domingo, 30 de setembro de 2018

O imperador e o monstro


Mesmo retratado como anticristo, Napoleão conquistou D. Pedro e a população brasileira

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves

Terra corrompida, mentira, impiedade, cauda de pavão, unha de tigre ensanguentada, coração de um corso e cabeça de raposa: estes são ingredientes da Receita especial para fabricar Napoleões, um soneto publicado em folheto que circulou no Rio de Janeiro em 1809. Os dois tercetos ensinam o preparo da “iguaria”:

“Tudo isto bem cozido em lento fogo
De exterior fagueiro, meigo e brando,
Atrevida ambição lhes lances rogo:

Deixa que se vá tudo incorporando,
E assim mui presto espera; porque logo
Sai um Napoleão dali voando”.

Folhetos como esse – impressos em Portugal ou aqui reimpressos – eram anunciados por livreiros na Gazeta do Rio de Janeiro. Títulos como Besta de Sete Cabeças e Dez Cornos ou Napoleão, Imperador dos franceses já indicavam a que se propunham as publicações: combater Bonaparte. Tanto pelo preço baixo como pelo pequeno número de páginas, os panfletos eram publicações mais acessíveis para a divulgação das ideias e tiveram maior circulação que os jornais. Incapazes de ler, as camadas mais humildes da sociedade podiam escutar a leitura em voz alta, assimilando as informações pelo filtro de sua imaginação.

Centenas de publicações – além de panfletos, havia páginas de pequenas histórias e anedotas – traduziram os momentos difíceis vividos pelo mundo luso-brasileiro. Portugal sofria com a ausência do soberano e a guerra de ocupação em seu território [Ver artigo “Anos de terror”, pág. 22]. Mesmo o Brasil, agora cenário da Corte portuguesa, do qual deviam emanar os novos atos administrativos do Império português, vivenciou momentos difíceis na ordem política e econômica. Os escritos chegaram a atingir o número de mais de três mil, em Portugal, entre 1808 e 1814. 

No Rio de Janeiro, os livreiros anunciavam “obras novas”, que reduziam Bonaparte a um usurpador e exterminador de envergadura medíocre, dono de um caráter feroz e sanguinário, cuja carreira fora mesclada de crimes sórdidos. Nessa literatura, a religião era usada para atingir um público mais amplo, divulgando as críticas ao regime francês por meio do antigo costume de parodiar formas religiosas. Um exemplo é Sinal da Cruz, de autor desconhecido, que circulou pelas ruas de Lisboa e do Rio de Janeiro: 

“Conheces o Jinó?
Eu nunca cheguei a ver.
Pois é bom de conhecer
Pelo sinal.
Da França é general,
É um impostor, usuário,
E, também adversário
Da Santa Cruz.
Santo nome de Jesus!
Não há quem dele dê cabo?
De semelhante diabo
Livre-nos Deus.”

Eram também comuns as cartas fictícias aos amigos ou da mãe do imperador, Letícia, dirigida ao filho. Era uma paródia em que Letícia se considerava a “mulher mais desgraçada”, por ter nutrido em suas entranhas um monstro a que todos maldiziam. Esses folhetos também exaltavam o heroísmo português e a virtude britânica.

Em todos esses escritos, há muitas informações forjadas. Monstros e demônios, conspirações e medos foram elaborados recuperando os símbolos e os valores que opunham o bem ao mal. Nesse caso, o mal era representado pelo “monstro do Universo” – Napoleão, o “herói que a Córsega vomitou sobre a face da Europa na força de seu furor”. O herói-deus, o bem, é o que consegue vencer Bonaparte, ainda que temporariamente. É quando aparece a imagem de D. João. Este era o “Príncipe virtuoso, amigo da Igreja e de seus Ministros”.
Esse imaginário escatológico tomava o próprio Bonaparte como símbolo atualizado do mal, considerando-o até o próprio anticristo. Assim, “o dragão e a besta do Apocalipse” consistiam “em Napoleão Bonaparte e no Império francês”. O imperador dos franceses encarnava a besta que saía do mar. Sobre seus cornos havia dez coroas, que simbolizavam o poder exercido por ele na Europa. 

Impregnada por essas imagens, a Corte portuguesa, no Rio de Janeiro, tomava atitudes práticas contra qualquer suspeita de adesão às ideias francesas. Ainda em 1º de maio de 1808, lançou o Manifesto ou exposição justificativa do procedimento da Corte de Portugal a respeito da França. O documento anunciava o rompimento de “toda a comunicação com a França”, autorizando os súditos portugueses “a fazer a guerra por terra e mar aos vassalos do Imperador dos Franceses”. Além disso, a Intendência da Polícia passou a acompanhar os estrangeiros. Vigiava também os súditos do Reino, como Domingos Borges de Barros, denunciado e preso como suspeito de vir da França, por via dos Estados Unidos, em companhia de um espanhol, que podia bem ser “um emissário de Bonaparte”.

