quinta-feira, 20 de março de 2014

A história dos celtas

Um povo na soleira da História

Durante mais de meio milênio, os celtas determinaram os destinos da Europa. Sua terra natal ficava ao norte dos Alpes. Eles chegaram a conquistar Roma e batizaram Milão, mas nunca criaram um reino unificado, nem escreveram sua
 Cay Rademacher e Martin Paetsch (TEXTO) e Berthold Steinhilber (FOTOS)

Este provavelmente foi o assentamento mais significativo da pré-história celta: a fortaleza de Heuneburg, construída em 600 a.C. às margens do rio Danúbio. Atualmente, o burgo, fielmente reconstruído, está localizado no sul da Alemanha


As primeiras Metrópoles do Norte
Em todos os lugares habitados por celtas, as pessoas começaram a construir, a partir do século 2 a.C., assentamentos como nunca tinham existido antes ao norte dos Alpes: eram cidades planejadas - inspiradas por romanos, etruscos e gregos, seus principais parceiros comerciais no sul. Essas vilas fortificadas ofereciam proteção a milhares de habitantes; ali se cunhavam moedas, falava-se em leis e o comércio era luxuoso. Na região central da França, uma tribo gaulesa construiu uma dessas metrópoles: Bibracte. Uma suntuosa avenida, de 15 metros de largura, percorria toda a cidade. O muro do reservatório de água em seu centro protegia uma nascente que já secou há muito tempo. Suas paredes, reconstruídas em um granito com um suave brilho cor-de-rosa, podem ser visualizadas como os pontos de intersecção de dois círculos secantes (diz-se de linhas retas ou curvas que interceptam outras retas ou curvas) - possivelmente o princípio de construção do projeto


Um lugar para camponeses e pastores
Embora os celtas já construíssem grandes cidades, a maioria deles permanecia no campo. Durante mais de 300 anos, camponeses habitaram essa "fazenda" - hoje reconstruída por arqueólogos - na paisagem montanhosa de Hunsrück, no sudoeste da Alemanha. Acredita-se que por volta de 50 a.C. os edifícios localizados em uma pequena fortificação foram abandonados. Ao lado da casa residencial (à esquerda), coberta como todas as outras com uma espessa camada de palha ou telhas de madeira e paredes feitas de barro ou vime entrelaçado, localizam-se os celeiros e as cocheiras. Essas pessoas plantavam espelta (uma espécie de trigo vermelho) e cevada, com as quais preparavam um mingau de cereais - o principal alimento na idade do ferro. Eles também colhiam ervilhas, lentilhas e painço; e mantinham suínos e bovinos


Por onde se estende a tênue linha entre a pré-história e a história? Quando um povo desponta do crepúsculo das eras arcaicas e entra na luz da memória coletiva?

Quando ele recebe um nome.

Há milênios povos anônimos, sem nomes, viviam na Europa ao norte dos Alpes: caçadores, pescadores, camponeses, guerreiros, artistas. Incontáveis gerações deixaram suas marcas em cavernas, nas margens de rios, em pântanos, no fundo de lagos e até no gelo das geleiras. Ainda assim, para nós eles são povos estranhamente nebulosos, porque não podemos lhes dar um nome. Os cientistas resolvem o problema ao nomear grupos étnicos de acordo com relíquias importantes ou sítios arqueológicos; porém, desse modo, eles apenas mascaram o drama do anonimato.

O primeiro povo da Europa Central a despontar desse anonimato foram os celtas.

Os antigos gregos chamavam os povos que habitavam essa região - e falavam um idioma comum - de keltós ou kéltai (celtas). Eles anotaram suas observações e, desse modo, as registraram para todo o sempre. Assim, as diversas relíquias que os arqueólogos desenterram do solo, ganham um contexto intelectual e espiritual que falta aos achados mais antigos: para nós, homens modernos, são os traços materiais e uma memória escrita que de fato constituem uma cultura.

Mas essa primeira cultura centro-europeia é intrigante: ninguém sabe dizer exatamente onde ela surgiu, que nome os primeiros celtas deram a si mesmos, como eles batizaram rios, montanhas e florestas, como chamavam seus assentamentos ou em que deuses eles acreditavam. Nem aos menos se sabe se eles se autodenominavam "celtas", se suas tribos e povos se sentiam coesas, como uma unidade, ou se eles apenas foram considerados um povo pelos observadores gregos.

Sabe-se com certeza que os celtas nunca construíram um grande império e que durante toda a sua existência praticamente não escreveram uma única frase que tenha sobrevivido aos milênios. Quando a sua cultura finalmente desapareceu, uma parte significativa de sua herança intelectual e espiritual também foi apagada para sempre.

