quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A história guardada no baú


A história guardada no baú
Ensinar história a partir de arquivos pessoais é uma boa maneira de se ampliar a compreensão que crianças e jovens têm do conhecimento histórico
Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia Braga Garcia

Uma das dificuldades no ensino de história para jovens e crianças das escolas fundamental e média é, primeiramente, fazê-las entender o que é história. Como explicar às crianças aquele conteúdo que fala de egípcios, romanos, fenícios e gregos, que se distancia delas milhares de anos no tempo e milhares de quilômetros no espaço? Ou, no caso da história do Brasil, como fazê-las compreender uma sociedade com escravos, reis, aristocracia? Como fazê-las entender a dinâmica de sociedades tão diferentes da sua? Uma saída é mostrar como aquilo que é vivido hoje pode ter semelhanças e diferenças com o que foi vivido ontem – ali mesmo, perto dos alunos, em suas próprias cidades e famílias.

Quanto mais nos aproximamos da realidade dos alunos, maior a eficácia pedagógica dessa tentativa de aproximação da história. Mas a grande dificuldade nessa aventura é a escassez de material didático sobre o passado de um espaço que está muito perto de todos nós e de que, às vezes, nem nos damos conta: o município, o bairro ou a escola que nos cercam. O trabalho de professores e alunos que buscam reconstruir esse passado, pesquisando em fontes como arquivos, imprensa de época e depoimentos orais, tem sido uma das saídas para driblar a escassez de material, para ser utilizado em sala de aula, sobre a história que envolve as pessoas da localidade.

Uma experiência desenvolvida na Universidade Federal do Paraná, junto a professores de escolas públicas, traz uma nova contribuição para esse cenário. Trata-se do trabalho com documentos de arquivos familiares que passam a ser utilizados nas aulas de história, a partir da metodologia de ensino baseada na exploração de fontes e na produção da narrativa histórica com os alunos.


Guardados em caixas, embrulhados em jornais, abandonados no fundo das gavetas, os documentos que as famílias vão acumulando no seu dia-a-dia são ricos registros da experiência individual e privada, mas também testemunhos do mundo do trabalho, das lutas, da vida coletiva e socialmente compartilhada.

Para que os jovens e as crianças possam recuperar essas fontes, a sugestão dessa experiência é organizar uma “gincana da memória”, propondo atividades e provas criadas a partir de temas que fazem parte do próprio planejamento curricular de história, como trabalho, família, lazer e cultura. Os professores precisam informar às famílias sobre o projeto e esclarecer sua importância para a educação histórica dos alunos. Os conteúdos curriculares são analisados e, a partir deles, são feitos recortes temáticos que orientam as diversas etapas da gincana. Cada tema do conteúdo curricular é um momento do trabalho. As provas da gincana – por exemplo, trazer a carteira de trabalho e a nota fiscal mais antiga que encontrarem em casa, coletar o depoimento de pessoas idosas da família, reunir fotografias de familiares em situação de lazer ou de trabalho, objetos antigos, registros da vida escolar, manuais didáticos antigos – são pensadas e planejadas como estratégias e recursos de ensino. Os alunos são orientados pelos professores quanto às providências e procedimentos nessa pesquisa. É importante, por exemplo, explicar o valor dos documentos que ficam guardados em casa, os cuidados a serem tomados na sua preservação e, acima de tudo, é preciso ensinar a respeitar este material e quem os guarda, bem como a ter responsabilidade na sua manipulação e posterior devolução.

À medida que vão sendo realizadas as provas, alunos e professores devem desenvolver, em sala de aula, atividades sobre os temas pesquisados. Um primeiro passo é selecionar e identificar os documentos recolhidos. A seguir, é preciso explorar estes documentos, realizando o trabalho de identificação, descrição e análise das fontes. Essa iniciativa deve englobar os conhecimentos que os alunos já trazem sobre os conteúdos e deve contar com o auxílio de outros suportes didáticos, como mapas, textos didáticos e textos de historiadores.


