quinta-feira, 23 de abril de 2009

Caldeirão do inferno


Relatos de antigos detentos e funcionários revelam a extrema violência reinante nos presídios da Ilha Grande, longe dos olhos da sociedade
Myrian Sepúlveda dos Santos

Apesar das belezas do lugar, a imprensa, a opinião pública e os próprios detentos costumavam referir-se à Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, com o sugestivo apelido de “Caldeirão do inferno”. De fato, ao longo de cem anos, as colônias correcionais, prisões e penitenciárias lá existentes sempre estiveram associadas às condições desumanas a que eram submetidos os internos: maus-tratos, assassinatos, estupros e toda forma de violência faziam parte do dia-a-dia dos presidiários.

Além do que dizem documentos, livros e filmes, a história das prisões da Ilha Grande também se constrói a partir das biografias dos criminosos que para lá foram enviados. De Madame Satã, famoso malandro da Lapa dos anos 1930, a Rogério Lengruber, o “Bagulhão”, um dos mais idolatrados líderes da facção criminosa Comando Vermelho, muitos tipos de contraventores passaram pela Ilha. São lembrados pelos antigos moradores os lendários banqueiros do bicho Natal da Portela e Castor de Andrade, assaltantes de bancos e integrantes do Esquadrão da Morte dos anos 1960, entre eles Lúcio Flávio e Mariel Mariscot.

Ao longo de todos esses anos, o histórico de arbítrio, corrupção e violência se manteve mais ou menos inalterado, e sobrepôs-se sempre às melhores intenções. Entre estas, a de construir-se um “sistema penitenciário modelo” num local paradisíaco, cujo isolamento facilitava os propósitos do governo. O Código Penal de 1890 combatia o castigo físico e o poder arbitrário dos carcereiros. As leis apontavam a necessidade de o Estado recuperar o recluso a partir da educação e do trabalho. Na prática, tudo foi muito diferente do discurso oficial.

O primeiro estabelecimento penal da Ilha Grande, a Colônia Correcional de Dois Rios, foi instalado em 1894. Seu objetivo era recuperar ‘bêbados”, “mendigos” e “vagabundos”, contribuindo assim para a construção de uma nação civilizada. Apesar da lei, os que foram enviados para a Colônia sofreram com penas disciplinares violentas, que iam das chicotadas às péssimas condições de higiene.

Depois de terem freqüentado as prisões do continente e dado muito trabalho aos chefes de polícia, os “miseráveis” crônicos, os “párias da sociedade”, eram enviados à ilha, na verdade, para lá morrerem. São prova disso os atestados de óbito lavrados poucos meses após o ingresso dos presos. E há também ofícios destinando mulheres presas a guardas penitenciários, numa prova de que a Ilha Grande tinha suas próprias leis. As leis da barbárie.

Muitos desses fatos não ficaram apenas na memória dos protagonistas. Após a década de 1930, relatos importantes das condições de tratamento nas prisões da Ilha Grande começaram a ser divulgados. Foram cruciais os livros publicados por Orígenes Lessa, encarcerado por participar da Revolução Constitucionalista de 1932, e por Graciliano Ramos, preso ao se colocar contra o governo de Vargas, em 1936.

No período, dois estabelecimentos penais foram construídos na ilha: a Colônia Agrícola do Distrito Federal (CADF), na Vila de Dois Rios, e a Colônia Penal Cândido Mendes (CPCM), esta última aproveitando alguns dos estabelecimentos do antigo Lazareto (asilo de hansenianos), na Vila do Abraão. Apesar do alto investimento em novas estruturas arquitetônicas e em novos métodos disciplinares que enfatizavam a recuperação dos presos pelo trabalho, as práticas continuaram a se pautar pela violência extrema.

O regime de trabalho em turmas possibilitava muitas fugas. Para reprimi-las, grupos de guardas ou policiais militares, conhecidos como “cachorrinhos-do-mato”, organizavam verdadeiras caças aos presos que se evadiam: estes, segundo os relatos, muitas vezes eram amarrados nus em árvores e espancados até a morte.

Grande parte da população da Vila Dois Rios é ainda hoje composta de policiais e guardas penitenciários que foram funcionários do antigo Instituto Penal Cândido Mendes. De modo geral, eles gostam de falar do passado, de contar histórias e narrar como era a vida no tempo da prisão. Em 2002, sentado à mesa de uma birosca na Vila Dois Rios, um ex-guarda nos contava tranqüilamente o triste destino de um preso conhecido como “Paulistão”, que em 1953 tentara fugir da Ilha Grande junto com dois outros detentos, “Mexicano” e “Fumaça”.

Para os guardas e agentes penitenciários, o castigo físico, inclusive chicotadas, era o tratamento mais adequado para os “vagabundos” que iam parar na ilha

O relato do depoente dá uma idéia precisa da violência e da arbitrariedade reinantes. Segundo ele, ao ordenar a captura dos presos, o diretor do presídio foi bastante preciso: “Olha, o ‘Fumaça’ e o ‘Mexicano’ vocês tragam. O ‘Paulistão’ eu não quero ver de volta”. De fato, o “Paulistão” jamais apareceu. Quanto aos outros dois, receberam o corretivo merecido pela infração: “Levaram uma surra na praia de Conceição de Jacareí. Todo mundo assistindo... e o pau comendo. Jogava eles dentro do mar, tirava do mar e o diretor na canoa, mandando continuar o castigo”.