Sendo assim, aos arqueólogos e historiadores resta apenas se empenhar em uma busca de pistas para descobrir quando começou essa cultura celta. Onde ela se originou e por quê?

Em suma: quem foram os primeiros celtas?
Essa espada foi encontrada no túmulo de um príncipe às margens do rio Meno


I. PRIMEIROS TESTEMUNHOS
O mais antigo documento transmitido que fala dos celtas é lacônico e enigmático. Trata-se do périplo de um grego anônimo que compôs uma espécie de carta marítima em forma de texto, com a descrição das costas e faixas terrestres com a qual os capitães de navios poderiam se orientar em viagens de longa distância. Há séculos esse relato, provavelmente escrito por volta de 600 a.C., vinha sendo transmitido apenas em fragmentos e descrevia as regiões oeste e norte da Europa. No texto, os celtas foram citados uma única vez: eles viviam em "uma terra que haviam roubado dos ligúricos".

Outros indícios antigos sugerem que isso provavelmente se referia à Provença, o interior da costa sul da França. Mas o testemunho deixa claro que essa região não fazia parte da terra natal original dos celtas - caso contrário, ela não poderia ter sido "roubada".

O próprio Nome deles é muito estranho

Por volta de 450 a.C., o grego Heródoto, um dos maiores historiadores da Antiguidade, parece escrever com mais precisão: "O Danúbio, que vem da região dos celtas e da cidade de Pyrene, percorre o centro da Europa. Mas os kéltai vivem além das Colunas de Hércules."

O cronista, porém, que nunca viajou por essa parte do continente, vinculou duas regiões diferentes: para os antigos gregos a expressão "além das Colunas de Hércules" significava "além do Estreito de Gibraltar" - uma descrição vaga para todas as terras conhecidas no oeste e norte da Europa, situadas às margens do Atlântico e, portanto, alcançáveis por navio. A área do Danúbio superior, entretanto - "de onde o rio vem" - abrange o espaço do atual leste da França, do sudoeste da Alemanha, e do noroeste da Suíça.

Portanto, até os gregos, na época a cultura mais desenvolvida da Europa com seus historiadores, geógrafos, poetas e marinheiros que navegaram até o Atlântico, e que tinham uma ideia aproximada da localização dos rios Ródano, Sena, Reno, Danúbio e Elba, praticamente desconheciam os celtas nos primórdios de sua cultura.

Sabe-se apenas que eles encontram pessoas do sul da França até a costa atlântica e o alto Danúbio a quem chamam de kéltai. Mas o que significa essa palavra? De acordo com uma teoria moderna, kéltai poderia significar "os grandes, superiores".

Mas: será que essas pessoas se autodenominavam assim? No sentido étnico eles pertenciam a um único povo? Ou o termo designa povos diferentes que, do ponto de vista grego tinham coisas importantes em comum? Coisas de que seus povos vizinhos não dispunham? E o que seria isso? Um idioma comum, uma religião comum? Ou aspectos externos, como uma forma uniforme de se vestir, armas, joias?

Tudo isso é possível, mas nada pode ser provado. Por volta do ano 600 a.C., os celtas já deviam parecer um povo amplamente difundido aos olhos dos marinheiros e aventureiros gregos - mas, quando e onde procurar as suas origens, é algo que nem os escritos mais antigos revelam.

Isso é algo que somente os testemunhos silenciosos dos celtas poderiam fazer.
Os celtas construíam túmulos diferenciados, em forma de colinas, para homens e mulheres influentes. Muitas vezes, esses lugares eram delimitados com estacas de madeiras ou pedras e assim marcados como lugares sagrados - como este, perto da fortaleza de Heuneburg. Uma sepultura semelhante foi descoberta às margens do rio Meno (veja o texto), porém não foi conservado


II. O PRIMEIRO PRÍNCIPE
Um rio sinuoso. Água cinzenta, margens pantanosas. Tufos de um denso nevoeiro enroscam nos galhos do salgueiro. Amieiros e choupos se enraizaram no terreno pantanoso. A cerca de mil passos atrás da margem do rio, o solo se eleva, formando uma colina perfeitamente redonda, coberta de grama, e medindo mais de quatro metros de altura e 36 metros de diâmetros. Uma grande estrela de brilho avermelhado (pedra vertical em que os antigos faziam inscrições), do tamanho de um homem e cinzelada rudimentarmente, ergue-se ao pé da colina, imóvel e silenciosa como um guardião.

Este é um lugar sagrado. Um túmulo.

