Jornalista que testemunhou o massacre conta que policiais
abriram fogo de repente – e sem motivo para provocar a matança.
‘Não vi nenhuma arma entre os negros’, relata ele
Sem culpa e sem defesa: 'A maioria dos corpos estava esticada na estrada que rasgava o campo em que estávamos', diz Tyler
O jornalista Humphrey Tyler, editor-assistente da revista sul-africana Drum,
cobria profissionalmente a manifestação convocada pelo Congresso
Pan-Africanista em Sharpeville. Ele garante que a multidão não
representava ameaça à polícia, e que as forças de segurança abriram fogo
sem prévio aviso contra homens, mulheres e crianças desarmados. “A
polícia estava com medo”, conta. A seguir, seu relato sobre o ocorrido.
Chegamos a Sharpeville pelos fundos, atrás de um carro cinza da polícia e de três tanques Saracen. Enquanto dirigíamos pela periferia da township, ouvimos muitas pessoas gritarem o slogan Pan-Africanista “Izwe Lethu”, que significa “Nossa Terra”, e fazerem também o sinal de “liberdade” com os polegares erguidos. Elas estavam sorrindo, felizes; ninguém parecia ter medo. Conforme nos aproximamos da delegacia, vimos mais e mais pessoas nas ruas. Havia muitos policiais, também, com mais armas e munição do que uniformes... Um africano se aproximou de nós, e disse que era o líder local do Congresso Pan-Africanista. De acordo com ele, sua organização era contra a violência e estava ali para uma demonstração de paz. A multidão realmente parecia amigável. Certamente, nunca passou por nossas cabeças que essas pessoas iriam nos atacar, ou a alguém.
De repente, alguns gritos secos de “Izwe Lethu”, parecendo de mulheres, vieram do local próximo onde estava a polícia, e vi algumas pessoas contornando os tanques, com as mãos levantadas na saudação africanista. Então os tiros começaram. Ouvimos o barulho de uma metralhadora, depois outra, depois outra. Havia centena de mulheres, algumas delas rindo. Elas devem ter pensado que a polícia estava usando balas de festim. Uma mulher foi atingida a menos de dez metros de nosso carro. Seu companheiro, um jovem rapaz, achou que ela tivesse tropeçado. Então ele a virou e viu que seu peito havia sido despedaçado pelo tiro. Ele olhou para o sangue em suas mãos e gritou, “Meu Deus, ela se foi!”. Centenas de crianças também corriam.
Um garoto estava se protegendo com um antigo cobertor, que mantinha esticado acima de sua cabeça, pensando, talvez, que o pano poderia salvá-lo das balas. Algumas das crianças, pouco mais altas que a grama, estavam saltitando como coelhos. Algumas também foram alvejadas. Os tiros continuavam. Um policial estava em cima de um tanque Saracen, e parecia que estava mirando sua arma em direção à multidão. Ele movia sua metralhadora na horizontal, formando um arco, como se estivesse manejando uma filmadora. Dois outros policiais estavam com ele, e tive a impressão que estavam atirando com revólveres. A maioria dos corpos estava esticada na estrada que rasgava o campo em que estávamos.
Uma a uma, as armas pararam. Antes dos tiros, não ouvi nenhum aviso para a multidão se dispersar. Não houve aviso. Os tiros começaram e só cessaram quando não havia mais almas vivas em frente à delegacia. Os policiais alegam que estavam desesperados e em perigo porque a multidão estava atirando pedras contra eles. Mas apenas três policiais foram atingidos, e mais de 200 nativos foram baleados. A polícia também disse que a multidão estava equipada com “armas ferozes”, que deixaram nas proximidades da delegacia devido à fuga. Eu olhei com muito cuidado, e não vi nenhuma arma. Vi depois também as fotografias da cena do crime. E tudo o que pude ver foram sapatos, chapéus e algumas bicicletas deixadas junto aos corpos. A multidão não me fez sentir medo em nenhum momento, apesar de eu, com minha pele branca, andar no meio dela sem nenhum tipo de proteção. Eu acho que a polícia estava com medo – e a multidão sabia disso.
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