quarta-feira, 16 de abril de 2014

Memórias plácidas do anjo da morte

Autobiografia de Josef Mengele revela falta de empatia pelas vítimas e culpa pelos crimes

CARLOS HAAG

Foto de Mengele em 1937, ao entrar para as SS

“Quando um passarinho feliz canta, ele não canta para mim. Sempre que uma estrelinha brilha ao longe, ela brilha para outro e não para mim.” O carente autor do poema ingênuo foi capaz de injetar produtos químicos em olhos de crianças para deixá-los azuis, extrair órgãos de pessoas ainda vivas e costurar gêmeos, sua obsessão, “criar siameses”. No Brasil, Josef Mengele (1911-1979), um dos nazistas mais procurados do planeta, virou escritor.

O “anjo da morte”, responsável pela seleção de quem viveria ou não em Auschwitz, morreu afogado em Bertioga. Apenas em 1985 a polícia descobriu seu paradeiro e, em sua casa em Diadema, encontrou mais de 3 mil páginas de escritos, hoje guardados na sede da Polícia Federal. “Entre os textos há uma autobiografia que nos permite analisar a mente de um criminoso. Ele escreveu em liberdade e sem a obrigação de considerar a opinião pública, que condenava seus atos. Assim, o tom geral é de franqueza na avaliação de sua vida e atos”, explica Helmut Galle, professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP), autor de um estudo sobre os escritos de Mengele, que faz parte do Projeto Temático Escritas da violência, apoiado pela FAPESP.

A autobiografia, com 500 páginas, tem um narrador em terceira pessoa e é escrita em forma ficcional, com o protagonista “Andreas” como o alter ego do nazista. O livro serviria para passar “bons conselhos” ao filho e justificar seus atos no campo de extermínio. Mengele não teve sucesso em nenhuma das duas tarefas e seu filho rejeitou a total falta de culpa do pai e seu silêncio sobre os crimes nas memórias. “A leitura desses escritos é uma tarefa sofrida. Há um silêncio incômodo sobre as atividades na guerra e uma terrível vaidade prazerosa com que conta futilidades da infância e de sua vida após a fuga em 1945.”

Apenas o nascimento e o batismo do protagonista se esparramam por longas 74 páginas. Num paradoxo, quase não há referências aos judeus, por cujas mortes ele foi responsável. Uma das poucas acontece durante uma conversa de Andreas com um camponês que acusa o capital judeu pela guerra. Mengele responde: “Aí muito se exagera, mas algo deve ser verdade. Seria, porém, essa guerra que o judaísmo internacional impôs à Alemanha que impossibilitou uma solução pacífica da questão judaica. E se esses eventos acontecessem em época de guerra, assumiriam formas bélicas, condicionadas pelas situações gerais alteradas e, não finalmente, pelas reações psicológicas”.

“É estranho imaginar o nazista, no Brasil dos anos 1970, ainda culpando os judeus pelo próprio genocídio e sua total certeza ética sobre a legitimidade do Holocausto”, observa Galle. Mengele se mostra como contraponto à fraqueza judaica, dotado da força e da persistência diante dos obstáculos. Suas lembranças o levam para 1947, quando, em fuga, se refugia numa fazenda na Alemanha, disfarçado de agricultor. “Não existe o esquivar, a fuga e a recusa porque a existência crua está em jogo. Andreas distribui o esterco com a força e suprime a dor infernal na articulação da mão, pensando que somente se pode sobreviver sendo mais duro que aquilo que a existência intransigente traz.”

Sobrevivência
“Mengele quer se colocar na posição de suas vítimas para provar que é mais forte do que elas, não sucumbindo na luta pela sobrevivência”, analisa o pesquisador. Para Galle, o “anjo da morte” quer livrar-se da culpa mostrando a sua experiência e culpando os judeus mortos pelo seu fim. “Como o camponês, cujo corpo quer desistir e quase ‘grita’ por dores, Mengele cria uma persona, que acredita ser ele, capaz de suprimir esses impulsos, fingindo indiferença diante de todos. Em Auschwitz, ele teve, internamente, algum sentimento e se revoltou, em algum momento, com seu ‘trabalho’ cruel. Mas essa voz foi extinta pela aparência da persona fria”, observa o pesquisador.

“Nas 500 páginas do texto não há nenhum sinal de empatia. Só se vê o sofrimento do protagonista e as acusações dos que lhe causam esse sofrimento. Pode-se supor que ele também não teve essa função psíquica.” O autor assassino, continua Galle, quer controlar sua imagem externa, mostrando apenas força e poder, e produz esses textos para ter controle sobre a memória que os outros tinham dele. “Uma das cenas mais significativas do livro é quando o protagonista sonha que é um bebê que passa o tempo todo dormindo ou gritando. Mengele se vê como inocente e justo, imaginando ser aquilo que nunca admitiu em si e que quis destruir em suas vítimas: a criatura física, nua e indefesa.”

Em nenhum momento aborda a questão da culpa, porque, para ele, “não existem juízes, apenas vingadores”. “Atribui a responsabilidade da morte da mãe aos médicos ‘incapazes’, colocados pelos Aliados no lugar dos ‘bons médicos’ nazistas. Também culpa aqueles que fizeram ‘falsas acusações’ contra ele pela perda materna”, diz o pesquisador. Em uma carta de 1974, chega a expressar “remorso pelos crimes que cometemos contra o ‘povo escolhido’”. As aspas traem a sua visão real, pois, mesmo num momento de raro arrependimento, considera os judeus como “absurdos”. Afinal, o que acreditava ver a seu redor parecia confirmar suas crenças. “O Brasil é bom país para se viver, apesar da mistura racial. Mas há muitas pessoas que pensam como eu e são simpáticas ao nazismo e à ideologia racial”, escreve. Mas incomodava-se com as brasileiras, que “abusavam do batom e da maquiagem, sempre prontas para a promiscuidade sexual”.

Despreza as mulheres em geral. “A biologia não admite direitos iguais. Mulheres não deveriam trabalhar em posições altas e sua atividade deve depender do preenchimento de uma cota biológica. O controle de natalidade deve ser feito com esterilização daquelas com genes deficientes.” Além das mulheres, preocupava-se com a superpopulação do planeta. “O nosso experimento em raças falhou, mas é preciso tomar medidas drásticas para combater o excesso de pessoas. Os homens precisam tomar uma decisão para sobreviver aos tempos modernos. Se a eugenia não funcionou no curto prazo, precisamos de outra solução igualmente radical”, anota.

As anotações refletem seus estudos de genética e antropologia nos anos 1930, que o levaram a fazer o doutorado sob a orientação do professor Otmar von Verschuer, diretor do Kaiser Wilhelm Institut. Lembrando-se dos “bons tempos” acadêmicos, escreve: “Sabemos que a evolução controla a natureza por seleção e extermínio. Os incapazes de aceitar essas regras de seres mais capacitados serão exilados ou extintos. Homens fracos não devem se reproduzir. É a única forma da humanidade existir e se manter”. A partir de 1943, o discípulo passou a enviar ao mestre provas “físicas” e relatórios de seus experimentos “fascinantes” com seres vivos em Auschwitz.

“Fui um jovem imaturo e solitário. Tudo seria diferente se viesse de um lar feliz com pessoas que tomassem conta de mim”, escreve o homem que ordenou a “limpeza” de um galpão com 750 judeus dentro, jogando gás venenoso para conter uma infestação de piolhos. 
Revista FAPESP

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