Apesar de toda essa repressão, o fascínio que Napoleão Bonaparte exerceu em sua época contaminou os brasileiros. Um fato curioso ocorreu no Recife em 1817, quando o imperador dos franceses já estava preso na ilha de Santa Helena. Tratava-se de uma hipotética conspiração, que tinha como finalidade trazer Napoleão para o Brasil. Antigos oficiais do Exército francês teriam mantido contato com o comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, o “Cabugá”, enviado aos Estados Unidos como representante dos rebeldes pernambucanos de 1817 para obter o apoio da república do Norte. 

Previa-se o desembarque de alguns franceses no Nordeste brasileiro para contatar o governo revolucionário de Pernambuco e organizar uma expedição que, saindo de Fernando de Noronha, iria a Santa Helena. Apesar de “misteriosa e suspeita”, essa conspiração apresenta algumas pistas documentais, como a comprovação do desembarque de quatro franceses, em fins de 1817, no litoral do Nordeste. Um deles chegou a informar ao governador do Recife que seu objetivo era conseguir apoio do governo de Pernambuco para uma expedição que iria evadir o ex-imperador do exílio. Havia ainda uma série de proclamações anônimas, mencionadas pela historiografia francesa, que circularam principalmente na região parisiense, em 1817, entre as camadas populares. Esses escritos afirmavam que insurretos sul-americanos iriam resgatar Bonaparte. 

Outro documento, localizado junto ao Gabinete de D. João, faz ainda referência a uma petição de Luciano Bonaparte, em janeiro do mesmo ano, para ir aos Estados Unidos. O pedido de passaporte ao cardeal Secretário de Estado de Roma – onde Luciano residia – justificava-se por ter que transportar seu filho, que iria se casar com a filha de seu irmão José, já estabelecido na América. Houve toda uma preocupação das quatro potências – Inglaterra, Áustria, Rússia e Prússia – que derrotaram Napoleão em negar o visto. 

O representante português em Roma ficou preocupado por ser uma petição “muito suspeitosa”. Primeiro, pelo risco de pregação da independência e separação da metrópole na América ibérica; segundo, pela oportunidade de haver uma reunião de toda a família Bonaparte. Seriam rumores do Antigo Regime ou notícias com um fundo de verdade? Sem dúvida, é possível deduzir, pelo menos, que agentes bonapartistas estiveram no Brasil e que a ideia mais provável era a de levar Bonaparte para os Estados Unidos, onde seu irmão José já se encontrava. [Veja infográfico na página 30]

Outra presença napoleônica em terras brasileiras foi o conde Dirk van Hogendorp, general holandês que se alistou nas tropas francesas e foi ajudante de campo do imperador. Francês por adoção, emigrou para o Brasil em 1816. Sobre sua estada no Rio de Janeiro, há alguns registros de estrangeiros que iam procurá-lo atraídos pela fama de suas aventuras e de sua fidelidade ao soberano deposto. A arquiduquesa Leopoldina e o próprio D. Pedro também o visitavam. Este também tinha afeição por ele, chegando a conceder-lhe uma pensão. Quando soube de sua morte (sem receber a quantia de cem mil francos que Napoleão lhe deixara em testamento), ordenou o pagamento de seu funeral. Por trás dessa figura singular, talvez existisse o mito de Napoleão, que fascinara também o jovem imperador do Brasil.

Para muitos contemporâneos da coroação de D. Pedro, em 1º de dezembro de 1822, como o barão de Mareschal, a cerimônia fora copiada da coroação de Napoleão Bonaparte. Outra possível influência do general francês nas ações de D. Pedro foi a criação da Ordem Imperial do Cruzeiro, que conferia privilégios, tanto sociais como legais, e servia de expediente para “remunerar os serviços” dos cidadãos mais ilustres. Bonaparte, logo após ser proclamado cônsul vitalício em 1802, criou uma organização semelhante, a Legião de Honra, que simbolizava uma milícia do regime. Era uma ordem que poderia ser concedida a todos os cidadãos que se destacassem por seus serviços à nação – a maior condecoração nacional daquela época. Mas D. Pedro I ia além, pois fazia da Ordem Imperial um meio de distinção social, refazendo a nobreza.

Como se vê, no período das invasões francesas na Europa houve vários e diferentes relatos sobre Napoleão e a França Imperial, comuns nos períodos de crise política. Mesmo romanceadas pela posteridade, as representações “do herói do século XIX” apontam para o fascínio que Bonaparte exerceu em sua época.

Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora de Napoleão Bonaparte: imaginário e política em Portugal (c.1808-1810) (Alameda, 2008) e “Imagens de Napoleão Bonaparte na ótica dos impressos luso-brasileiros”. In: Eliana F. Dutra & Jean-Yves Mollier (orgs.). Política, Nação e Edição. O lugar dos impressos na construção da vida política. (AnnaBlume, 2006).


Saiba Mais - Bibliografia

GALLO, Max. Napoleão. Niterói: Casa Jorge Editorial, 2003.

GRIECO, Donatello. Napoleão e o Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1955.

LENTZ, Thierry. Napoleão. São Paulo: Editora Unesp, 2008.

TULARD, Jean. Napoleão. O mito do Salvador. Niterói: Casa Jorge Editorial, 1996.
Revista de História da Biblioteca Nacional

Um comentário:

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