terça-feira, 29 de setembro de 2009

São Paulo e a chama da república

A adesão dos barões do café foi talvez a mais perfeita operação de apropriação
do Estado por uma classe

SÉRGIO BUARQUE DE GUSMÃO

Alegoria, na "Revista Ilustrada"
Reprodução

O aniversário da Proclamação da República, em 15 de novembro, é sempre uma oportunidade de celebração da campanha que implantou essa forma de governo no Brasil. Nas revisões contemporâneas nem sempre se faz o elogio proporcional à participação de São Paulo na queda do Império – e é fato histórico que o engajamento da burguesia cafeeira no Partido Republicano Paulista (PRP) foi decisivo para que a dinastia dos Braganças perdesse sua coroa tropical.

É sabido que o ideal republicano vinha de longe, da Conjuração Mineira, ao menos. Foi associado a iniciativas separatistas, como a Confederação do Equador e a Revolta dos Farrapos. Por ocasião da Independência, e graças ao realismo político de José Bonifácio, prevalecera a monarquia constitucional. Mas a chama do governo do povo, disseminada na América pela grande Revolução Americana e pela espada de Simón Bolívar, fez com que a monarquia brasileira sobrevivesse como uma anomalia solitária num continente que transformava súditos em cidadãos.

As causas secundárias do 15 de novembro de 1889 são muito valorizadas, como o enfraquecimento do Império produzido pela Abolição da Escravatura e as questões Religiosa e Militar, além da incerteza quanto à sucessão do imperador sexagenário e doente. O pano de fundo, no entanto, foi a exaustão do modelo imperial num país que ingressava em nova fase do desenvolvimento capitalista, fortalecendo uma emergente classe dominante que almejava um poder menos centralizado. Parafraseando o historiador Leo Huberman, era hora de trocar o apertado fraque imperial pelo folgado paletó republicano. A palavra "barão" mudava do sentido francês de "título de nobreza" para o inglês de "magnata".

"Sob todos os aspectos, a economia cafeeira foi o primeiro grande acontecimento nacional de que o Brasil foi palco", assevera Nélson Werneck Sodré em História da Burguesia Brasileira. Localizado agora no oeste paulista, depois da decadência das plantações no vale do Paraíba, o empreendimento cafeeiro era gerido integralmente pelos produtores, do plantio à exportação. Pela primeira vez, a grande empresa exportadora foi montada com capitais nacionais. Os ciclos anteriores – pau-brasil, mineração, açúcar – foram todos submetidos ao controle externo. O do açúcar, em especial, antes controlado por Portugal e Holanda, terminou financiado pela Inglaterra.

Regime em frangalhos

Se nos cafezais de São Paulo florescia o pólo moderno da economia, o Rio de Janeiro ainda era o pulmão político do país. Foi lá que estourou o Manifesto Republicano de 1870, no jornal "A República", peça civil por excelência, pregando a nova forma de governo como "a democracia moderna". Lá foi costurada a adesão dos militares, expressão do que na época o Brasil tinha de mais inovador. Dá-se muita importância à frase de Aristides Lobo, de que o "povo assistiu bestificado" à queda da monarquia. O fato é que o antigo regime estava em frangalhos, mais apto a cair do que a ser derrubado, dispensando uma guerra, como a sangrenta luta da Independência, para apeá-lo do trono. Em verdade, o Império, distraindo-se em bailes na ilha Fiscal, é que ficou pasmo com a queda súbita. Não resistiu porque não tinha apoio. A nova classe dominante que marchava com o "general-café" negara-lhe sustentação institucional desde 1873, quando a histórica Convenção de Itu lançou a burguesia rural paulista na propaganda e organização da luta republicana. Da reunião participaram 133 convencionais, dos quais 78 cafeicultores.