Este e outros depoimentos foram dados por um ex-funcionário público extremamente orgulhoso de sua carreira. Contava suas antigas façanhas em voz alta, rodeado por uns quinze moradores, e procurando em vários momentos se mostrar diferente dos guardas e policiais de hoje, que, segundo ele, são “oficiais corruptos”. Os policiais e agentes penitenciários mais novos não relatam casos de violência, mas, como os antigos, continuam achando que o castigo físico é o tratamento mais adequado para “vagabundo”.

Os “vagabundos” – ex-presos da Ilha Grande que entrevistamos – também tinham sua estratégia. A tarefa deles era sobreviver na prisão, e para isso tinham de assimilar rapidamente os códigos locais. Diferenciar, por exemplo, os presos que tinham “recurso” daqueles que não o possuíam. Quem tinha pena grande para cumprir, tinha “recurso”: podia matar para se defender porque o tamanho de sua pena não aumentaria. Os presos sem “recurso” tinham de ser mais cuidadosos. Precisavam reconhecer as hierarquias estabelecidas, as éticas constituídas e as possibilidades de se defender ou morrer, tanto em relação aos guardas como aos demais presos.

Em 1960, com a transferência da capital federal para Brasília, os presídios da Ilha Grande passam à responsabilidade do governo do estado. Dois anos depois, por ordem do governador Carlos Lacerda, as edificações que abrigavam a Colônia Penal Cândido Mendes, instalada na ilha desde 1941, foram destruídas a quilos de dinamite.

Várias denúncias justificavam a atitude. Nessa época, as masmorras da Colônia foram consideradas inabitáveis e as práticas de controle dos presos, abusivas. O fim da Colônia foi associado à perspectiva de renovação no sistema penitenciário. Acontece que, apenas a dez quilômetros do presídio destruído, um outro já tomava forma.

Nos anos mais severos da ditadura militar, a estratégia da repressão foi criminalizar os presos políticos. Nelson Rodrigues Filho e muitos outros militantes de esquerda que lutavam contra a ditadura militar foram enviados para o Instituto Penal Cândido Mendes, penitenciária de segurança máxima que ocupava as instalações da antiga Colônia Agrícola. “Quase dois irmãos”, filme de Lúcia Murat realizado em 2005, descreve a convivência entre comunistas e assaltantes de banco, todos submetidos à Lei de Segurança Nacional.

O espetáculo da implosão dos presídios da Ilha Grande sugere a esperança de uma mudança radical do sistema carcerário. Esta, no entanto, jamais aconteceu

Após a década de 1980, o movimento pelos direitos humanos, a Igreja, a imprensa e os próprios presos, organizados, começaram a exercer certa pressão sobre o sistema, e, finalmente, guardas penitenciários que tinham cometido excessos passaram a responder a processos judiciais. Mas a tentativa de diminuir a violência policial contra criminosos não foi acompanhada de propostas alternativas de encarceramento. Verificou-se no período um processo crescente de corrupção da máquina administrativa, por políticos que, em bairros populares, se apoiaram no poder econômico e no prestígio de facções criminosas.

O crime organizado passou a ter cada vez mais controle sobre os presídios e penitenciárias da Ilha Grande. Em 1986, o assaltante José Carlos dos Reis Encina, o “Escadinha”, foi resgatado da Ilha Grande por um helicóptero, numa das ações mais espetaculares já ocorridas nas prisões do país. Nessa época, a violência aumentou consideravelmente. Como resultado da guerra entre as organizações criminosas, segundo relatos dos guardas, cabeças foram decepadas, e num dos confrontos, o coração de um prisioneiro foi tirado à faca do seu peito e jogado aos cachorros no pátio.

Em 1994, por ordem do governador Nilo Batista, o enorme complexo arquitetônico de Dois Rios foi também implodido. O espetáculo da implosão parece corresponder ao ritual de se detonar “o mal pela raiz” e apontar, para a sociedade e os presidiários, a esperança de uma mudança radical. Ele foi encenado duas vezes na Ilha Grande, mas também no Carandiru, em São Paulo, e no complexo da Frei Caneca, no Rio de Janeiro. O que as reportagens, os livros e os filmes não mostram é que a cada espetáculo de destruição sucedem-se novas construções de complexos penitenciários, cada um deles dando razão a relatos mais infernais que os precedentes.

No Brasil, a violência no sistema carcerário é inegavelmente maior do que a registrada nos países industrialmente mais desenvolvidos. Aqui, o distanciamento entre a lei e a sua boa execução, sempre ressaltado por estudiosos, pode ser explicado por diversos fatores, entre eles a má distribuição de renda e a enorme desigualdade no acesso da população aos direitos civis, políticos e sociais. Questiona-se, por outro lado, a própria natureza da instituição penitenciária. No quadro atual, a possibilidade de recuperação dos sentenciados por meio do sistema carcerário é muito pequena.

Um caminho em direção às mudanças poderia começar a ser trilhado pela própria sociedade. Acreditar, por exemplo, que os presos não são intrinsecamente diferentes de nós. São apenas pessoas que seguiram o caminho errado. Os estereótipos – sejam eles aplicados ao judeu, ao negro, ao índio ou ao criminoso, entre outras minorias – é que legitimam a barbárie. Quanto mais se aumentar o distanciamento entre os “vagabundos” e a “gente de bem”, maior será o grau de horror presente nas penitenciárias.

Myrian Sepúlveda dos Santos é professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e autora do artigo “Arbítrio e violência nas prisões da Ilha Grande”. In: Deserdados: dimensões das desigualdades sociais. Rio de Janeiro: H.P. Comunicação, 2007, p. 39-57.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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