sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Ilmar Rohloff de Mattos


Ilmar Rohloff de Mattos
Ensinar é provocar
REVISTA DE HISTORIA

Ilmar Rohloff de Mattos se diz um homem tímido – e a timidez é um dos maiores obstáculos para quem quer se tornar professor. Mesmo assim ele é conhecido como um dos grandes professores do Brasil.


A paixão de Ilmar pelo ensino começou cedo: aos seis anos, alfabetizando uma pessoa que trabalhava em sua casa. Na adolescência, desistiu de estudar Matemática para se dedicar às aulas de História: “A História fala mais à imaginação.”


Quando ingressou na faculdade, durante o governo JK, havia a idéia de estudar História com a missão de mudar o mundo. Com o tempo, ele passou a achar que professor não tem missão coisa nenhuma: “Meu dever é mostrar que existem sempre várias portas. É o aluno que escolhe qual delas vai abrir”


Prestes a completar quatro décadas dando aulas na PUC-Rio, Ilmar reconhece que é muito inquieto e acredita que esta seja uma característica indispensável ao educador. A Revista de História resolveu entrevistá-lo no Palácio Capanema, prédio que já abrigou o Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, e onde Ilmar recebeu na infância um prêmio por ser um dos melhores alunos de Matemática do Distrito Federal.
Hoje ele observa que a mentalidade dos alunos muda, que os livros envelhecem e que a literatura, às vezes, ensina mais que a História. Mas, mesmo sem missão, ele acredita que o papel do educador continua sendo o mesmo: desafiar.
– Se o professor não for inquieto, o aluno não o será.

Revista de História – Quando você decidiu que seria professor?

Ilmar Rohloff de Mattos – Com seis anos de idade fiz um acordo com a minha mãe. Ela estava para ter minha terceira irmã e disse que faria o parto em casa (eu não queria que ela fosse para a maternidade), desde que eu alfabetizasse a moça que trabalhava lá com a gente. Talvez ela achasse que era uma missão impossível. Foi minha primeira experiência, digamos assim, como professor. Sempre gostei muito de aprender – qualquer tipo de coisa. Acho que foi por isso que eu passei a ensinar outras pessoas a aprender. Quando falava que ia ser professor, as pessoas diziam: “Mas com essa sua timidez toda!” A mesma timidez de hoje em dia, né? “Professor de quê?” E eu afirmava categoricamente: “De Matemática.”

RH – Trocou Matemática por História?

IRM – A minha adolescência foram os anos JK, o desenvolvimentismo, querer fazer um Brasil diferente, um Brasil moderno. Um pouco isso de querer ser sujeito da própria vida. Então isto foi me afastando um pouco das ciências exatas. A coisa vai muito por aí, nesse sentido de querer conhecer o mundo, querer ter uma intervenção maior. A História é uma disciplina que emociona mais.

RH – Como foi sua experiência na pós-graduação?

IRM – Na época da minha formação, o mundo acadêmico era diferente do dos dias de hoje. Eu me graduei na Faculdade Nacional de Filosofia, antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Os professores não tinham formação específica. Não havia institucionalmente a atividade de pesquisa, que surge aos poucos nos anos 70. A primeira vez que ouvi referência a um doutorado foi no dia em que cheguei à PUC para ser contratado como professor, em 1966. Até então, essa coisa era feita fundamentalmente no exterior. Fiz um concurso para a UFF em que o professor Eduardo de Oliveira França, da USP, fazia parte da banca. Havia um contraste muito grande entre a Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Lá a pós-graduação já estava institucionalizada e o professor França me convidou para fazer o doutoramento. Era um convite irrecusável.
Por circunstâncias particulares de vida e por conta da própria vida política do país, o AI-5 etc, interrompi o primeiro momento do curso de doutoramento. Quando as condições se tornam mais favoráveis, retornei e concluí o curso. Era uma maneira muito diferente de fazer pós-graduação, que se chamava lá de “regime antigo”. Fazíamos poucos cursos. Ainda era muito vinculado ao orientador. É claro, tem a história particular de cada um, e eu levei 20 anos para me doutorar. Não estou dizendo que todos tenham que fazer isto, mas acho que uma formação mais lenta, de mais acumulação, faz um pouco de falta. Não consigo conviver bem com os doutoramentos de quatro ou cinco anos. Compreendo que isto, até certo ponto, é inevitável, se é que existem coisas inevitáveis. Mas é uma coisa que me incomoda muito.