No interior da colina se oculta uma câmara de carvalho. Nela repousa um homem morto, de 50 ou 60 anos, aproximadamente 1,75 metro de altura, grande e musculoso em vida, com uma espada magnífica ao lado além de outros tesouros.

Um lugar mágico, como de uma lenda antiga - que hoje se encontra em uma faixa da periferia urbana, em um pequeno bosque de carvalhos, nas cercanias de Frankfurt, na Alemanha.

Por volta de 700 a.C., quando o defunto foi colocado na câmara, no entanto, a colina funerária dominava toda a bucólica paisagem agreste que o rio Meno havia esculpido entre as florestas e os prados. O homem, cuja paz eterna foi perturbada em 1966 por arqueólogos, é intitulado de "príncipe celta" pelos pesquisadores. Seu túmulo é tão grandioso e as oferendas em sua câmara mortuária tão magníficas, que eles concluíram que o morto devia ter desfrutado de uma posição de destaque.

Ao longo dos anos, muitas colinas funerárias como esta foram pesquisadas, mas nenhuma delas abrigou restos mortais de um período mais antigo do que esse túmulo às margens do Meno.



Por essa razão, aquele homem anônimo e suas oferendas esplêndidas se transformarão em testemunhos de uma reviravolta épica na Europa Central - uma revolução que trouxe os celtas à luz da história.

Isso por que, a partir de cerca de 800 a.C., o mundo da Europa Central e a cultura de seus povos se modificam drasticamente - abrangendo ao mesmo tempo uma região vasta e uniforme - que os arqueólogos dataram o surgimento dos celtas precisamente naquela época.

A partir de 800 a.C., mais ou menos, o clima piora acentuadamente. Esse cataclismo climático (cujas origens são um mistério) provocou, durante décadas, temperaturas mais baixas e chuvas mais fortes e frequentes. Uma das consequências disso foi que assentamentos humanos milenares às margens de rios e lagos literalmente foram consumidos pelas inundações. De repente, populações inteiras se viram obrigadas a procurar novos territórios em áreas mais altas.

Naquelas mesmas décadas, aproximadamente, a Europa Central também deu o salto cultural da idade do bronze para cea idade do ferro. O bronze, uma liga de cobre e estanho, já era conhecido há séculos, sendo utilizado para fabricar armas e ferramentas, utensílios domésticos e até para objetos tão cotidianos como agulhas para prender as vestes. No entanto, esse material era relativamente maleável e pouco rijo - e o cobiçado estanho, raro na Europa, era encontrado principalmente no sul da Inglaterra.
Quando toda uma cultura desapareceu
Por volta do ano 80 a.C., um incêndio destruiu esse muro no monte Vully, uma fortaleza construída acima do lago Murten, na Suíça, mas ele foi reconstruído posteriormente como um memorial. Nessa mesma época, as cidades celtas no sul da Alemanha também decaíram e nas décadas seguintes toda a região se transformou em um ermo praticamente despovoado. Os pesquisadores especulam até hoje por que a civilização celta tão altamente desenvolvida entrou em colapso. Alguns suspeitam que germanos vândalos e saqueadores foram os responsáveis; outros acreditam que epidemias ou secas devastadoras expulsaram os habitantes da região


O ferro, por outro lado, podia ser explorado em muitos lugares. Mais duro do que o bronze, porém, o minério tinha que ser laboriosamente derretido durante horas a fio, a temperaturas superiores a 1.000ºC, em complexos fornos alimentados por pilhas enormes de carvão de madeira. Por volta de 1500 a.C., essa técnica é dominada pela primeira vez na Anatólia; a partir de então esse conhecimento se espalha lentamente rumo ao Mediterrâneo, chegando por fim à Grécia.

Por volta de 800 a.C., o primeiro ferreiro celta deve ter sido instruído nos segredos dessa arte - provavelmente por um mestre do sul. A partir de então, as pessoas ao norte dos Alpes começaram a extrair ferro - de início somente um pouco, porque a produção continuava sendo difícil -, mas progressivamente esse material rijo e durável passou a ser usado para fabricar armas e ferramentas.

Paralelamente, o bronze continuou sendo importante como matéria-prima para produzir utensílios domésticos e joias: ele podia ser derretido por meio da antiga tecnologia e moldado mais facilmente em formas mais complexas e elaboradas. A demanda de cobre e estanho chegou até a aumentar. Nessa época, os gregos avançam pelo Mediterrâneo e fundam colônias no sul da Itália, na Sicília, e por fim na Provença, onde, por volta de 600 a.C., nasce a atual Marselha.

