por Hersch Fischler
Um plano criado pelo ministro Hermann Goering atribuiu o atentado aos comunistas
Cinco dias antes das eleições legislativas de 1933, na noite de 27 de fevereiro, a sala de sessões do Reichstag, o parlamento alemão, inflamava-se como uma tocha.
Ardiam as chamas contra o céu de Berlim. No dia seguinte, a polícia, colocada sob a autoridade de Hermann Goering, ministro do Interior da Prússia, apresentava seu suspeito: um anarco-comunista holandês de 24 anos, o pedreiro Marinus van der Lubbe. Ele tinha sido "pego em flagrante", e "seus cúmplices comunistas, fugido".
No dia seguinte, sob o pretexto de uma ameaça de complô de esquerda, Hitler impunha ao presidente Hindenburg um decreto de emergência abolindo todas as liberdades fundamentais da República. Nos dias que se seguiram, milhares de adversários dos nazistas foram presos. A imprensa socialista e comunista foi proibida. A Gestapo e a tropa diferenciada SS tinham plenos poderes. O incêndio do Reichstag, de alguma forma, foi o ato fundador do III Reich, e escancarou as portas do poder para Hitler. De fato, em 5 de março, os nacionais-socialistas e seus aliados obtiveram 51,8% dos sufrágios.
O processo de Van der Lubbe durou de setembro a dezembro de 1933, na Corte Suprema de Leipzig. A seu lado, no banco dos réus, encontravam-se o líder do grupo comunista do Reichstag, Ernst Torgler, e três correligionários búlgaros, um deles o responsável pelo Komintern, Georgi Dimitroff. No entanto, muitos duvidavam da culpa de Van der Lubbe. E não apenas os socialistas e comunistas. Até entre os que apoiavam Hitler, havia quem pensasse que o Partido Nazista, o NSDAP, estava envolvido na trama. Os autos dos interrogatórios - conduzidos pelo comissário Walter Zirpins sem a presença de intérprete, embora Lubbe falasse mal o alemão - foram assinados pelo acusado, que admitia o crime. O documento ainda aventava a hipótese de que ele agira por instigação dos comunistas - o que ele negara.
Em menos de três meses, o caso de Marinus van der Lubbe foi encerrado. Ele não fez quase nada para se defender. Justamente. A foto tirada quatro dias depois de sua prisão mostrava um jovem forte e de boa saúde. Em contrapartida, durante todo o processo, ele se comportou como um autômato, arrasado, apático, de cabeça baixa, incapaz de enunciar uma única frase, senão para reiterar a culpa. Observadores estrangeiros afirmaram, então, que ele estava drogado. Durante sua prisão no Reichstag, na noite do incêndio, ele já parecia estar em estado alterado. Condenado à morte em 23 de dezembro, Lubbe foi decapitado em 10 de janeiro de 1934. Por falta de provas, Dimitroff e seus colegas búlgaros foram soltos.
Nos anos 50, a tese da culpa dos nazistas e da inocência do jovem holandês voltou a tomar consistência. Mas prova alguma permitia sustentá-la. O historiador Richard Wolff, oficialmente encarregado de esclarecer o caso, não pôde se pronunciar de forma definitiva: segundo ele, os documentos referentes ao processo tinham sido perdidos. Mas, no outono de 1959, houve um fato novo. A revista Der Spiegel, de Hamburgo, publicou uma série de artigos assinados pelo historiador Fritz Tobias, reforçando a tese de que Van der Lubbe era o único incendiário do Reichstag.
Inocentava os nazistas e, extensivamente, os comunistas. No segundo artigo, o dr. Zirpins, que havia interrogado o réu em 1933 e fora promovido à diretoria da polícia judiciária de Hanover em 1951, confirmava essas informações. Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, por sua vez, concluía que pouco importava saber quem fora o autor do incêndio. O "cínico golpe de mestre" dos nazistas foi, segundo ele, ter sabido explorar o caso o tempo todo.
