quinta-feira, 17 de abril de 2014

O tamanho do Brasil no mundo

Política externa da redemocratização buscou maior autonomia, mas sem abrir mão de sua essência

CARLOS HAAG

Prédio do Ministério das Relações Exteriores, Brasília

“A diplomacia existe para defender o Estado, não apenas um governo”, afirma o embaixador Fernando de Mello Barreto. “Daí, a perenidade da política externa brasileira, com uma linha de coerência suprapartidária ligada, como a maioria dos países, aos interesses econômicos, que são permanentes. No caso brasileiro, isso vai ainda mais longe: as determinações da nossa política externa estão na Constituição”, explica. Não se trata de mera opinião. Barreto “prova” essa estabilidade, na contramão do senso comum, numa minuciosa análise da atuação dos chanceleres dos últimos 25 anos que resultaram em A política externa após a redemocratização (Fundação Alexandre de Gusmão). Nas quase 1.400 páginas do estudo, o que se percebe é que, apesar dos diversos presidentes, o Itamaraty é uma rocha de estabilidade.

“Claro que há diferenças de prioridade entre os vários governos, em geral sutis, apesar da aparência externa de ‘ruptura’, em geral mudanças de rota por causa de alteração no quadro externo, que demanda ajustes. Mas são raros os momentos de alteração de políticas tradicionais”, analisa o diplomata. Mesmo o advento da redemocratização não mudou o quadro: Olavo Setúbal, chanceler de José Sarney e o primeiro após o fim da ditadura, em seu discurso de posse afirmou que daria continuidade à política exterior dos militares. O que Barreto comprova pela trajetória cronológica dos chanceleres é a tese da pesquisa de Tullo Vigevani, professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura contemporânea (Cedec) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos dos Estados Unidos (INC-Ineu), apoiada pela FAPESP.

“Mesmo no governo Lula não se viu uma ruptura significativa com paradigmas históricos da política externa, mas uma mudança nas ênfases dadas a certas opções abertas anteriormente à nossa ação exterior”, analisa Vigevani. “O que há são tradições diplomáticas distintas, com diferenças nas ações, nas preferências e nas crenças, buscando resultados específicos distintos, mas procurando não se afastar do objetivo sempre perseguido de desenvolver economicamente o país, preservando certa autonomia política”, observa. Assim, para o pesquisador, o conceito central que explica o desenvolvimento da política exterior, de 1985 até hoje, é a busca da autonomia.

A hipótese de Vigevani está expressa em seu livro Brazilian foreign policy in changing times: the quest for autonomy from Sarney to Lula (Lexington Books), que acaba de ganhar sua segunda edição nos EUA. Autonomia é entendida como a capacidade dos latino-americanos de se proteger contra os efeitos negativos do sistema internacional e da pressão feita pelos países mais poderosos. Ela seria expressa em três formas: pela distância desses países (opção do governo Sarney); pela participação ativa em instituições internacionais (como no governo Fernando Henrique); e pela diversificação de parcerias e fóruns de atuação (no governo Lula e ainda em vigor na administração Dilma).

Assim, apesar da inexistência da ruptura do governo Sarney (1985-1989), pressões americanas fizeram com que as chancelarias de Setúbal e Abreu Sodré adotassem posturas mais liberais e menos autárquicas, em razão da negociação da dívida externa e dos contenciosos das patentes farmacêuticas e da informática. O fim da Guerra Fria colocou o governo Collor (1990-1992) entre posturas divergentes na atuação diplomática: embora tenha se distanciado das práticas tradicionais, alinhando-se aos valores dos países desenvolvidos, aproximou-se do Cone Sul. Rezek e Celso Lafer (que voltou à chancelaria com FHC), seus ministros no Itamaraty, foram responsáveis pela formulação de uma política para o Mercosul, tratado assinado por Collor, adaptado aos novos tempos de regionalismo aberto.
Assinatura do tratado que criou as bases do Mercosul, em março de 1991 em Assunção, Paraguai. A partir da esquerda: Collor de Mello, Andres Rodriguez, do Paraguai, Carlos Menen, da Argentina, e Luis Lacalle, do Uruguai