RH – Como nasceram alguns dos conceitos que você cunhou? Esses conceitos permanecem?

IRM – Nossa geração queria mudar o mundo através do ensino. Conversávamos muito, de uma maneira até um pouco arrogante, sobre a necessidade de produzir materiais didáticos diferentes, novos, atualizados. E, buscando um pouco de coerência, foi o que tentei fazer logo que me formei. Então, a minha produção intelectual começa por aí. A reflexão acadêmica é fruto de você estar permanentemente dialogando na produção das suas aulas, tanto com os textos chamados clássicos quanto com o que está aparecendo de novo. E, como sempre, buscando dar respostas ao mundo em que se estava vivendo e depois respostas que a gente podia chamar, com alguma pretensão, de teóricas. Acho que é daí que vem, por exemplo, o conceito de “moeda colonial” (título de uma parte do meu livro Tempo Saquarema), se é que chega a ser um conceito. Talvez seja muito mais um instrumento analítico que se constitui a partir do diálogo com a historiografia, particularmente com dois autores, um é extensão do outro, o Caio Prado e o Fernando Novais. E, claro, isso aí respingava na reflexão da época, numa miríade de autores. Mas também não deixava de ser uma resposta, talvez pretensiosa, aos desafios políticos daquela época. De um lado, essa face externa contemplada pelo Fernando Novais, e de outro, chamando atenção para a projeção interna que isso tinha. As sociedades coloniais tinham uma dinâmica interna que não era uma mera projeção desses mecanismos externos. Tentava deslocar um pouco a explicação da nossa formação, sem negar isso, pelo contrário, que eu chamava de razão genética da nossa constituição. E chamando atenção também para um lado mais interno dessa dinâmica. Como se dizia naquele tempo, sem qualquer receio, quais eram os fundamentos da luta de classes dentro da nossa sociedade. Ou seja, não obstante todas as referências externas, nosso destino está, em certa medida, nas nossas mãos. Também não deixava de ser uma resposta aos desafios políticos da época.


RH – O inverso disto são os modismos. Eles não prejudicam a possibilidade de aprofundamento teórico?

IRM – Em princípio, o modismo não é ruim. Ele é sinônimo de inquietação também, o que é sempre a possibilidade de superação. Seria um equívoco se a minha geração tivesse continuado a repetir a geração do, vamos chamar assim, modernismo. Se a “moeda colonial” acrescentou alguma coisa a essa reflexão, acho que é necessário também questionar o que está dito ali substantivamente e o que está dito teoricamente. O movimento do conhecimento é exatamente esse. Hoje em dia, tem uma coisa muito boa que é essa profissionalização da pesquisa e das redes de contato entre historiadores. Os congressos, as revistas, os encontros. Isto ajuda bastante a reflexão crítica. Mas sinto que há um certo esvaziamento teórico. O que talvez seja um subproduto disso que a gente, às vezes, chama meio perversamente de “fábrica de teses”. É necessário inventar sempre coisas novas. Reparem que eu estou falando inventar e não descobrir. As teses são um pouco isso. E na área da gente, inventar ou descobrir coisas novas não é muito fácil, porque isto é fruto de um casamento entre a pesquisa empírica e a solidez teórica.

RH – Você tem uma inquietação impressionante. Isto faz bem?

IRM – Inquieto eu sou mesmo. Uma referência no sentido amplo do historiador ou de qualquer pessoa que realize uma atividade intelectual deve ser uma insatisfação permanente. Sempre procurar conhecer, compreender melhor e permitir que outros conheçam e compreendam. Essa inquietação deve ser a chave do ensino. Se eu não sou inquieto como professor, o aluno seguramente não será um elemento inquieto no sentido de aprender. Isto é uma coisa que eu vejo com satisfação hoje. Apesar de todas as dificuldades que o professor enfrenta, eles são cada vez mais inquietos. A minha geração foi educada para preparar aulas. Hoje, esses professores descobriram que eles produzem aulas. Você dá um programa para um professor, da escola média, da escola fundamental, e ele de imediato questiona aquilo, quer introduzir temas, maneiras diferentes de trabalhar. Isto é fruto dessa mudança na academia. Bom, isto é o que se passa com esses professores hoje. Acho que essa é a energia que a gente está precisando captar e dar uma direção um pouco mais ágil.

RH – Qual é a diferença entre preparar e produzir aulas?