Essa tese prevaleceu por muito tempo, embora fosse negada por um grupo de historiadores liderados pelo suíço Walther Hofer e pelo servo-croata Edouard Calic, que publicaram, nos anos 70, documentos vindos de Berlim Oriental questionando a culpa exclusiva de Van der Lubbe. Fritz Tobias, que em 1962 escrevera um livro a partir de seus artigos, acusou-os de utilizar fontes falsificadas, e eles não ousaram inquiri-lo judicialmente. Além disso, Tobias recebeu o aval do historiador Hans Mommsen, em 1964.
Na verdade, ninguém podia restabelecer os fatos, porque os processos da polícia do Reich e da Corte Suprema de Leipzig haviam sido seqüestrados pelos soviéticos em 1945 e levados para Moscou. Imaginava-se que tivessem sido devolvidos à Alemanha Oriental somente nos anos 50. Na verdade, soube-se depois que os soviéticos restituíram esses processos - classificados como "fundos no 551" -, somente em 1982, aos arquivos do Partido Comunista da Alemanha Oriental, onde permaneceram fechados. Depois da reunificação, eles foram repassados à sucursal dos arquivos federais de Potsdam, que os declarou autênticos e os colocou à disposição dos historiadores no início de 1993. Deles se conclui que Marinus van der Lubbe não podia ter sido o incendiário do Reichstag e que o roteiro desse drama foi escrito da primeira à última linha pelos nazistas.
Hofer e Calic já haviam provado que Van der Lubbe não podia ter incendiado sozinho aquele imenso edifício com quatro pequenos acendedores utilizados para fogareiros a carvão. Segundo eles, Van der Lubbe teria sido drogado e conduzido, contra sua vontade, ao Reichstag. Vagando pelos corredores, sufocado pela fumaça e com as roupas pegando fogo, ele admitiu tudo que os policiais queriam fazê-lo confessar. Provavelmente, foi introduzido no prédio pelo portão 2 e impedido de sair. Outro ponto é que as reconstituições provaram que o pretenso culpado não conhecia o prédio nem o local onde se iniciou o incêndio. Há, portanto, indícios de manipulação.
Não se pode, aliás, excluir a hipótese de que Van der Lubbe tenha sido observado bem antes pelos nazistas, que, uma vez preparado o golpe, buscavam um culpado ideal. Na verdade, ele tinha sido designado, pelos anarco-comunistas holandeses, para atuar em um grupo de esquerda berlinense independente de Moscou, a AAU. O que ele não podia imaginar é que essas organizações estavam infiltradas pelos hitleristas, notadamente aquela em que ele se engajou, já que ela abrigava o estudante Wilfried van Oven, que mais tarde viria a ser assessor de imprensa de Goebbels.
Os arquivos soviético-alemães-orientais trouxeram outras revelações: por exemplo, o diário pessoal de Goebbels. O ministro da propaganda de Hitler declarou, diante do tribunal, que havia sido informado do incêndio por um telefonema do chefe da imprensa estrangeira do Partido Nazista, Ernst Hanfstaengl, que morava no palácio do presidente do Reichstag. Goebbels escreveu em seu diário que, a princípio, pensou tratar-se de uma brincadeira de mau gosto e só informou o Führer depois de um segundo telefonema, indicação repetida pelo mesmo Hanfstaengl em sua autobiografia publicada nos anos 50. Na realidade, o porteiro do Reichstag, Paul Adermann, que os juízes não julgaram oportuno citar no tribunal, atestara que Hanfstaengl não morava no palácio do presidente do Reichstag e não estava lá na noite do incêndio. Assim, os nazistas, com Goebbels à frente, não devem ter se surpreendido tanto como aparentavam.
Outro fato confuso: na tarde de 27 de fevereiro, portanto antes do incêndio, o conselheiro Rudolf Diels, a quem Goering confiara a diretoria da polícia, havia implantado um dispositivo que permitia a prisão de líderes políticos socialistas e comunistas alemães. Essas detenções foram apresentadas por Tobias e Zirpins na Spiegel como uma reação ao "atentado". Na realidade, tudo prova que eles estavam preparados havia tempo. Em seu livro Strafrecht leicht gemacht (O direito penal ao alcance de todos), publicado durante o III Reich, Zirpins já se pronunciara favorável às prisões preventivas e aos campos de concentração.
