quinta-feira, 17 de setembro de 2020

INQUISIÇÃO NO BRASIL: CASOS DAS HERESIAS DA COLÔNIA




Aline de Prado Moraes (Coordenadora)

Luiz Antônio Sabeh – Acadêmico da Universidade Tuiuti do Paraná

Wanessa Mareotti Ramos - Acadêmica da Universidade Tuiuti do Paraná

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Livrar as metrópoles de indivíduos indesejáveis, foi uma prática muito comum dentro da história, incluindo a de Portugal. Desde os fins da Idade Média, o banimento de homicidas, traidores, hereges e blasfemadores, entre outros, constituiu-se prática comum aplicada pelo Direito. Além de livrar as cidades dos elementos marginais também atendia a necessidade de povoamento e defesa de regiões estratégicas. Um importante desdobramento dessa prática fora, sem dúvida, o seu agregamento às políticas colonizadoras ultramarinas, pois estes delinqüentes metropolitanos agora também serviriam para colonizar as recém descobertas terras indianas, africanas e americanas[1]. Tanto é que Pedro Álvares Cabral ao retornar da terra brasílica em 1500 deixou dois degredados na terra de Santa Cruz[2].

Com a Igreja não foi diferente. Desde sua institucionalização com o imperador Constantino e  seu embasamento teórico com Santo Agostinho, tornava mais legítima sua autoridade espiritual e terrena. Desde então deflagra guerras intermináveis com os opositores do dogma cristão católico. Embuidos da autoridade terrena, não demorou muito, desde sua estruturalização a coibir de todas as formas possíveis todo e qualquer “desvio da fé”. A repressão se deu pelos mais variados métodos, indo desde a simples excomunhão, a flagelação, o banimento ou até a morte dos infiéis. Com a instauração do tribunal inquisidor na Idade Média, a Igreja criou mecanismos específicos para que se efetuassem os castigos dos  desvios da Fé.

Para melhor entender a Inquisição, deve-se levar em consideração os fatores psicológicos que motivaram a sociedade e os indivíduos, seus medos e ambições enquanto quadros da máquina religiosa do Santo Ofício. Desse modo, num mundo envolto na crença de “Reino Sagrado”, a religião foi um instrumento de normatização social e individual.

A consciência coletiva medieval era marcada por uma intensa dualidade, onde o bem era a retidão, a submissão a Deus, a vida levada com austeridade em detrimento dos prazeres carnais. A perfeição como ideal cristão deveria sempre ser seguido, utilizando-se da igreja como intermédio para alcançar Deus. Assim, o Mal era tudo o que se opunha  às regras de conduta necessárias para se atingir a plenitude do Bem.          

O banimento de hereges, feiticeiros, bígamos, entre outros para o Brasil-Colônia ocorreu para que, num conceito teológico, pudessem purgar seus pecados na nova e desconhecida terra[3].Os inquisidores portugueses não se esqueceram das “almas impuras” degredadas para o Brasil (fosse pelos crimes seculares ou eclesiásticos); muito menos dos povos que aqui viviam e que foram educados segundo os dogmas da Igreja Católica[4]. Com toda a imensidão e diversidade popular, os crimes da colônia ganhavam características peculiares.    

Por traz dos julgamentos promovidos pelo Santo Ofício, escondia-se a intenção de investigar sobre quais estruturas se calcava a fé no Brasil. Para garantir que no campo cultural tudo andava como se esperava, o inquisidor tinha o poder de dissolver qualquer tipo de sistema hierárquico da colônia e de verticalizar as relações sociais em exclusivo beneficio do Santo Ofício. O que o Santo Ofício português não contava é que, junto com a adaptação na colônia, muitos de seus desvios heréticos se transporiam à nova realidade, não simplesmente ressurgindo mas, transmutando-se em versões mestiças[5]. Um exemplo disso foi o novo e desconhecido costume gentílico[6], que embora tenha sido desde o principio caracterizado como puro e simples desvio herético, aos olhos do inquisidor era uma incógnita.      

Chegando ao Brasil, a Inquisição tinha como maior preocupação e objetivo perseguir os judeus que haviam fugido da Europa. A prova disso são os documentos da visitação do tribunal que mostram um grande número de cristãos-novos no Nordeste açucareiro, local que acabou concentrando todas as ações do Santo Ofício.