Os barões do café, observa Celso Furtado, "desde cedo compreenderam a enorme importância que podia ter o governo como instrumento de ação econômica", manobra que teve sua "plenitude com a conquista da autonomia estadual, ao proclamar-se a república." Talvez tenha sido a mais perfeita operação de apropriação do Estado por uma classe social com objetivos bem definidos. "É por essa consciência clara de seus próprios interesses que eles se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores ou contemporâneos", diz o autor de Formação Econômica do Brasil, publicado em 1959.

O historiador fluminense Marcello Otávio N. de C. Basile mostrou como o poder econômico não correspondia ao político. "Basta notar que, dos 30 ministérios que se sucederam da criação do cargo de presidente do Conselho de Ministros, em 1847, até o final do Império, em 1889, apenas dois chefes de gabinete eram oriundos de São Paulo." Dos 113 ministros que integraram os "14 gabinetes sucedidos após a crise de 1868, somente dez eram políticos de São Paulo", enquanto dos 59 senadores com mandato em 1889, apenas três eram paulistas. Já naquela época, portanto, São Paulo reclamava da desproporção na representação política, como hoje, pois atualmente tem 70 deputados federais quando, ao menos pela regra um cidadão, um voto, deveria ter aproximadamente 115. Segundo Basile, a província também apresentava uma queixa ainda atual, a da remessa de rendas. Os paulistas contribuíam com a sexta parte do total que as províncias remetiam para a Coroa, e recebiam de volta um sexto do que mandavam.

Questão de poder

Os mais afoitos, como José Maria Lisboa, Américo de Campos e Alberto Sales, pregaram o separatismo, proposta rejeitada pela convenção do PRP de 1887. Afinal, o partido não reunira só os fazendeiros de espírito progressista, na expressão de Emília Viotti da Costa, mas incluíra estratos intermediários, comerciantes, empregados do comércio e do governo, médicos, escritores, jornalistas. Na agremiação paulista e noutras correntes políticas em todo o Brasil atuaram muitíssimos bacharéis em direito formados na fábrica de abolicionistas e republicanos que foi a escola de direito do Largo de São Francisco, criada em 1827. Por lá passaram propagandistas exaltados, polemistas, como o poeta Castro Alves, o jurisconsulto Rui Barbosa, o jornalista Silva Jardim e o escritor Raul Pompéia, este doutrinado pelo mais destacado advogado de negros, o ex-escravo Luís Gama, pena ferina, orador brilhante, militante do PRP.

Em seu projeto de conquista do poder, o PRP avançou com as alianças possíveis. Apesar de inicialmente resistir aos militares aquartelados no Rio, o partido paulista participou dos primeiros governos republicanos. O cafeicultor e deputado Campos Sales foi ministro da Justiça do Governo Provisório e deu a sustentação jurídica para que Floriano Peixoto, em vez de convocar nova eleição, completasse o mandato (23/11/1891 a 15/11/1894) em que era vice do renunciante Deodoro da Fonseca. O sagaz Marechal de Ferro fazia a aliança por compreender que "o verdadeiro poder não está nas armas, mas no dinheiro". Deu a pasta da Fazenda a outro paulista, Rodrigues Alves, e, agindo como o consolidador da República, recorreu ao governador Bernardino de Campos para combater as revoltas Federalista e da Armada, que pretendiam restaurar a monarquia. Da aliança surgiu o Partido Republicano Federal, organizado por Francisco Glicério Cerqueira Leite, paulista e florianista.

O poder político efetivo da burguesia cafeeira logo se estendeu, além dos ministérios, para o governo do estado. A seguir foi a vez da presidência da República, com a seqüência no cargo de três paulistas republicanos históricos: Prudente de Moraes, Campos Sales e Rodrigues Alves. Comandaram o Brasil do final de 1894 a 1906, mas São Paulo, associado a Minas Gerais, ainda deteria o poder até 1930, na longa expansão e consolidação do sistema oligárquico. O projeto traçado na Convenção de Itu em 1873 estava coroado de êxito. A república estava marcada na cronologia da história, mas sem a adesão e o ativismo dos cafeicultores de São Paulo no mínimo demoraria muito mais.

Revista Problemas Brasileiros

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