Os arquivos de Berlim Oriental lembram também que dois outros personagens tinham sido presos com Van der Lubbe quando escapavam do Reichstag: Wilhem Heise, operário notoriamente de extrema-direita, e Albrecht, deputado nacional-socialista. Este foi posto imediatamente em liberdade e Heise foi solto às 4h45 da manhã, depois de uma tentativa de suicídio. Outro comparsa dos nazistas também se saiu bem, liberado após um breve interrogatório. Tratava-se de um certo F. C. A. Schoch, também holandês. Seu carro foi reconhecido por testemunhas quando ele estacionava na noite do incêndio perto de um dos portões do Reichstag.
Os historiadores Hofer e Calic formularam a tese de que os incendiários nazistas haviam entrado no edifício por um túnel que chegava até o palácio do presidente do Reichstag - nada mais, nada menos que o próprio Hermann Goering. Nada nos arquivos endossa essa hipótese. Mas faltam páginas nesses documentos. Há quem avente a hipótese de que fossem as páginas remetidas de Berlim Oriental sas. No entanto, não se pode afastar a idéia de que Goering também tenha utilizado o túnel, nem que fosse para confundir as pistas em caso de fracasso da operação. Os verdadeiros incendiários entraram - com grande tranqüilidade pelos portões 2 e 3, como sugerem os documentos - com a cumplicidade do pessoal do Reichstag.
Há também no "fundos no 551" outra informação, dada por um diretor de prisão chamado Brucks em texto escrito, em 22 de abril de 1938, ao procurador do Reich. O remetente admitia ter obtido, na época do processo de 1933, de um homem das SA (as sessões de assalto) encarcerado, um certo Rall, a confissão de que o incêndio fora perpetrado pela seção 17 das SA usando o subterrâneo. Brucks indicava que esse arquivo havia desaparecido. Rall foi assassinado pelas SA e Brucks morreu, em condições não elucidadas, pouco depois de ter escrito essa carta.
Os laudos da polícia confirmavam que o bando de incendiários era composto por nazistas e seus aliados. Von Papen, o líder dessa ação, teria desempenhado um papel muito mais ativo do que se pensava na própria ascensão de Hitler. Seu protegido, e também de Goering, Rudolf Diels, foi promovido em 1933 a primeiro chefe da Gestapo. O famoso Wilfried van Oven, chefe de imprensa de Goebbels até o fim do III Reich, reapareceu depois da guerra com o nome de Wilfred van Oven como correspondente da Spiegel na Argentina. Primeiro, pretendeu-se que ele havia se refugiado ali em 1945. Mas depois se verificou que Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, permitira que ele emigrasse legalmente para lá em 1951. Fiel a suas convicções, Oven criara uma revista germano-argentina de extrema-direita: La Plata Ruf (O chamado de La Plata). Também seria encontrado, entre os que cercavam Augstein nos anos 50, Georg Wolff, redator-chefe adjunto da Spiegel.
Tudo isso leva a indagações como: um homem a serviço da segurança do Reich, dirigido por Reinhard Heydrich, seria Wolff aquele que, na entourage de Augstein favorecia os antigos nazistas? E quem abrira as páginas da Spiegel para Fritz Tobias e suas testemunhas nazistas como foi o caso do comissário Zirpins?
Estranho Zirpins. Tornou-se um dos auxiliares de Heydrich e era chefe da polícia criminal de Lodz, onde dezenas de milhares de judeus, encerrados em um gueto, foram liquidados. Em 1942, passou a ensinar na escola dos quadros da polícia de Reinhard Heydrich em Berlim-Charlottenburgo, por onde passaram numerosos homens que, nos anos 50, criaram a BKA, a polícia criminal da Alemanha Ocidental. A maior parte deles carregava milhares de mortos na consciência. Em 1945, ele foi o último chefe nazista da polícia de Hamburgo. E, em 1951, ou seja, seis anos depois da derrota do regime nazista, estava à frente da polícia judicial de Hanover. Em 19 de dezembro de 1951, a Spiegel publicou um longo artigo de Zirpins, dado como excelente policial. Naquele momento, a revista mantinha sua redação em Hanover.