            As ações do Tribunal do Santo Ofício podem ser amplamente caracterizadas como um marco dentro da Contra Reforma, visto que no Concílio de Trento (1543/1563), a órbita das discussões girou predominantemente sob o prisma do que eram as heresias e como coibi-las, a fim de restaurar e perpetuar o dogma da  crença cristã-católica. Mesmo com um amplo leque de heresias, a obsessão maior dos inquisidores quando da chegada ao Brasil Colônia, era a busca por cristãos novos que exerciam práticas cripto-judaizandes.

Heitor Furtado de Mendonça, primeiro visitador a Bahia entre os anos de 1591 a 1593, recebeu a comissão inquisitorial. Era um homem descendente de nobres, que acabou passando  por dezesseis investigações de “limpeza de sangue”[7] antes de ser habilitado ao cargo inquisitorial. Suas capacidades de letras e de sã consciência foram testadas pelo próprio cardeal Alberto, inquisidor-geral que o nomeou para visitar o bispado do Brasil.

            Desembarcou na Bahia em 1591, acompanhado de Francisco de Souza, governador-geral recém nomeado. No dia 22 de julho iniciou-se a Inquisição brasileira, preludiada com grande pompa e cerimonial.

Foi então publicado o Edital da Fé  e o Monitório da Inquisição. Segundo o Edital, os  fiéis seriam convocados a confessar e delatar as culpas atinentes ao Santo  Ofício, tendo assim suas penas atenuadas. Concedeu trinta dias para isso (de 28 de julho a 27 de agosto), ficando estabelecido que os suspeitos de heresia seriam tratados com comedimento e misericórdia. Porém, esse fato não significou sossego entre os relatados, que ficaram sob pena de excomunhão maior. Todos deveriam confessar ou acusar as heresias e apostasias de outros, caso estas fossem pertinentes à Inquisição. Heitor Furtado utilizou-se muito de seus poderes, chegando a extrapolar as instruções de Portugal, prejudicando ou ajudando alguns réus. O Monitório informava com detalhe o que deveria ser confessado ao tribunal, sendo grande a variação de culpas relatadas. Para arrancar de seus acusados as confissões que queria ouvir, o Santo Ofício fazia desde o confisco de terras até ameaças na fogueira.

Ao ouvir as confissões dos réus, Heitor Furtado surpreendeu-se com a quantidade de heresias que eram então praticadas pelos povos, principalmente no que se refere aos costumes indígenas desta terra[8]. Sua passagem pelo Nordeste deixou marcas profundas e contribuiu para a separação de famílias e amigos.

Ao fazer uma leitura apurada e crítica da primeira visitação podemos perceber o desconcerto do inquisidor, junto ao panorama encontrado no Brasil-Colônia, já que em sua  formação especifica ignorava até então os costumes nativos aliados a mestiçagem[9] reinante. Tamanho fora o desacerto, que sua estada em terras brasílicas  tomou mais tempo do que o previsto, mais verbas do que o destinado e, ao final das contas, acabou retornando a metrópole com seus trabalhos inacabados no restante das colônias americanas. Sua desaptidão fora tanta que  não se furtou a relaxar culpas que se pensadas a posteriori eram graves  e em repreender severamente delitos leves. Não estamos considerando parâmetros éticos-politicos, mas sim pelo simples desconhecimento dos mecanismos intrínsecos na cultura colonial.

            Ronaldo Vainfas, na introdução das “Confissões da Bahia”[10], percorre um importante trajeto da história brasileira  no que tange a instauração da Santa Inquisição no Brasil Colonial. Em dois de seus livros anteriores Vainfas já procurava aprofundar-se nesses processos inquisitoriais, como por exemplo na Heresia dos Índios[11], onde tratou de maneira profunda estes processos movidos pelo Tribunal  do Santo Ofício contra acusados de cometer heresias gentílicas.

 Em suas obras, Vainfas não se detém apenas nos processos, como traça todo o histórico das culturas existentes no interior do Brasil, antes da chegada dos europeus. Tudo isso numa peculiar visão que enfatizava as contraditoriedades da cultura indígena brasileira com a cultura européia, segundo os parâmetros da religião. Essa visão híbrida da cultura gentílica/européia[12], quinhentista e seiscentista, nos brinda com uma excelente interpretação da documentação inquisitorial e abre caminho à novas perspectivas historiográficas  e desta forma traz a tona o que Serge Gruzinski  chama  de o “Pensamento Mestiço”[13]. Em outro trabalho de Vainfas, “Trópico dos Pecados”[14],  é apontado os  desvios sexuais catalogados na colônia e, como no livro Heresia dos índios, percebe uma nova categoria de desvios  que  se legitimava  por valores um tanto confusos aos olhos europeus, mas que na verdade transcendiam a estes como uma forma híbrida de cultura.

