segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A História de Deus: as religiões de axé


O nkisi Nkondi, em representação congolesa do século XIX

  Tatiana Henrique Silva

Modificar seus hábitos, esquecer as suas tradições, a sua família. Ter de recriá-las em solo novo, desconhecido, distante um oceano inteiro. Essa é a já conhecida fábula ao revés enfrentada pelos escravizados na África que foram trazidos para o Brasil ao longo de séculos de sistema escravista brasileiro. Nesse período, etnias africanas – de muitas não temos tipo algum de registro, escrito ou oral – foram silenciadas perenemente, hábitos, apagados, modos de pensar, dissolvidos na travessia.

A tradição oral – isto é, o conjunto de saberes e práticas de uma sociedade, transmitidos pelas gerações através da oralidade, ou seja, da experiência coletiva cotidiana ou ritual – foi o veículo que permitiu a esses povos organizar seu planejamento identitário. Se “a oralidade é uma atitude diante da realidade”, todas as suas práticas e as ideias que as fundamentam seguem em direção à ideia de ancestralidade, ou seja, à memória coletiva.

Na língua ioruba, a ideia de afoxé nos traz a relação entre oralidade e ancestralidade. “Que a palavra possa tornar-se realidade”, ou seja: para que possam agir, as palavras devem ser pronunciadas. Para que assim seja, elas encontram o corpo como veículo das ideias. O conhecimento acumulado do grupo fornece o espírito dessas ideias. Logo, a tradição oral se desloca como tradição corporal (corp-oral): o corpo ordena o discurso da tradição através de suas gestualidades, das mínimas às grandiosas, pelos cantos, ruídos e silêncios.

O corpo atravessa o tempo, inscrevendo em si as memórias desses grupos. Ritos de iniciação, de passagem, de continuidade, o trabalho cotidiano, o compartilhamento da história transformam o corpo transitório em repositório do tempo mítico. Porém, uma vez deslocado do seu ambiente coletivo, levado à situação da escravidão, como prosseguir com essas marcas identitárias?

A tradição corporal é profunda, capaz de atravessar tempo e espaço. É assim que o plano religioso se torna o principal canal do reencontro com as origens culturais – as quais nunca se separaram. Irmandades, capoeiras, batuques – onde as etnias se encontravam e negociavam suas tradições – e tantas outras denominações nasciam e se configuravam como novas memórias.

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Tatiana Henrique Silva é mestre em memória social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e licenciada em Letras pela Universidade Estácio de Sá (Unesa) 
Revista História Viva

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