Ele somente se mudou para Hamburgo um ano mais tarde. Pode-se indagar legitimamente sobre as conexões entre todos esses antigos nazistas, a Spiegel e o seu diretor. A revista nunca aceitou retificar sua afirmação sobre a culpa de Marinus van der Lubbe. A Stern, em 1992, desistiu de publicar os documentos sobre esse caso. Vale imaginar se não teria havido pressão, de que tipo e da parte de quem.
Da mesma forma, pode-se perguntar por que os soviéticos, que estavam em posse dos documentos do processo Van der Lubbe, não esclareceram o caso antes. Há quem acredite que, dessa forma, a União Soviética e a RDA conservavam um bom meio de chantagem contra altos funcionários da Alemanha Ocidental comprometidos com o antigo regime nazista.
-Tradução de Luciano Loprete
Reencontro com a História
Numa Alemanha reunificada, a restauração do Reichstag teve valor simbólico. Berlim voltou a ser a capital da República Alemã. Em 19 de abril de 1999, o parlamento alemão - o Bundestag - realizou sua sessão inaugural e, em 23 de maio, o sucessor de Roman Herzog na presidência da República federal foi eleito no edifício do Reichstag, restaurado sob os cuidados do arquiteto britânico Norman Foster.
O novo Reichstag passou a significar a Alemanha reunificada, apelidada de "República de Berlim". O imponente edifício neoclássico convidava os alemães a um encontro com sua história. Muitos ainda indagavam principalmente sobre os autores do incêndio do Reichstag na noite de 27 de fevereiro de 1933. Afinal, quem pôs fogo no prédio, os nazistas, os comunistas (como pretendiam os nazistas) ou aquele jovem holandês de Leyde, Marinus van der Lubbe, executado em janeiro de 1934 aos 24 anos? Despacho da Agência France Presse, de 15 de abril de 1999, informa que aquele incêndio criminoso foi "perpetrado em circunstâncias jamais esclarecidas".
No entanto, o enigma já estava resolvido. A revelação histórica, que coube ao historiador de Düsseldorf Hersch Fischler, não recebeu até aquele momento a relevância que merece. O processo do jovem anarquista holandês diante da Corte de Leipzig foi orquestrado nos bastidores por Hermann Goering, responsável pela polícia política. Goering organizou o incêndio, executado por um bando de nazistas, a fim de criar um pretexto para abolir as liberdades públicas e instaurar a ditadura.
Em 13 de janeiro de 1999, diante de uma representante do governo holandês e de uma vereadora de Leipzig, Elisabeth van der Lubbe e Adriane Derix-Sjardijn, inaugurou-se no cemitério da cidade um monumento em memória do primo das duas senhoras, Marinus. Dois artistas holandeses cinzelaram numa pedra semelhante às do Reichstag um poema escrito na prisão pelo condenado. Porém, nenhum funcionário alemão assistiu à reabilitação daquele que a Holanda considera como um resistente antinazista.
Por Jean-Paul Picaper - jornalista
Revista Historia Viva
Oi Eduardo!
ResponderExcluirComo alguém com a cabeça de Hitler, que certamente já tinha planos, faz de um incêndio um estompim, dá medo.
Estamos passando por uma situação quase igual. Há medo por toda a parte, so se fala dos nazis.
Nunca entendi a passividade dos judeus. Eles eram muitos e seguiam passivos como cordeiros para a morte. Com o venerável medo da Igreja e dos outros grandes países,
Se Jesus Cristo é uma realidade histórica, se a partir da morte dele, o mundo ficou dividido, imagina agora.... onde nem mais líderes temos.
Muito oprtuno seu texto, mas tive meu blog fechado e minha conta no Google também, por apoiar um amigo que falou mal do Senado Federal.
Isso há um mes atrás. O que é isso? Não seria uma outra forma de contra poder. Eu sou poeta. só escrevo poesia, tudo bem que poesias ativistas que apontam os erros sociais, mas mesmo assim, são poesias bobas para passar o tempo, enquanto estou presa em casa devido a problemas de saúde.
Não acredito que Lula venha a ser um Hitler, até porque num país de futebol, praia chop e carnaval, ia ter que para a guerra num dia de Fla Flu, mas fiquei assustada com o poder do Google, e agora do twitter, do face book, que a gente aparece lá sem se inscrever.
Parabéns pela postagem!
Hi, Eduardo!
Abraços
Mirse