IRM – De modo geral, o professor pegava o texto, podia até ser o próprio texto didático, um texto canônico, e fazia a aula dele a partir dali. Quando eu digo que o professor produz, é que ele se assume como autor da sua aula e não apenas como um reprodutor de alguma coisa. O saber como construção. Quer dizer, o próprio livro didático deixou de ser uma coisa dada. Agora se sabe que aquilo é uma visão historiográfica determinada. Neste sentido, o professor fica à vontade para ter a dele, introduzir novos temas e reflexões. Tradução disso: nos cursos de especialização, o professor, geralmente, já não vai para se atualizar. Ele vai para aprender a produzir História no nível dele – que é o nível da sala de aula. Não vai sair dali para ser historiador no sentido estrito do termo. E eu diria que isto é fruto dessa inquietação. Isto eu acho bacana.

RH – Trata-se de um novo tipo de educador?

IRM – Houve uma época em que o professor de História queria ditar o futuro. A gente até compreendia, mas era meio complicado. E muitas vezes os resultados foram até trágicos. Hoje em dia, o professor já está sabendo um pouco do papel dele. Professor não tem missão; a pior coisa para um professor é dizer que professor tem missão. Mas acho que o papel é mostrar que há sempre várias portas. Onde é que você quer chegar? Depende da porta que você quer abrir.


RH – Como você avalia hoje o pioneirismo dos livros didáticos que escreveu?

IRM – Minha primeira produção foi Brasil uma história dinâmica, de 1971. O negócio ali é fruto da inquietação dessa minha geração com a produção didática. Achávamos que os livros estavam com conteúdos antigos. Isso aí é a boa pretensão, né? É preciso ser pretensioso para fazer alguma coisa nesta profissão. O livro era inovador? Eu diria que era. Porque ele tirava o aluno e o professor de uma certa passividade. Era o seu mérito e, ao mesmo tempo, o seu pecado. Isto incomodava o professor. Ele gostava de imediato e depois ficava incomodado. Falava um pouco de uma maneira nova sobre antigos conteúdos. Nessa perspectiva, diferente mesmo seria o livro História – 1a série do 2o grau, mais conhecido como “Agazão”, porque na capa havia uma letra “H” enorme. Não posso garantir, mas acho que foi o primeiro livro a introduzir uma parte específica sobre a África. Não fosse uma figura com a qual nós temos um débito completo, que é o José Maria Nunes Pereira, do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, essa parte não teria saído. Havia também um capítulo sobre as sociedades indígenas chamadas pré-colombianas. A grande novidade era uma proposta de descentrar da explicação européia. Já não era uma coisa tão nova assim, mas propor uma certa heteroglossia. Incluir no livro didático diferentes falas, diferentes falantes.

RH – Os livros paradidáticos que as escolas adotam são úteis?

IRM – O paradidático, muitas vezes, fica muito na fronteira do discurso ficcional (o que não é mau, inclusive), mas aí o anacronismo penetra com muita facilidade. Há exemplos gritantes disso. Mas, no geral, ajudam. É claro, fogem daquela coisa do conteúdo tradicional, mas será que o conteúdo tradicional é desejável? O professor passa a ter mais opção.Vamos ter sempre o pai que talvez reclame que o filho não estudou as capitanias hereditárias. Você pode responder: “Mas por que deveria?”

RH – No seu livro Tempo Saquarema, a associação entre a formação do Estado nacional e a educação foi uma de suas preocupações. Havia ali um projeto?

IRM – Na verdade, o Império quer ser moderno e, anacronicamente, o Império de uma nação, o Império de um Estado nacional. Há uma dificuldade muito grande em função do que é a sociedade brasileira naquele momento. Nações africanas, nações indígenas... A experiência imperial é sempre isso, vai conquistando, não tem limites, nem espacial, nem temporal; o Império é sempre universal. Ele está impossibilitado por isso. Então ele faz o que eu chamo de uma expansão para dentro. Fui estudar a educação. E o que é isso que eu chamei de “Vamos formar o povo”? No fundo, era formar o que chamava na época “o brasileiro”. Durante pouco mais de um século, este foi o projeto dos diferentes estados constituídos no Brasil. Diria que todos eles tinham um projeto de nação, que não brotavam só deles, mas tinham um projeto de nação em que a educação sempre tinha um papel fundamental. Apesar de todas as continuidades, quando a gente examina a educação, o Estado mudou, né!?

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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