Seus concorrentes são os fenícios, procedentes do Oriente (levante), que também constroem colônias no oeste, entre elas, Cartago. Além disso, no final do século 8, um povo enigmático também consegue dar o salto para uma cultura mais elevada na Itália central. Eles fundam cidades, utilizam a escrita, e comércio de longa distância com matérias-primas e tesouros: os etruscos.

Os fenícios, e mais tarde os cartagineses, se alternam no domínio do mar e por fim bloqueiam o Estreito de Gibraltar ao tráfego de todos os navios estrangeiros. De lá em diante, somente eles comercializam com a Espanha e, através de uma rota marítima no Atlântico, com a Inglaterra rica em estanho.

Por essa razão, os rivais gregos e etruscos não conseguem mais transpor os mares. Em vez disso, em busca de estanho (e outras matérias-primas, como o âmbar do Mar Báltico), eles desenvolvem contatos comerciais com a distante Europa central avançando de Massalia até o Ródano e o Sena. E, passando por diversos desfiladeiros alpinos e pela região do Danúbio, eles finalmente chegam ao Reno e ao Elba.

Os emissários das civilizações mediterrâneas levam tesouros de intercâmbio ao Norte: recipientes de bronze, vinho e cerâmicas preciosas.

Desse modo, o mundo das pessoas que vivem ao norte dos Alpes muda dramaticamente: por meio do clima mais frio e úmido, através do novo metal (ferro) - e devido aos estrangeiros do sul que apresentam maravilhas até então desconhecidas.

Nessa confusão surge uma cultura que os pesquisadores batizaram de "celta" e que agora passará por muitas inovações revolucionárias; entre elas, o aparecimento de novos assentamentos - porque os antigos afundaram ou estão afundando.

Forma-se também uma espécie de protoindústria do ferro: os pesquisadores estimam que só o peso dos montes de escória procedentes dos fornos de derretimento celtas variam de um a dois milhões de toneladas.

Além disso, nasce uma nova cultura funerária: ao contrário de seus antepassados, os poderosos dessa época não se deixam mais cremar, mas enterrar.


A cultura celta surgiu no início da idade do ferro. Um modo de vida semelhante unia as pessoas que habitavam desde o leste da França, passando pelo sul da Alemanha, até a Hungria: elas construíam túmulos em forma de colinas, forjavam armas e ferramentas de ferro e fechavam suas túnicas com fivelas ornamentadas. Os celtas provavelmente foram chamados pela primeira vez de "keltoi" por estudiosos gregos do século 6 a.C.; mas os arqueólogos preferem o termo "Cultura de Hallstatt", em homenagem a um importante sítio arqueológico encontrado na Áustria


Paralelamente desenvolve-se uma nova forma de arte, inspirada por gregos e etruscos: estrelas em forma humana, representações de rostos em bronze, cerâmicas com ornatos geométricos. Acima de todas essas novas conquistas, surge um novo poder: os líderes de clãs e tribos agora conquistam uma grande influência - possivelmente porque são descobertas jazidas significativas de minério de ferro em seu território. Ou porque eles têm ferreiros muito habilidosos em suas fileiras; ou ainda porque eles controlam os lugares mais importantes ao longo das rotas comerciais recém-criadas, como cursos de rios, passos ou as vaus por onde se cruzam os rios.

Além disso, os grupos e as tribos estão vinculados por uma língua comum. Linguistas reconstruíram seu desenvolvimento a partir de idiomas da família céltica utilizados até hoje (como o irlandês e o bretão), de nomes geográficos tradicionais e dos poucos "documentos" celtas antigos, escritos com pouquíssimas letras etruscas, gregas ou latinas (em geral, de lápides funerárias do período que antecedeu o desaparecimento dos celtas). De acordo com os estudos, os linguistas suspeitam que ela já tenha se originado por volta de 1300 a.C. - mas não existem provas cabais para isso.

O idioma celta era uma língua Universal em toda a Europa

Alguns detalhes, porém, indicam que foi no espaço localizado na extremidade norte dos Alpes que se falou celta pela primeira vez: portanto, precisamente naquela região da qual, segundo Heródoto, "provém" o Danúbio, e os celtas têm a sua terra natal.

Por volta de 800 a.C., o idioma celta já é falado do Danúbio até o Meno; da Borgonha até a Boêmia. Mais tarde, essa área linguística deve ter-se estendido até a costa atlântica, a Península Ibérica e a planície húngara. Não está claro, porém, para quantas pessoas dessa gigantesca região o celta é a língua-mãe ou apenas uma língua franca - um idioma comercial compreendido através de várias fronteiras geográficas (como o latim na Idade Média).

