O curioso caso das estátuas religiosas orientais que foram parar em uma igreja baiana
Paulo Valadares
Se cada povo representa os deuses e santos à sua imagem e semelhança, que rosto teria Jesus Cristo se ele fosse louvado na China? Olhos puxados, cabelos lisos, feições orientais... Difícil imaginar? Então, o jeito é ver com os próprios olhos. O Jesus chinês existe e está num local improvável: uma igreja de Cachoeira, no Recôncavo Baiano.
A Nossa Senhora do Carmo tem não apenas uma, mas sete esculturas de Jesus oriental, em tamanho natural, feitas de madeira policromada. A indicação de que são de fato representações de Cristo está no imenso sofrimento e na passividade estampados nos rostos, nas feridas nos pulsos e nos joelhos, e nas manchas de sangue na cabeça e no pescoço. Cobertos apenas por um calção de linho branco, causam profunda impressão por sua morbidez, e representam episódios da vida terrena de Jesus.
Mas de onde vêm estas representações tão exóticas? Se não há na região qualquer indício de imigração oriental, como as esculturas foram parar ali? E como o ícone religioso europeu ganhou formas chinesas?
Estas indagações nos levam a uma história tortuosa que começa em 1543, quando um barco a vela português aportou em Tanegashima, sul do arquipélago japonês. Nele viajavam mercadores portugueses que iam do Sião (atual Tailândia) para Macau, na China. Além de buscar bons negócios, estavam incumbidos de uma missão religiosa: converter ao catolicismo os japoneses, adeptos de antigas religiões como o xintoísmo, o budismo e o confucionismo. A eles se seguiram os jesuítas, liderados por Francisco Xavier (1506-1552).
O trabalho de catequese deu frutos, e em pouco tempo, aproximadamente 400 mil japoneses foram batizados. Entre eles, os daimios (literalmente, “grande nome”), chefes da aristocracia fundiária e guerreira. Em Nagasaki, centro do movimento de conversão ao catolicismo, o daimio local, Omura Sumitada (1533-1587), aderiu à nova crença junto com a maioria da população. Batizado em 1563, ele recebeu o nome cristão de Bartolomeu. Sua conversão foi tão profunda que ele doou para a Companhia de Jesus toda a cidade de Nagasaki, com sua população e bens, conferindo aos religiosos inclusive o direito de aplicar a pena de morte. A decisão despertou a atenção de outros senhores para o perigo da infiltração estrangeira.
A interação entre portugueses e japoneses gerou uma subcultura, na qual se encontram arte nanban (palavra que significa “bárbaros do sul”, devido ao fato de os portugueses terem aportado no sul do Japão) e pratos como o tempurá, encontrado hoje na maioria dos restaurantes japoneses. A receita de camarões e legumes empanados e fritos surgiu com a proibição católica de se comer carne na quaresma e a opção de substituí-la por peixes e frutos do mar. O nome tempurá deriva do fato de ser comido nos dias conhecidos no catolicismo como “têmporas” (os três dias de jejum da quaresma e do pentecostes).
A vida dos católicos japoneses mudaria radicalmente com a ascensão de Tokugawa Ieyasu (1543-1616), daimio de Mikawa e iniciador de um xogunato (ditadura militar) que durou de 1603 a 1867. Foram ao todo quatorze xoguns da mesma família. Tokugawa tomou para si, e depois transferiu para seus descendentes, a incumbência de reorganizar politicamente o Japão, enfraquecido pelas constantes guerras entre senhores feudais. A unificação almejada por Tokugawa incluía a religião. Em 1612, ele proibiu o catolicismo no Japão, temendo que a prática pudesse comprometer a lealdade política de seus adeptos, que ficariam de alguma forma vinculados aos portugueses.
A perseguição aos católicos aumentou no xogunato de Tokugawa Iemitsu (1604-1651), neto de Ieyasu. Ele determinou que os súditos se registrassem no templo budista de seus distritos, estimulou a delação remunerada dos que ainda professavam o culto banido, castigou cruelmente os rebeldes e nomeou um inquisidor-geral, Inoue Masashige (1585-1661), com o intuito de exterminar o nascente catolicismo japonês. Ele agiu de forma brutal e eficiente: torturou e expulsou do país os suspeitos e assassinou os rebeldes. A truculência continuou no período de isolamento da nação japonesa em relação ao exterior, que vai do século XVII ao XIX, e resultou em cerca de 40 mil execuções.
