segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A VIDA NO CANGAÇO


Nonato Freitas
CASAL DE EX-CANGACEIROS DE LAMPIÃO CONTA COMO ERA


A dramática história de Moreno e Durvalina, único casal de cangaceiros do bando de Lampião e Maria Bonita ainda vivo. Nesta reportagem, eles lembram os impressionantes momentos do cangaço e como conseguiram fugir, a pé, do sertão pernambucano para Minas Gerais.

Depois de 66 anos no mais absoluto anonimato, sem contar nada a ninguém sobre a vida deles no cangaço, Moreno e Durvalina, a Durvinha, único casal de cangaceiros do bando de Lampião
(Virgulino Ferreira da Silva) e Maria Bonita ainda vivo, resolveram relatar os longos e dramáticos momentos que juntos passaram na caatinga sob a perseguição implacável da polícia. No dia da morte do Rei do Cangaço, na Gruta de Angico, na beira do rio São Francisco, em Sergipe, pela volante (força policial) do tenente João Bezerra, Moreno e Durvalina estavam em Mata Grande,
distante 70 quilômetros do local. Homem de confiança de Virgulino, ele cumpria uma missão no comando de um subgrupo de cangaceiros.

Moreno lembra que, além de Lampião e Maria Bonita, mais nove cangaceiros foram mortos e degolados naquele dia (28 de julho de 1938). Ao todo, entre homens e mulheres, eram cerca de
47 pessoas. Os que escaparam do cerco se entregaram em seguida à polícia. Corisco, o Diabo Louro, sanguinário e igualmente homem de total confiança de Lampião, no momento do massacre
encontrava-se do outro lado do rio, a três quilômetros de Angico. Tinha sob seu comando um subgrupo. Moreno recorda que Corisco chegou a ouvir os tiros, mas nada pôde fazer em defesa dos companheiros por estar à margem oposta do rio, sem condição de atravessá-lo.

Hoje, aos 98 anos, Moreno vive com Durvalina, de 93, em Belo Horizonte. Ambos estão aí vivinhos, lúcidos e cheios de histórias para contar. Histórias repletas de dramas vividos num
tempo em que, no Nordeste, a lei era ditada pela boca do mosquetão e pelas afiadas lâminas de punhais que chegavam a medir 87 centímetros.
Com a morte de Lampião, o medo se espalhou como um fantasma entre os cangaceiros que não haviam sido capturados. Eles temiam ser degolados a qualquer momento. Assim mesmo
continuavam a desafiar as incansáveis volantes que eram comandadas por homens experientes e destemidos.
Dois anos após a morte de Lampião, o tenente Zé Rufino, da polícia alagoana, temível caçador de cangaceiros, decepou a cabeça de Corisco, que preferiu morrer lutando a se entregar às forças
do governo. Naquele tempo, a ordem era uma só: ou o cangaceiro se entregava, ou então era morto e degolado em seguida. Diante dessa crua realidade, Moreno tomou uma decisão. Homem corajoso que sempre foi, chamou a companheira de um lado e confessou que não se entregaria aos macacos, termo usado por Lampião e seus cabras para desqualificar os soldados das volantes.

SOZINHOS NA CAATINGA

Depois daquela manhã em que Lampião tombou morto ao lado de sua amada Maria e de mais
nove companheiros, o cangaço, na verdade, ficaria riscado, definitivamente, do mapa do Nordeste.
Corisco ainda resistiu durante dois anos ao lado de Dadá, sua brava e fiel companheira. Mas sem
Lampião, sem Maria Bonita, e tantos outros, como Corisco, Luiz Pedro, Virgínio, Zé Baiano, Juriti, Ezequiel (Ponto Fino, irmão de Lampião), Sabonete, Menino de Ouro e Jararaca, todos eles homens rudes e de extrema valentia, sem essas legendas do cangaço, que ficaram para trás, mortos em combate com as volantes, o mundo do crime nada mais representava para Moreno e
sua Durvalina.
O que fazer então com a vida? Abrir mão da liberdade e se entregar à polícia? Ou seria melhor pôr o pé na estrada e fugir? Fugir para onde, se apenas conheciam as veredas áridas e abrasadoras das caatingas? E se na próxima curva dos caminhos desérticos fossem surpreendidos por uma volante? Ah, isso tudo ia moendo, pouco a pouco, o juízo de Moreno.
Era o ano de 1940. Lá fora Hitler mostrava suas garras para o mundo. A Segunda Grande Guerra, com as famigeradas câmaras de gás, começava a ceifar milhares de vidas inocentes. No cinema,
a grande sensação era E o vento levou, rodado um ano atrás em Hollywood. No Brasil, para variar, surgia um movimento simpático ao III Reich, ou seja, algumas figuras importantes da nossa política trabalhavam, às escondidas, em prol das idéias nazistas lideradas por Hitler. Felizmente o raciocínio não vingou e, dois anos depois,no dia 23 de agosto de 1942, Getúlio Vargas decide declarar guerra ao eixo formado por Alemanha, Itália e Japão. Mas para Moreno, perdido naquele mundinho de nada, sem tomar conhecimento de qualquer fato exterior, nada disso tinha a menor
importância.
Em pleno sertão nordestino, acuado agora pela solidão de haver perdido tantos amigos, Moreno optou então pela fuga. Mas, como um homem rude, sem nenhuma instrução escolar, que mal
conhecia os limites da região onde nasceu e da qual nunca se ausentou, conseguiu romper a vigilância dos homens da lei e fugir, ao lado de sua amada, para um lugar tão distante como Minas
Gerais? Pois Moreno e Durvalina, caro leitor, conseguiram romper esse cerco.
Antes de contar esta fascinante história de fuga, vamos conhecer um pouco a trajetória desses dois intrépidos cangaceiros.
Natural de Tacaratu, PE, Moreno, cujo nome completo é Antonio Ignácio da Silva, nasceu no dia lº de novembro de 1909. São seus pais: Manuel Ignácio da Silva e Maria Joaquina de Jesus. Ele entrou para o cangaço ali pelo ano de 1930, quando era apenas um jovem de 21 anos.