A finalização dos trabalhos da gincana é o momento de compartilhar resultados. Uma estratégia é a produção, por parte dos alunos, de um jornal em papel ou on-line, para tornar públicos alguns dos documentos encontrados, textos e materiais produzidos em aulas. Outra é a organização de uma exposição com os documentos coletados e as atividades desenvolvidas em aulas. A mostra é aberta ao público escolar e à comunidade em geral. A organização do evento é uma excelente oportunidade para os alunos aprenderem a fazer referência aos documentos, preparar um evento e divulgar os trabalhos.

A experiência na região metropolitana de Curitiba mostrou resultados positivos, fazendo com que não apenas a comunidade escolar mas também a comunidade local valorizassem sua própria história e de sua região. Segundo alguns professores, como Solange Pena, da Escola Municipal Maria Capellari (Pinhais), “as pessoas perceberam que são participantes do processo de produção do conhecimento histórico. As fotos de família são também história”. Outros sublinharam como a atividade serve também para aproximar as famílias da escola e vice-versa: “É interessante, porque a gente entra em contato com a vida das pessoas, com a comunidade. A gente passou a conhecer os pais dos alunos”, afirmou a professora Noeli de Lara, da Escola Municipal Antonio Zielonka.

A maior participação dos alunos nas aulas é outro saldo positivo. “À medida que os alunos encontravam a documentação, o interesse aumentava. Eles passaram a construir juntos o conhecimento histórico”, conta a professora Telma da Silva, da Escola Municipal Antonio Andrade. Josely Godoy, da Escola Municipal Maria Capellari, acrescenta: “Foi diferente... o aluno participou, os pais participaram. Os alunos não ficaram apenas escutando a professora falar”.


O trabalho de localizar os documentos junto às suas famílias, as atividades de identificação, exploração das fontes e dos materiais produzidos, assim como a iniciativa de torná-los públicos, são extremamente ricos para os alunos envolvidos e, a partir do conhecimento da história das pessoas da localidade, possibilitam uma ampliação do interesse pelo ensino e da empatia pelo passado. “A gincana ajudou a aprender, a estudar história de um jeito diferente”, explica o aluno Daniel Henrique da Silva, nove anos. “A gincana ajudou a aprender, trouxe coisas que a gente não sabia. Ficou fácil aprender história”, diz Elyson Greber, também de nove anos.

A riqueza do material encontrado e as possibilidades apontadas pelas atividades de ensino que acompanharam a realização da gincana são pontos de partida para uma nova relação dos alunos e professores com o conhecimento histórico. Do ponto de vista metodológico, surge por meio dessa experiência a possibilidade de questionar os conteúdos de ensino, que podem ser relacionados com as informações que os alunos trazem de casa, já que os documentos são fragmentos da sua história familiar. A partir daí, torna-se razoável articular os conteúdos estudados com a história de outras pessoas, em outros tempos e lugares, enfatizando a articulação entre a história da localidade e a história nacional e geral.

O trabalho com diferentes fontes históricas – sempre acompanhado do tratamento metodológico de seus conteúdos – possibilita a construção de interpretações que se expressam sob a forma de narrativas históricas. Dentre as fontes trabalhadas, por exemplo, estavam objetos antigos guardados pelas famílias, os quais são extremamente provocadores da relação dos alunos com os conteúdos históricos. A construção de múltiplas interpretações sobre o passado pode então ser realizada e compreendida pelos alunos.


Tal perspectiva traz importante contribuição à superação de visões preestabelecidas sobre a história, de maneira que, compreendendo os alunos, os professores e a própria comunidade como sujeitos da história, é possível pensar num ensino mais orgânico e articulado, na direção de uma verdadeira educação histórica.

Esta experiência, realizada por meio de um projeto de extensão da Universidade Federal do Paraná, com apoio dos municípios envolvidos (Pinhais, Campina Grande do Sul e Rio Branco do Sul), tem também um resultado material: a produção – pelos professores, alunos, pesquisadores da universidade e bolsistas – de manuais didáticos sobre a história da localidade, para serem utilizados nas escolas da região. É a história que se faz em casa e que se abre para todos.


Maria Auxiliadora Schmidt é doutora em história social, com pós-doutorado em didática da história. É também co-autora de Ensinar história (Scipione, 2004), com Marlene Cainelli. Tânia Braga Garcia é doutora em educação. Ambas são professoras e pesquisadoras do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

Revista de Historia d Bibliotca Nacional

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