meu quintal
Manguetown
Andando...

(Chico Science e Lúcio Maia Dengue, Manguetown, 1996).

Na terceira é última parte do Manifesto, Mangue — A Cena, sugere-se a terapêutica de natureza emergencial, senão "o Recife morre de infarto!". Com alguns deslizes anatômicos, assim foi escrito o receituário:

Não é preciso ser médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir as suas veias (melhor seria: suas artérias). O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias (artérias) do Recife.

O que teria de novo nesse Manifesto que revela um olhar tão clínico, tão apreensivo e tão intervencionista? Já no título do Manifesto, Caranguejos com Cérebro, registra-se uma inversão: do homem-caranguejo para caranguejo-homem. Vejam-se os passos dessa transformação. Inicialmente, o homem que vivia com os caranguejos no mangue mimetizou-se, assemelhando-se aos próprios caranguejos (metáfora); posteriormente os caranguejos passaram realmente a constituir a matéria que formava o homem (sinédoque). A exclusão social, hipertrofiando a parte (caranguejo), reforçou a sinédoque: os habitantes dos mangue foram desumanizados e transformados em "caranguejos". Se Josué de Castro vai até aqui, o ideário do Movimento Mangue continua a transformar. Esses "caranguejos" que foram esquecidos pelo modelo de desenvolvimento excludente, assinala o título Manifesto, têm cérebro. Um caso de personificação (transformação do caranguejo em homem) ou de reumanização do que foi desumanizado? A última opção parece mais plausível.

A reumanização constitui uma ruptura com o "ciclo do caranguejo" e deveria vir com a ativação das "antenas" para captar as "vibrações" vindas do mangue. A música Antene-se de Chico Science segue essa direção:

É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Escutando o som das vitrolas, que vem de mocambos
Entulhados à beira do Capibaribe
Na quarta pior cidade do mundo
Recife cidade do mangue
Incrustada na lama dos manguezais
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima de pontes
É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo
Procurando antenar boas vibrações
Preocupando antenar boa diversão
Sou, sou, sou Mangueboy
Recife cidade do mangue
Onde a lama é a insurreição
Onde estão os homens caranguejos
Minha corda costuma sair de andada
No meio da rua, em cima de pontes
É só equilibrar sua cabeça em cima do corpo
Procure antenar boas vibrações
Procure antenar boa diversão
Sou, sou, sou Mangueboy!

De homem a caranguejo, de caranguejo a homem — homem-caranguejo-homem, síntese de duas dimensões: o homem-particular, vinculado à reprodução da vida cotidiana e identificado com a imagem do caranguejo-com-as-patas-enterradas-na-lama; e o homem-genérico, relacionado à universalidade e identificado com o caranguejo-com-as-antenas-para-o-alto.

Embora a primeira dimensão apareça de forma mais explícita no ciclo do caranguejo, onde o homem é reduzido à sua vida cotidiana, a segunda, entretanto, não é estranha à obra de Josué de Castro, aparecem ali e acolá vestígios de sua presença que serão aqui propositadamente ampliados.

Verifica-se no ciclo do caranguejo que os homens, "caminhando para trás como caminham os caranguejos", parecem estar condenados a "viver na lama". Todavia em sutis passagens de sua obra, Josué de Castro assinala, em uma delas, a sintonia dos caranguejos (seres-que-vivem-na-lama) com o devir anunciado pelos aviões que cortavam o espaço e, em outra, o andar ladino (e não para trás) desses crustáceos.

Relatando o despertar do dia num dos bairros pobres do Recife, o médico e geógrafo recifense afirmava que a paisagem dos mocambos, após a saída dos homens e mulheres para o trabalho, das crianças para brincar e pegar caranguejo, dos cegos e aleijados para mendigar, era uma paisagem morta, exceto quando passava um avião da Pan Air:

O ruído vai crescendo, crescendo, treme com o ar, com os mocambos, com os caranguejos de olhinhos em pé, assustados, depois vai diminuindo, diminuindo, até se extinguir inteiramente. E um silêncio opressivo volta a abafar a cidade deserta dos mocambos (Castro, 1957, p. 23).