“Invariavelmente, porém, presidentes e chanceleres deram alta prioridade às relações com os países vizinhos, em especial os muito próximos, como a Argentina, ainda hoje uma peça central para o consenso no Mercosul”, concorda Barreto. “Essa postura também veio com a redemocratização, que possibilitou ao Brasil perceber que temos problemas comuns com o resto da América Latina”, diz. Na gestão de FHC como chanceler de Itamar Franco e, mais tarde, como presidente (1995-2002), foram resgatados temas tradicionais da diplomacia brasileira, como a ampliação da autonomia nacional, sintetizada na pretensão brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma ideia levantada ainda na administração Sarney. “Mais uma vez a diplomacia se beneficiou da democracia. Se estávamos num país redemocratizado, podia-se exigir o mesmo da ONU e das outras nações, o que explica a questão do assento permanente”, nota Barreto. “Claro que nos governos militares essa questão não poderia sequer ser levantada.”

“Com o fim da ditadura, foram adotadas políticas de direitos humanos, de rejeição à proliferação de armas nucleares e de apoio às novas demandas ecológicas (nos governos Sarney, Collor, Itamar Franco e FHC). O Brasil, agora, não estava comprometido com as denúncias dos governos militares e podia se colocar mais no cenário internacional, buscar maior autonomia, facilitando o trabalho dos diplomatas”, fala Barreto. Segundo Vigevani, o ápice desse novo movimento se deu no governo FHC, quando se buscou internalizar as mudanças liberais propostas pela globalização, ao mesmo tempo mantendo-se o apoio a instrumentos econômicos estatais. “Era uma perspectiva cooperativa, sem deixar de denunciar as assimetrias internacionais e criticar a política americana do unilateralismo”, avalia Vigevani.

A coerência com a agenda global permitiu a adoção da “autonomia pela participação”, em que o Brasil não se isolava, mas se articulava com o mundo em busca de posição mais adequada ao seu novo peso internacional. “O relacionamento com os EUA, apesar disso, foi de reproduções ininterruptas. A mudança bilateral se deveu mais a atos e fatos concretos do que por mudanças na política externa brasileira”, observa Barreto. O governo Lula (2003-2011) não mudou essa essência, embora tenha optado pelo que Vigevani chama de “autonomia pela diversificação”. “A tônica foi a aproximação de países do Sul para obter maior inserção e maior poder de barganha nas negociações internacionais, buscando sempre soluções multilaterais, em vez de um mundo unipolar”, explica o pesquisador.

 
No segundo mandato de Lula as diretrizes foram aprofundadas, com destaque para a relação com países emergentes como China, Índia, Rússia e África do Sul, sem que isso prejudicasse o eixo Brasília-Washington. “A melhoria das condições econômicas do Brasil permitiu que se pudesse partir para uma política que incluísse a África subsaariana, desde a ‘ação vocal’ contra o apartheid, do governo Sarney, até a mais recente aproximação e cooperação”, diz Barreto. No Oriente Médio, as posições brasileiras também se mantiveram estáveis. “No governo Collor houve o apoio à revogação da resolução que igualava o sionismo a uma forma de racismo; no governo Lula, o reconhecimento da Palestina como Estado. Nos dois casos, apesar das diferenças aparentes, houve apenas uma acentuação de tendências claras, que não divergiam muito de outros membros da ONU”, fala o diplomata.

Vigevani ressalta a contradição entre as pretensões brasileiras de global trader e global player. “A busca de diversificação de parcerias com países em desenvolvimento, como China e Índia, é um obstáculo ao aprofundamento de acordos com países do Mercosul, porque se concentram recursos e esforços de cooperação com atores mais importantes do que os vizinhos”, analisa o professor. A baixa sensibilidade de certos grupos às questões regionais aliada à prioridade dada pelo governo Lula a questões globais, como a intervenção no Irã, dificultam que o país exerça sua autonomia por diversificação com seu entorno.

Mas Fernando de Mello Barreto rejeita a crítica de que a política externa de Lula foi “politizada”. “A diplomacia é política, sempre. Basta ver que a grande maioria dos chanceleres veio da política, com apenas dois diplomatas de carreira, Luiz Felipe Lampreia e Celso Amorim”, lembra. “Seja como for, a redemocratização foi um caminho que levou o Brasil a uma nova posição internacional.

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