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A MPB é um constructo cultural, e como tal nem sempre existiu e nem sempre quis dizer a mesma coisa
A sigla “MPB” apareceu na língua portuguesa em algum momento dos anos 1960, como uma abreviação de “música popular brasileira”. Mas o que se entendia então, e o que se entende hoje, por “música popular brasileira”? A popularidade da música é algo de difícil definição, e, quem sabe, apenas um pouco menos volátil que a popularidade dos políticos.
Talvez seja útil recuar um pouco na história. No século 19, por exemplo, não se falava, salvo engano, em música popular brasileira. Até a libertação dos escravos, estes não eram legalmente considerados como parte do “povo”, e suas formas de expressão sonora não eram consideradas como “música popular”. Aliás, mesmo depois disto, havia quem nem visse razões para chamá-las de “música”. O crítico literário Sílvio Romero, um dos primeiros a se interessar por estes assuntos, chamou seu livro aparecido em 1883 de Cantos populares do Brasil, e não Música popular do Brasil. Talvez, naquele momento, a expressão “música popular” pudesse ser vista como contraditória: a palavra “música” seria reservada para uma das Belas Artes, praticada e usufruída pela aristocracia do fino gosto; e pelo povo só na medida em que se identificasse com os valores daquela. Como escreveu o pianista Arnaldo Estrela em 1931: “Este é o mês do carnaval. (…) Enquanto a Sra. Música no seu recolhimento austero goza as férias de verão, a musa popular samba e canta ao léu das ruas.” (Citado em Andrade, 2004:30)
Por outro lado, no título escolhido por Romero, o emprego do qualificativo “do Brasil”, em vez de “brasileiro”, sugere que os cantos seriam cantados aqui, mas talvez não necessariamente criados aqui, ou de caráter intrinsecamente identificado ao país. (De fato, as pesquisas do crítico sergipano deram grande ênfase à permanência de canções portuguesas entre nós).
Mais tarde, nas primeiras décadas do século 20, Mário de Andrade e outros estudiosos consideraram que o povo brasileiro (formado, na concepção vigente, sobretudo pela população rural) tinha sido capaz de criar expressões musicais próprias, às quais atribuíram grande valor tanto em termos de beleza, quanto de identidade cultural. Esta música foi chamada de “popular”, e talvez a principal obra de síntese escrita sobre ela, da autoria da discípula de Mário de Andrade, Oneyda Alvarenga, teve por título Música popular brasileira (primeira edição em 1947).
Contudo, foi também nas primeiras décadas do século 20 que novas formas de expressão sonora, ligadas ao mundo das cidades, e também a novas formas de tecnologia (como os discos e o rádio), passaram a ganhar crescente importância no país. Compositores como Sinhô, Noel Rosa, Ari Barroso, e intérpretes como Francisco Alves, Carmen Miranda e tantos outros, ganharam entre 1920 e 1940 um novo e logo imenso público, predominantemente urbano, de consumidores de discos e programas de rádio. Esta música, num primeiro momento, não foi chamada de “popular” – pelo menos não por pensadores da estirpe de Romero e Andrade. Tal palavra, para eles, estava por demais associada a certos ideais nacionais, incompatíveis com os ingredientes cosmopolitas e comerciais que, em maior ou menor medida, entravam na composição daqueles novos sambas, marchas e frevos. Esta música foi por isso chamada de “popularesca”, palavra cuja conotação pejorativa não se pretendeu disfarçar.
No decorrer do século 20, porém, esta expressão foi abandonada, e a música urbana passou a ser conhecida como “popular”, adotando-se para a música rural a etiqueta de “folclórica”. A história destas mudanças ainda está para ser contada em detalhes, mas pode-se avançar algumas idéias. Em primeiro lugar, o monopólio do discurso sobre música por parte dos intelectuais tradicionais sofreu no período fortes abalos. A nova música urbana já vinha com seus próprios intelectuais: Alexandre Gonçalves, autor de O choro; Francisco Guimarães, autor de Na roda do samba; Orestes Barbosa, autor de O samba (além de compositor); Almirante, radialista (além de cantor e compositor); Ari Barroso, radialista e vereador (além de pianista e compositor). Todos eles tinham profundas ligações pessoais com a música sobre a qual vieram a manifestar-se como autores de livros, jornalistas, radialistas, e pelo menos em um caso, político. É natural que não quisessem chamá-la com uma etiqueta pejorativa como “popularesca”.
Em segundo lugar, os herdeiros de Sílvio Romero e Mário de Andrade passaram a adotar a expressão “música folclórica” em vez de “música popular”. Esta mudança pode, por sua vez, ter duas explicações. A primeira, é que Renato Almeida e Oneyda Alvarenga entre outros, reconheceram na música dos rádios e dos discos não só o que poderíamos chamar de “popularidade adjetiva” (que seria a “popularesca”, sinônimo de aceitação ampla), mas também “popularidade substantiva”, associada aos nobres ideais da nacionalidade. (A outra face desta moeda, é que personagens depois considerados como ilustres pioneiros da MPB – como Pixinguinha, Donga, Noel Rosa, Almirante – começaram sua carreiras fazendo músicas que, pelos padrões dos anos 1960-70, seriam consideradas “folclóricas”).