Em outro fragmento, o caranguejo não aparece andando para trás:

João Paulo sentiu uma confusão na cabeça e um formigamento no corpo. Disparou na carreira. Corria em ziguezague, como correm os caranguejos, procurando descobrir de onde vinha mesmo o barulho da tempestade (Castro, 1967, p. 167, grifos do autor).

Os "olhinhos em pé" constituem um movimento de ruptura com a vida cotidiana, representam a possibilidade de saída da lama, uma abertura para a genericidade. Simbolicamente, é esse o movimento que o indivíduo, no sentido helleriano do termo, faz mediante a arte, a ciência, a filosofia, a moral, o amor para se elevar acima da particularidade.

O "ziguezague" é muito mais próprio da realidade do seu andar do que o "para trás", vinculado a uma situação onde "as coisas estão indo mal", segundo o imaginário popular. O primeiro movimento está em sintonia com a tradição chinesa que denominava o caranguejo de koel ('ladino', 'esperto'), e com a tradição clássica que o vincula à lua, pois "esses animais marcham como a lua, para a frente e para trás" (Chevalier et al., 1992, pp. 186-7).



O Recife, o mangue e o caranguejo: novos significados

A partir da obra de Josué de Castro, abraçando-se o ideário do Movimento Mangue, especialmente aquele contido nas letras de Chico Science, e remetendo-se à definição de indivíduo (o ser que mantém uma relação consciente com a universalidade), proposta pela filósofa Ágnes Heller, passa-se a conceber doravante a possibilidade de o caranguejo vir a simbolizar esse indivíduo. Eis a metonímia: o símbolo pela coisa simbolizada!

Por um lado, o caranguejo-com-as-patas-enterradas-na-lama se remete, no plano simbólico, à vida cotidiana (particularidade) e se relaciona com o homem-particular que procura satisfazer as "necessidades existenciais" (habitação, alimentação, saneamento...); por outro lado, o caranguejo-com-as-antenas-para-o-alto se dirige à genericidade e, caso mantenha com ela uma relação consciente, transforma-se em indivíduo que também procura satisfazer as "necessidades propriamente humanas", não vinculadas meramente à reprodução/conservação da vida (trabalho criativo, tempo livre superior ao necessário para a reprodução, arte, política, ciência, moral, filosofia, amor etc.).

O Recife foi parido pelo mangue, por isso constitui um de seus índices. Aprende-se com Peirce (1999, p. 74) que o índice "é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante". Neste caso, o que importa é a geomorfologia e não o recifense. Sendo improvável a remoção do mangue (objeto), o Recife continua sendo seu índice.

Todavia, a agregação de um símbolo (caranguejo) a esse índice depende do recifense, pois o símbolo "é um signo que perderia o caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso que significa aquilo que significa apenas por força de compreender-se que possui essa significação."

Do ponto de vista filológico, assinala Boff (1998, p. 11), sím-bolo/sim-bólico vem do grego symbállein ou symbállesthai que significa lançar (bállein) junto (syn), ou seja, "lançar as coisas de tal forma que elas permaneçam juntas", paralelamente significa "re-unir as realidades, congregá-las a partir de diferentes pontos e fazer convergir diversas forças num único feixe".

O processo de simbolização que envolve a presente reflexão implica, pois, re-unir a tríade: Recife, mangue e caranguejo. Todavia, nesse percurso, é necessário considerar um mito vinculado ao imaginário recifense ou pernambucano. Trata-se do "mito do caranguejo pernambucano" onde se propaga a idéia de que o pernambucano diante de outro pernambucano, que começa a ser reconhecido ou valorizado nacional ou internacionalmente, comporta-se como caranguejo em caritó: quando um tenta subir, os outros puxam-no para baixo.

Nesse caso, o movimento não seria sim-bólico, mas dia-bólico, que vem de dia-bállein e significa literalmente: "lançar coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; jogar fora de qualquer jeito". Ao contrário do sim-bólico, o dia-bólico "desconcerta, desune, separa e opõe" (idem, ibidem, p. 12) .

O Movimento Mangue fomenta o processo de simbolização, desconstruindo o "mito do caranguejo pernambucano".