 

2. AS VISITAÇÕES

 

            A primeira visitação no Brasil foi feita entre 1591 e 1595, percorrendo Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Além da preocupação constante com os cristãos-novos, ela também tinha preocupações relativas ao protestantismo e aos comportamentos morais e sexuais não pertinentes aos dogmas católicos.

            A primeira visitação teve 187 confidentes (152 na graça e 23 fora), e a segunda, 65 (63 na graça, 2 fora). Fazendo um balanço das duas visitações, temos 204 homens e 59 mulheres que confessaram. A Inquisição era para as mulheres uma forma de se livrarem da autoridade dos maridos, uma vez que a instituição valorizava o depoimento feminino.

            Os confidentes eram, na maioria, ligados às atividades agrícolas e comerciais. No entanto, a Inquisição abrangia todas as esferas sociais, independente da etnia, faixa etária e nacionalidade. Enfim, todos eram alvo das ações inquisitoriais.  A motivação para um indivíduo realizar a confissão era o ideal de vida, de ser correto, além de ser uma forma de fugir do cotidiano. O sofrer, o pagar, eram formas de purificação, de se aproximar da perfeição. A autodesaprovação, a consciência do erro, estimulava a confissão. Outros confessavam, pois já não o faziam há tempos, e precisavam se sentir dentro da esfera da Igreja novamente. Para se mostrarem bons católicos, alguns confessavam-se periodicamente, afirmando serem seguidores fiéis.

            As principais culpas, as quais levavam uma pessoa a se confessar eram: sodomia, práticas judaicas, muçulmanas e protestantes, bigamia, adultério, feitiçaria, pacto com o demônio e leitura de livros proibidos. Na colônia, os inquisidores se deparavam com heresias novas como: práticas gentílicas, seita da Santidade e fornecimento de armas aos índios. Na primeira visitação são poucos os casos de feitiçaria e pacto demoníaco, não sendo encontrado nenhum sobre prática muçulmana.

            Têm-se, na ordem que exposta, as três maiores quantidades de pecados confessados: blasfêmias, sodomia e distorções ou omissões de práticas litúrgicas (comer carne em dias proibidos ou comida antes da eucaristia. O judaísmo só aparece após essas três. Com os judeus, Mendonça procedeu como foi instruído, enviando todos os suspeitos para serem julgados em Lisboa. Tudo isso atrasou o inquisidor, impedindo-o de visitar outros lugares que tinha sido incumbido. Comparando-se a primeira e a segunda visitação, percebe-se um aumento percentual de sodomia e blasfêmias, já o número de práticas protestantes e judaicas diminuem. Para explicar isso, uma vez que os contatos comerciais aumentavam, o que significava um crescimento de judeus vivendo na colônia, a autora defende uma maior coesão da sociedade judaica e uma menor coerção social. Na segunda visitação não há qualquer confissão acerca de gentilidades. A confissão tinha dois fins. Ao mesmo tempo que era uma forma de salvação e conforto individual, servia para manter a ordem social.

            Os motivos da primeira visitação ao Brasil são objeto de controvérsias acadêmicas. Anita Novinsky acredita que o objetivo principal da visitação era a perseguição e o confisco de bens dos cristãos-novos, estando estes no controle da maioria dos engenhos e do comércio naquela região, onde a produção açucareira era próspera. Sônia Siqueira faz outra leitura. Ela sugere que a visitação queria integrar o Brasil ao mundo cristão e mapear sobre que estrutura religiosa calcava-se a fé dos colonos. Vainfas, em contrapartida, defende que a visitação estava inserida dentro do processo de expansão, uma vez que as conquistas atlânticas estavam “esquecidas” pela Inquisição Lisboeta.

           

3. PURGATÓRIO

             

            O homem tem funções a desempenhar dentro do processo de obtenção da graça de Deus, etapas que se vencidas o levam a gloria divina, a condição de eleito. Para ascensão é preciso que cada indivíduo percorra um  trajeto purificante, e esse trajeto constitui um ponto intermediário entre o paraíso e o inferno, o “purgatório”[15]. Ponto este que se distingue dos extremos propostos pelo Cristianismo, ou seja, o Purgatório constitui um hiato entre o céu e o inferno, um meio termo, um desdobramento do pensamento dualista. Este desdobramento funciona como depurador da consciência, purificador de todas as faltas, permitindo com essa  pureza chegar mais próximo de  Deus.