A segunda explicação é que a cultura anglo-americana substituiu a cultura francesa como influência dominante no país. Na França, usa-se (ainda hoje) a expressão musique populaire, e não musique folklorique, para designar as expressões sonoras rurais de caráter tradicional. Em inglês, estas são ditas folk music, enquanto popular music corresponde grosso modo ao “música popular” da sigla MPB.
Assim, nos anos 1950 aparece no Rio de Janeiro a Revista de música popular que tem como tema central os compositores e intérpretes do rádio e dos discos. Em 1976, Zuza Homem de Mello publica um livro com o mesmo título daquele que Oneyda Alvarenga publicara em 1947, Música popular brasileira. O conteúdo, entretanto, mudara inteiramente. Agora, falava-se de bossa-nova, e não de bumba-meu-boi; e os personagens não eram mais agricultores anônimos, mas Tom Jobim, Chico Buarque, Elis Regina e seus colegas. Ainda mais interessante, da mesma maneira como o público havia entendido nos anos 1940 o significado do título do livro de Alvarenga, entendeu nos anos 1970 o do livro de Homem de Melo.
E a sigla MPB? Ao que tudo indica, ela aparece no início dos anos 1960, mas não se sabe o momento exato. Um dos seus primeiros registros conhecidos é o nome do conjunto MPB-4. Segundo o Dicionário Cravo Albin (www.dicionariompb.com.br): “O histórico do grupo remonta a 1962, inicialmente com formação de trio, integrado por Ruy, Aquiles e Miltinho, responsáveis pelo suporte musical do Centro Popular de Cultura da Universidade Federal Fluminense (filiado ao CPC da UNE), em Niterói. A partir do ano seguinte, com a adesão de Magro, passou a atuar como Quarteto do CPC (…). Em 1964, com a extinção dos CPCs, Magro e Miltinho, na época estudantes de Engenharia, batizaram o conjunto como MPB-4, o que provocou por parte de Sérgio Porto o comentário de que o nome do quarteto parecia ‘prefixo de trem da Central do Brasil’”.
O comentário de Sérgio Porto parece mostrar que a sigla, se não foi inventada pelo grupo, ainda não seria usual naquele momento. Mas a menção a uma outra sigla – CPC – é muito significativa neste contexto. Antes do golpe militar de 1964, se o grupo era conhecida como “Quarteto do CPC”, ele seria algo como o “CPC-4”. Depois do golpe, os CPCs são proscritos, mas não parece improvável que a nova sigla de três letras, rima incluída, e com o “P” de povo por assim dizer no centro, tenha sido sugerida pela recente (e agora censurável) ligação do quarteto. De fato, como argumentei em outro lugar (Sandroni, 2004), a sigla MPB condensa, além de significações musicais – na qual “popular” se define por oposição a “folclórico” e “erudito” – associações políticas, onde ecoam não apenas os CPCs de antes do golpe, mas também o MDB de depois do golpe.
A significação da sigla como etiqueta mercadológica é mais recente e talvez incompatível com as outras duas. A partir dos anos 1990, há uma crescente fragmentação do panorama musical, que põe em cheque a concepção de música-popular-brasileira como frente única e compactada. Tal mudança liga-se, entre outros fatores, à afirmação de identidades musicais regionais ou estaduais (mangue-beat pernambucano, axé baiano), transnacionais (rap, funk) ou de popularidade considerada meramente adjetiva – embora a palavra “popularesco” não tenha sido ressuscitada (forró estilizado, pagode romântico).
Neste contexto fragmentado, a MPB passa a ter uma segunda vida, designando agora uma parcela do mercado de consumo, uma prateleira entre as prateleiras das lojas de discos: aquela onde repousam os CDs de Chico Buarque, Djavan, Gal Costa e outros compositores e intérpretes surgidos para a fama nos anos 1960 e 1970.
Para concluir, acredito que a discussão sobre a situação da MPB pode ganhar com a contextualização histórica das concepções de “música”, “popular” e “brasileiro”. A MPB é um constructo cultural, e como tal nem sempre existiu e nem sempre quis dizer a mesma coisa.
Bibliografia:
Alvarenga, Oneyda. Música popular brasileira. São Paulo: Duas Cidades, 1982.
Andrade, Nivea Maria da Silva. Os significados da música popular : a revista Weco, revista de vida e cultura musical (1928-1931). Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de História, 2004.
Mello, José Eduardo Homem de. Música popular brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
Sandroni, Carlos. “Adeus à MPB”. Em Decantando a República, B. Cavalcante, H. Starling e J. Eisenberg (orgs.), Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p.23-35.
Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1954.
Carlos Sandroni
é sociólogo, doutor em Música pela Universidade de Tours, na França, e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-33, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001
Revista Cult
Faltou citar o livro do Tinhorão: música popular brasileira, um tema em debate.
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