Apesar da repressão, a religião católica conseguiu sobreviver no Japão. Muitos adeptos passaram a praticá-la dentro de casa, distante dos olhos das autoridades. Sem os sacerdotes para orientá-los e também sem a literatura sacra cristã, tinham que recorrer somente à memória. O resultado foi a formação de uma seita clandestina chamada Kakure Kirishitan (cristãos ocultos), que começou a estruturar-se em 1614, misturando o catolicismo com elementos xintoístas e budistas, e sobrevive secretamente até os dias de hoje.
No período da repressão Tokugawa, centenas desses “cristãos ocultos” foram descobertos e banidos para Macau, na China, porto central dos negócios portugueses com o Japão e sede da diocese responsável pelo catolicismo japonês. Foi quando a arte religiosa em Macau começou a ganhar novas feições. Até então, a catequese local adotava imagens eurocêntricas. Já os japoneses kakure kirishitan, forçados pelas circunstâncias, tinham recriado as figuras católicas, adaptando-as às suas referências culturais. Esses desterrados exerceram influência sobre a arte de Macau, principalmente na tradução do rosto da divindade cristã para os padrões asiáticos.
A liberdade de sugerir outras formas para o maior ícone cristão nasce de uma brecha existente nos Evangelhos. Eles descrevem Jesus a partir de suas qualidades morais, mas nada informam sobre suas características físicas. As imagens católicas de hoje dizem mais da cultura que as criou do que da verdadeira aparência de Jesus. Nascido no Oriente Médio, de origem semita, Jesus devia ser moreno, e não um nórdico louro e de olhos azuis, como constantemente se vê em suas representações artísticas no Ocidente. Por que não poderia o Jesus dos orientais também corresponder às suas feições? É o que hoje a Igreja Católica chama de “inculturação”, isto é, a mensagem cristã recriada pelas culturas locais.
Produzidas na China, sob influência dos católicos japoneses, as sete estátuas do Cristo oriental chegaram a Cachoeira, na Bahia, no início do século XVIII. Vieram em uma das naus que faziam a “carreira das Índias”, rota de comércio entre a Europa e a Ásia. A presença dessas estátuas na Bahia pode ter sido fruto de uma troca mercantil entre Brasil e China. O tabaco do Recôncavo era apreciado no Oriente, rendia lucros para o agricultor baiano e enriquecia a região. Um dos apreciadores do fumo cachoeirense teria sido o imperador chinês Quianlong (1711-1799), quarto monarca da dinastia manchu Quing, que se relacionava com os portugueses através de Macau. É provável que, nesta circulação de bens e cultura entre as duas regiões, um frei carmelita, um comerciante de grosso trato ou um alto funcionário do Império ultramarino português tenha comprado ou trocado por tabaco o conjunto de esculturas, dando-as de presente à Ordem Terceira do Carmo.
Pode ser que a aquisição dessas esculturas expressasse a grande onda de interesse pela cultura chinesa, conhecida como “chinesice”, que atraiu tanta gente naqueles tempos. Uma aura de exotismo e a considerável distância em relação ao cotidiano brasileiro parecem ser a chave desse interesse. Foi por conta dele que as estátuas chegaram à Rua da Aclamação, em Cachoeira, no começo do século XVIII, e lá continuam, silenciosamente.
É curioso notar como os habitantes de Cachoeira reagem a objetos tão incomuns de culto católico. Apesar do convívio secular da população com aquelas imagens, elas sempre foram vistas com estranheza e com um pouco de desconfiança. As estátuas orientais não foram assimiladas pelo catolicismo local, pois fogem totalmente daquilo que se espera como representação tradicional da figura de Jesus. Afastadas de sua finalidade sagrada, raramente são utilizadas em procissões. Permaneciam guardadas em um salão escuro, longe da vista do público, na companhia dos morcegos.
Com a restauração completa da Ordem Terceira, em 2004, as sete esculturas também foram reformadas e ganharam espaço nobre, sendo hoje exibidas em grandes caixas decoradas com flores coloridas, à moda chinesa. Diante dos nossos olhos ocidentais, no entanto, não recuperam seu caráter sagrado. Interessam apenas pelo exótico. Afinal, onde já se viu Jesus sem barba nem olhos azuis?
Paulo Valadares é mestre em História Social (USP) e autor do livro A Presença Oculta. Genealogia, Identidade e Cultura Cristã-nova brasileira nos séculos XIX e XX (Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2007).
Saiba Mais - Livros:
LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil. Influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.
YANASHIRO, José. Choque luso no Japão dos séculos XVI e XVII. São Paulo: Ibrasa, 1989.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
Interessantíssimo, a historia de como foi esse encontro dos portugueses com os japoneses... as mudanças na religião, as crenças misturadas... e a repressão que sofreram. Mais interessante ainda, foi como arranjaram um modo de resguardar e manter suas crenças, e mediante sua cultura.
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