            O Purgatório constituiu dentro da teologia medieval cristã um importante  elemento cristalizador do dogma, visto que este possibilitava a ascensão de qualquer grupo social à plenitude, sendo que anterior a isso a dualidade conceitual se aplicava também aos grupos sociais. Por essa razão o nascimento do Purgatório[16] se deu concomitante a profusão da crença cristã, não apenas  como uma necessidade política para a expansão, mas como um aprimoramento natural da crença. O que se deve levar em conta no que tange o Cristianismo como um todo e especialmente o Purgatório é o fato de  seu nascimento vir permeado de embriões inerentes à cultura popular, ou seja, pagã, o que se choca de maneira drástica com alguns elementos importantes na formação destes mesmos conceitos e que se fundamentam na cultura erudita .

No concilio de Latrão IV[17], a Igreja confirmou a existência de demônios, ou seja, legitimou o que a crença popular já cria “no mal” em oposição “ao bem”, essa legitimação deu os elementos necessários para que os desdobramentos da crença também se legitimassem 

            Para provar a existência do Purgatório, a Igreja se valeu de  algumas passagens bíblicas, das quais metaforicamente se alude a existência deste lugar de  expiação das culpas, e mesmo a própria possibilidade do perdão das faltas.  “Todo que tiver falado contra o filho do homem será perdoado. Se porém falar contra o Espirito  Santo, não alcançará perdão nem neste século  nem no século vindouro”[18].

A importância do Purgatório sem duvida foi alem do que a Igreja poderia imaginar tanto que mesmo após os questionamentos dos reformadores, a Igreja com sua  política reafirmadora do dogma conseguiu lograr êxito e legitimar a inserção definitiva  do purgatório dentro da vida das comunidades cristãs, e que perdura até os dias de hoje conjuntamente com as tradições populares.  

 

4. BLASFÊMIA E DESVIOS DOUTRINÁRIOS

           

            Para um povo que acreditava ser escolhido por Deus para difundir e defender a fé católica, a blasfêmia era muito mais do que um substantivo: era um grave pecado que feria a fé e os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. Com isso, cabia ao Tribunal da Inquisição banir do “Reino Sagrado” tal desvio doutrinário, já que era um desprezo pensado para com Deus e exposto através de palavras.

            A agressão da fé por meio de palavras era um crime freqüente nos diários da Inquisição. Os métodos de castigo iam desde levar uma vela acesa na mão com a boca amordaçada, até ser açoitado e degredado para o interior de Portugal ou para o Brasil, ou ainda, passar a vida toda nas galés.[19] Juntamente à blasfêmia, caminhava a profanação de imagens e símbolos religiosos denominadas “blasfêmias por ações”.

            Como afirmado anteriormente, a blasfêmia era vista como um grande desvio doutrinário. Os casos que de processos doutrinários remetem a tudo aquilo que as pessoas consideravam, ou por suas próprias consciências ou pela repreensão de terceiros, como pecados e atitudes desonrosas ligadas à fé conforme os dogmas pregados pela Santa Igreja. Uma passagem da Bíblia Sagrada demonstra algumas explicações sobre a ausência de fé explícita, ou seja, uma pessoa que ainda não chegou ao conhecimento da fé religiosa e devido a isso não pode opinar pró ou contra, tendo uma ausência inculpável da fé[20]. É passagem de João 3,18: “Quem não crer já está condenado”.

 

5. PROTESTANTES

 

Durante a Idade Média, a Igreja Católica começa a ser questionada e cresce novas manifestações religiosas que contrapõem os dogmas católicos. Havia no clero demasiada desordem, desarmonizando a integridade doutrinal dos preceitos cristãos. Na esteira de acusações tão categóricas, muitos historiadores fizeram, durante muito tempo, dos abusos de todos os gêneros que então a Igreja a causa principal da Reforma.

As novas doutrinas que estavam surgindo foram denominadas de heresias, sendo severamente combatidas e tendo seus seguidores capturados. Protestando contra essa ordem religiosa, Martinho Lutero e João Calvino começam a divulgar suas doutrinas pela Alemanha, Suécia, Dinamarca, Noruega e França, reivindicando uma reforma no seio do catolicismo. A distância entre o protestantismo e o catolicismo talvez tenha surgido da mecanização que se transformou as orações católicas, perdendo seu sentido mais profundo da teologia.[21]

A maioria dos casos de manifestações protestante aconteceu quando os culpados estavam vindo ao Brasil e foram capturados por protestantes nas naus.