Antes de abraçar a vida do cangaço, Moreno era um pacato trabalhador que ganhava seu honesto dinheirinho prestando serviços nas fazendas da região. Numa destas fazendas, de propriedade de um senhor chamado André, Moreno, ou melhor, Antonio (como era chamado antes de ingressar
no cangaço), praticou o primeiro homicídio, das 21 mortes que cometeu durante sua longa vida de cangaceiro. O fato é narrado em todos os seus detalhes por João de Sousa Lima, diretor de publicação e arquivo público do Instituto Histórico e Geográfico de Paulo Afonso, na Bahia, no livro intitulado Moreno e Durvinha – Sangue, amor e fuga no cangaço, lançado em 2006.
Uma sobrinha do dono da fazenda enamora-se de Antonio. Para azedar a amizade entre ambos, uma agregada da propriedade, conhecida por Antoninha, conta para Antonio que a moça não
é mais virgem. Acrescenta que ela havia “se perdido” em troca de uma novilha de gado. Esta mesma conversa é levada ao conhecimento de André pela própria Antoninha, mas de forma envenenada. Diz que o boato fora espalhado por Antonio, que é abordado pelo patrão. Injuriado, ele nega tudo, argumentando que soube do fato pela boca de Antoninha. Ao entardecer, André reúne no pátio da fazenda, além de sua sobrinha, todas as pessoas que convivem ali com ele. Lá estão também Antonio, um irmão de André, de nome Ananias, Antoninha e seu marido. Ao notar a aproximação de Antonio, Antoninha se antecipa, dizendo:

- Oh, seu Zé, que história é essa que o senhor foi contar
para o André?
- Aquela que você me contou.- Mentira sua, disse ela nervosa

Antonio respondeu que não era homem de mentira e aplicou um violento murro na orelha de Antoninha, que caiu zonza no chão. Diante da cena, o marido dela partiu furioso sobre Antonio,
que sacou de uma faca peixeira e, ato contínuo, cravou a arma no peito do homem, que caiu se esvaindo em sangue sobre a mulher e, em seguida, morreu.
Antes de fugir, Antonio, a faca assassina em punho, ainda mirou as pessoas ali presentes com o olhar transtornado de quem estava pronto para o que desse e viesse. “Quem se considerar
meu amigo não se aproxime!”. Como ninguém fez um único gesto para detê-lo, pegou o caminho do mato e sumiu no meio do mundo. Esta foi a porta aberta para Antonio entrar no desafiante e
incrível mundo do cangaço.
Depois de trabalhar numa usina de açúcar e em algumas fazendas da região, Antonio se depara, numa dessas propriedades, com um bando de cangaceiros. Eram eles: Virgínio, Luiz Pedro,
Maçarico, Fortaleza e Salviano, vulgo Medalha.

Deixaram com ele um recado para o Sr. Antonim, dono da fazenda, avisando que em de-
terminado prazo voltariam para pegar uma encomenda. Eram duzentos mil réis. Quando voltaram, trouxeram com eles um coiteiro, devidamente amarrado, que os havia denunciado à polícia. Traição no cangaço era sinônimo de morte.
Os cangaceiros se arrancharam na fazenda durante uns três dias e fizeram amizade com Antonio, que se mostrou interessado em segui-los. Antes de partirem, submeteram-no a um teste de
fogo. Entregaram-lhe uma “Mauser” (carabina automática, de fabricação alemã) e pediram que fizesse o serviço.
Frio como uma pedra de gelo, Antonio segurou a arma com firmeza e mirou calmamente o peito do miserável. Em seguida, acionou o gatilho. O pobre homem caiu morto no meio do acampamento. Naquele instante, Luiz Pedro, famoso pela valentia e por ser um dos homens de confiança de Lampião, deu dois passos em direção a Antonio e afirmou, convicto: “Você vai com a gente.
E de agora em diante seu novo nome será Moreno”. Estava, assim, selado o batismo do ingresso de Antonio Ignácio da Silva no cangaço.


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Senatus, Brasília.

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