Portanto, tudo indica que no turvo período do século 8 a.C. formou-se um povo composto por incontáveis tribos - não necessariamente da mesma etnia - e dispersas pela metade da Europa central. Uma comunidade supranacional, unida por vestimentas semelhantes, ritos religiosos comuns, uma criatividade técnico-artística parecida, joias, armas e acima de tudo, um idioma compreensível para todos.

Nesse povo, parece que o poder é reservado a uns poucos homens de destaque que hoje são chamados de "príncipes" (já que ninguém conhece seus títulos antigos). São nobres que já não se deixam mais cremar após a morte: seus corpos agora descansam embaixo de monumentais colinas funerárias, em cujas cercanias os arqueólogos já descobriram muitos outros túmulos idênticos - evidências de que para muitas gerações foi importante ser enterrado à sombra de seu príncipe.

III. ÀS MARGENS DO DANÚBIO
O mundo dos celtas vivos se evidencia naquela região que Heródoto já chamava de o coração da terra desse povo.

Em um vale de quatro quilômetros de largura, não muito longe das margens do Danúbio superior, perto da cidade de Sigmaringen, no sul da Alemanha, desponta na paisagem uma estrutura triangular, a 60 metros acima do rio. Com 300 metros de comprimento e uma base de 150 metros de largura, aquele seria um lugar ideal para um assentamento humano.

Aqui se bifurcam caminhos que vão longe, pois o Danúbio facilita uma conexão transversal dos rios franceses (a famosa "rota do estanho" que vai do Mediterrâneo até o Atlântico) com os rios alemães (a chamada "rota do âmbar", que se estendia do Adriático ao Báltico).

O povoado poderia ter sido uma espécie de ponto de encontro, a partir do qual os comerciantes viajavam por cima dos passes alpinos até os etruscos, na Itália. Nas décadas após 600 a.C., esse "esporão" na paisagem será palco de um desenvolvimento civilizatório inédito: os habitantes da região construirão uma fortificação (um burgo) aqui - em pouco tempo o pico da colina será cercado por uma muralha de 750 metros de extensão, quatro metros de altura, caiada de branco e guarnecida de um passadiço de madeira, torres e pelo menos dois portões.

Embora muralhas não fossem uma novidade ao norte dos Alpes - construções de madeira, terra e pedras - o que aconteceu em Heuneburg foi algo muito estranho: os construtores do burgo trouxeram imensos blocos de pedra calcária, de centenas de quilos, de uma distância de pelo menos cinco quilômetros. Elas formaram o alicerce da muralha. Em seguida, os operários moldaram - e secaram ao ar livre - quase meio milhão de tijolos rigorosamente padronizados (cerca de 40 x 40 x 10 cm), feitos com uma mistura de lama do Danúbio, palha e pó de pedra, que foram assentados sobre o alicerce.

Nunca antes uma muralha desse gênero havia sido erguida na Europa central.

Até agora, os arqueólogos só desenterraram muralhas de tijolos de barro assentados sobre um alicerce de pedra calcária na região do Mediterrâneo, na Provença, na Sicília e no Levante. Os gregos costumavam cercar suas cidades desse modo e alguns de seus rivais marítimos, como os fenícios provenientes do Líbano. Portanto, a fortificação de Heuneburg se assemelha até os mínimos detalhes às fortalezas do sul - em detalhes técnicos ela é ainda mais parecida com as obras fenícias do que as gregas.

A charada da fortaleza na realidade só pode ser explicada da seguinte maneira: um mestre de obras do sul deve ter concebido essa muralha de tijolos. Nenhum habitante nativo, que o acaso tivesse levado à região do Mediterrâneo e que viu esses paredões por lá e mais tarde voltou para casa, poderia ter construído essa fortaleza sem qualquer experiência em construção - sua execução é perfeita demais, a logística organizada demais para poder ser apenas uma imitação improvisada.

No período tardio da idade do ferro, a cultura celta se estendia até o Atlântico e o Mar Negro - principalmente porque eles pareciam ser superiores a outros povos. Nas Ilhas Britânicas falava-se um dialeto celta, e alguns celtas foram levados à atual Turquia como mercenários e se estabeleceram por lá. Mais tarde, pesquisadores também descobriram inscrições celtas no nordeste da Espanha. Esse povo criou uma arte própria, deu continuidade ao aprimoramento da metalurgia e à fabricação de armas, e as diversas tribos celtas fundaram grandes assentamentos fortificados. Os arqueólogos chamam essa época de cultura ou período de "La Tène", nome de um sítio arqueológico na Suíça
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Revista GEO

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