 

6. JUDAÍSMO

 

A partir do crescimento do Cristianismo e com o fortalecimento da Igreja, os clérigos e reis assumiram uma postura controladora perante qualquer forma de cultura oposta aos preceitos cristãos. A Igreja Católica, além de assegurar seu poder na sociedade, visava a “consolidação da ortodoxia e unidade religiosa”[22].  Um dos mecanismos utilizados pela Igreja para estes fins foi a criação do Tribunal do Santo Ofício, que veemente combateria as heresias existentes entre os cristãos.

A conversão de verdadeiros cristãos ao Judaísmo, o retorno às Leis de Moisés -  daqueles que já haviam sido batizados cristãos - e o acolhimento e proteção a estes, eram consideradas heresias e apostasias. Segundo o frei Nicolau Eymerich em seu Manual dos Inquisidores7, “os cristãos que aderem ao Cristianismo e os judeus que, convertidos ao Cristianismo retornam depois de algum tempo, à execrável seita judaica, são hereges e devem ser vistos como tais. Tanto uns quanto outros renegaram a fé cristã assumida através do batismo. “Se querem renunciar ao rito judaico sem renunciar ao Judaísmo nem fazer penitência, serão perseguidos como hereges impenitentes8 pelos bispos9 e inquisidores, que os entregarão para serem queimados.”10 Aos que acolherem acusados de Judaísmo, é reservado o mesmo tratamento que é dado a estes, ou seja, são hereges e devem ser condenados. Através da bula Turbato Corde, criada pelo Papa Nicolau IV (1288-1292), também são considerados hereges aqueles judeus que, direta ou indiretamente, auxiliam alguém a retornar às Leis de Moisés. Este último fato consuma-se quando a pessoa participa de cerimônias ou mantém hábitos da fé judaica.

 

7. BIGAMIA, ADULTÉRIO E SOLICITAÇÕES

 

A Igreja estava preocupada em definir os fundamentos da doutrina católica e reafirmar o valor sacramental do matrimônio. A solução encontrada foi ocorreu através do Concílio de Trento (1545-1563), que estabeleceu regras para as uniões conjugais. Para as transgressões das leis sagrada do matrimônio na colônia, dois fatores contribuíram essencialmente: a mobilidade geográfica  inerente ao desejo de construir uma nova vida em um novo espaço e as mudanças nas regras matrimoniais frente aos costumes e rituais tradicionais do casamento. Os primeiros povoadores conheciam dois tipos de matrimônio legal “o casamento a porta da Igreja” e o “casamento presumido”, sendo que este último resultava de uma convivência prolongada e foi confundido com o concubinato após o Concílio de Trento.

Uma vez comprovado o delito, punia os leigos com penas pecuniárias, prisão e degredo. Os religiosos eram privados de benefícios e funções, além de serem excomungados.

No Brasil, os bígamos eram na maioria do sexo masculino, imigrantes que tinham se casado no Reino e depois se casando novamente na colônia. Apenas 5% dos casos denunciados chegavam ao julgamento completo em Lisboa. Por motivos de demora na correspondência transatlântica, eram os visitadores pastorais que se encarregavam da maioria desses casos em vez de passa-los à Inquisição.

 

8. SODOMIA

 

Para os tribunais do Santo Ofício, a sodomia era um crime tão péssimo e horrendo, sendo indigno de ser nomeado. Além das Ordenações do Reino e dos Regimentos do Santo Ofício, a sodomia era punida também pelas constituições dos arcebispados que zelavam pela pureza da religião e pelos bons costumes[23]. Considerada uma heresia, os adeptos dessa prática nefanda sofreram perseguições que se intensificaram a partir dos séculos XIII e XIV. Tanto é que o século XVII em Portugal é considerado “o século de ouro da repressão sobre sodomitas”. A perseguição aos sodomitas foi superada apenas pelos cristãos-novos judaizantes, sendo o segundo maior grupo de hereges a serem reprimidos pela Inquisição. A conseqüência foi a de que a maioria dos acusados foram desterrado e mandado para as galés [24].

No Brasil, as práticas somíticas foram encaradas de maneira  mais leve pelos inquisidores, devido ao fato de que os próprios índios, segundo a visão européia, eram dados a praticas sexuais tidas como pecado, para a Inquisição, seria mais difícil para um homem não cair na tentação, já que as Américas eram vistas como a terra dos pecados. Segundo Geraldo Pieroni, a heresia da sodomia residia na profanação da ordem natural determinada pela criação cósmica: um só homem e uma só mulher unidos por Deus mediante o sacramento do matrimônio. A única prática legítima é a relação sexual entre esposos, objetivando a procriação[25].