Na década de 1930, os homens, expulsos pela seca ou pelo latifúndio, passaram a viver na lama dos mangues e se transformaram em homens-caranguejo (metáfora ou sinédoque). Mais tarde, na década de 1990, ocorreram dois movimentos: os homens-caranguejos saem do mangue, ganham o asfalto e viram homens-gabiru (hipérbole) e os caranguejos-com-cérebro (personificação), com suas antenas, deixam a lama e saem em busca de "vibrações".

A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubu

(Chico Science, A cidade, 1994).

O percurso é de emancipação: do particular ao universal, do caos ao cosmos, pois o caranguejo é um ser que vive na lama, mas também encontra-se no Céu, assim como narra um dos mitos clássicos.

Na astrologia, Câncer (caranguejo), signo dos nascidos entre 22 de junho e 21 de julho, ocupa a quarta casa do zodíaco, cujo regente é a Lua e o elemento é a água. A inclusão do caranguejo no zodíaco está relacionada à mitologia grega, especificamente a um dos 12 trabalhos de Héracles (Hércules para os romanos). Este conhecido herói era filho de Zeus com a mortal Alcmena, mulher de um general tebano. Hera, a legítima esposa de Zeus, nunca perdoou a traição e lançou sua ira sobre Héracles, tentando de todas as formas destruí-lo. Inicialmente, enviou duas grandes serpentes, todavia ambas foram estranguladas pelo pequeno Héracles. Noutra ocasião, induziu-lhe um acesso de loucura e fê-lo assassinar seus filhos e sua própria mulher. Como forma de purgação desse crime, Héracles foi servir ao seu primo Euristeu que, obrigado por Hera, impôs a ele a realização de 12 difíceis trabalhos. O segundo deles estava relacionado com a terrível Hidra, monstro de múltiplas cabeças, que habitava os mangues de Lerna, na Grécia. Durante a luta, na frustrada tentativa de distraí-lo, Hera enviou um caranguejo para atacar Héracles. O caranguejo agarrou seu dedo, mas foi pisoteado e perdeu a vida. Em retribuição à coragem e à lealdade do pequeno animal, Hera incluiu a imagem do caranguejo no céu noturno. Além disso, também homenageou a Hidra, constelação caótica que se localiza próximo à de Câncer. Formada por seis estrelas e localizada no hemisfério norte, Câncer compõe uma das 88 constelações reconhecidas pela União Astronômica Internacional (UAI).

Segundo Peirce (1999, pp. 52, 73), um símbolo "é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no sentido de fazer com que o Símbolo seja interpretado como se referindo àquele Objeto", ou seja, o símbolo "está conectado a seu objeto por força da idéia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria".

No plano simbólico, seria emancipador o caranguejo que fizesse o movimento da lama ao cosmos, onde uma de suas patolas poderia alcançar uma das estrelas de sua própria constelação. Todavia, retornando-se à "coisa simbolizada", ou seja, ao indivíduo, no sentido helleriano do termo, não é fácil o movimento, nesse caso, de passagem da vida cotidiana para a genericidade/universalidade, principalmente nas sociedades contemporâneas, onde a alienação contribui para aprofundar o abismo entre "o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a participação consciente do indivíduo nessa produção" (Heller, 1989, p. 38). A profundidade desse abismo é determinada social e historicamente, ou seja, varia com o tempo e com as classes. Somente em duas épocas esse abismo tornou-se mínimo: Atenas, nos séculos VI e V a.C., e Florença nos séculos XIII e XIV d.C.

Segundo Heller (ibidem, pp. 38-9), "tal abismo jamais foi inteiramente insuperável para o indivíduo isolado: em todas as épocas, sempre houve um número maior ou menor de pessoas que, com ajuda de seu talento, de sua situação, das grandes constelações históricas, conseguiu superá-lo. Mas, para a massa, para o grande número dos demais, subsistiu o abismo, quer quando era muito profundo, quer quando mais superficial."

A luta para diminuir cada vez mais esse abismo pode ter como símbolo um caranguejo (indivíduo no sentido helleriano) que agarra com sua patola uma das estrelas de sua própria constelação, num movimento de saída do caos para o cosmos, pois se os olhos são as "janelas da alma", as estrelas são as "janelas do mundo".

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

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