 


 

[1] PIERONI, Geraldo. Os excluídos do Reino: A Inquisição Portuguesa e o Degredo para o Brasil Colônia. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. Cap. I “A Expulsão dos Indesejáveis uma prática comum na historia”, p 24.

[2] AMADO, Janaina / FIGUEIREDO, Luís Carlos . Brasil 1500- Quarenta Documentos. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000, Doc.  06  “Carta de Pero Vaz de Caminha” , p. 114. 

[3] PIERONI, Geraldo. Purgatório Colonial: Inquisição Portuguesa e Degredo no Brasil. Além-Mar / estudos luso-brasileiros: Lisboa, 1994.  

[4] Os índios brasileiros, por exemplo,  por serem considerados pelos portugueses como povos não civilizados (segundo o “conceito europeu de civilização”) só poderiam ser julgados por “Desvios da Fé”, desde que fossem catequizados. Ou seja, na ausência da catequese estes eram considerados incapazes de responder por seus atos, por mais ”bárbaros” que sejam estes.   

[5] GRUZINSKI, Serge.  O Pensamento mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2 “ Misturas e Mestiçagens”.

[6] Gentílico, termo referente a gentil, que para os portugueses tinham o mesmo significado que  índio.

[7] A investigação de limpeza de Sangue, consistia em averiguar em pormenores se o candidato ao cargo de inquisidor, não tinha, descendência mesmo que muito remota com judeus, muçulmanos, ou seguidores de qualquer outra crença, que não a católica.  

[8] VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[9] GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2 – “Misturas e Mestiçagens”.

[10] Ronaldo Vainfas (org.). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[11] VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 

[12] Hibridismo Cultural, corrente defendida por  vários historiadores que vislumbram a história enquanto um processo de misturas , e destas misturas nascem novas e híbridas culturas.

[13] GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço.  São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Cap. 2  “Misturas e Mestiçagens”.

[14] VAINFAS Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1997. 

[15] Purgatório – Lugar de purificação das almas dos justos , antes de admitidas na bem-aventurança.

[16] O Nascimento do Purgatório, titulo de um livro do historiador Jaqques L’ Goff, que trata do histórico da idéia do Purgatório, num longo período da história. ( Editora Estampa, 1982 )   

[17] CONCÍLIO DE LATRÃO IV / 11 a 30 de novembro de 1215 /   Papa Inocêncio III (1198 - 1216)

Principais decisões:

- a condenação dos albigenses e valdenses;
- condenação dos erros de Joaquim de Fiore, que pregava o fim do mundo para breve, apoiando-se em falsa exegese bíblica;
- declaração da existência dos demônios como sendo anjos bons que abusaram do seu livre arbítrio pecando;
"Com efeito, o Diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em sua natureza, mas se tornaram maus por sua própria iniciativa" (DS 800).
- a realização de mais uma cruzada para libertar o Santo Sepulcro de Cristo, em Jerusalém,
 que se achava nas mãos dos muçulmanos;
- a profissão de fé na Eucaristia, tendo sido então usada a palavra "transubstanciação".
- a obrigação da confissão e da comunhão anuais.
- fixou normas sobre a disciplina e a Liturgia da Igreja.

[18] Mt 12.32

[19] As galés eram sentenças de trabalhos forçados, uma espécie de prisão.                          

[20] HARING, Bernard. A Lei de Cristo: teologia moral. Volume II. São Paulo: Ed. Herder, 1964.

[21] LUIZETTO, Flávio. Lutero e Calvino. A Contra-Reforma e os jesuitas. São Paulo: Ed. Contexto, 1998.

[22] PIERONI, Geraldo. Vadios e Ciganos, Heréticos e Bruxas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 92.

7 Directorium Inquisitorum. Escrito em 1376.

8 Aquele que mesmo sob a forte pressão do julgamento, não confessa e não abjura sua fé.

9 Referente ao período em que a inquisição era regida pela autoridade regional, o episcopado.

10 EYMERICH, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília, DF: Fundação Universidade de Brasília, 1993. p. 58.

[23] PIERONI, Geraldo. Os Excluídos do Reino: A Inquisição Portuguesa e o Degredo para o Brasil Colônia. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 133.

[24] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colônia. p. 535.

[25] VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colônia. p. 535.

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