sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Decadência cultural na Idade Média


Livro traça decadência cultural na Idade Média

MARCELO COELHO

O tema deste livro é dos mais restritos. Trata-se da descoberta, em 1417, da cópia de um poema filosófico escrito pelo romano Lucrécio, por volta de 50 a. C.

Com um talento jornalístico raro entre pesquisadores acadêmicos, Stephen Greenblatt transformou esse acontecimento num passeio apaixonante pelos palácios de Florença e pelas paredes salpicadas de sangue dos conventos medievais.

O poema de Lucrécio intitulava-se "De Rerum Natura" ("Sobre a Natureza das Coisas", ou "Da Natureza", como prefere a atual edição). Considerado "sublime" na Antiguidade, dele só restavam alguns poucos fragmentos quando Poggio Bracciolini, alto burocrata do Vaticano, encontrou-o nas prateleiras de um convento alemão.

Greenblatt aproveita a deixa para traçar, em páginas arrepiantes, o relato da decadência cultural na Idade Média. A sabedoria da Antiguidade tinha a fragilidade do material de que era feita. Papiros se desfizeram enquanto desaparecia o público interessado em novas cópias.

Restaram os mosteiros, onde o trabalho de reproduzir manuscritos era uma alternativa à atividade mais rude de lavrar a terra. Mesmo assim, as ideias sinistras que temos da Idade Média são confirmadas por Greenblatt.

Não era permitido aos monges perguntar pelo sentido do que copiavam. Santos eruditos como são Jerônimo (347-420) e são Bento (480-547) renegaram seu gosto pelos clássicos, identificando-os ao pecado.

Outra passagem da vida de são Bento é mencionada. Certa vez, o santo percebeu que estava se lembrando, com desejo, de uma mulher. Atirou-se então numa moita de espinhos e urtigas, rolando nela até ficar coberto de sangue.

Elogio da dor, anti-intelectualismo, fervor religioso: os tempos não eram propícios para as teorias de Lucrécio. O poeta defendia a busca do prazer terreno, e descreve o mundo e os astros como produtos acidentais do encontro de átomos à deriva.

"Deriva" ou mesmo "declinação" dos átomos seriam termos mais exatos para traduzir o "clinamen" de Lucrécio, em vez dessa "Virada", que dá o título ao livro de Greenblatt na edição brasileira. É que importa transformar um fato específico numa espécie de evento fundacional. A descoberta do manuscrito de Lucrécio é identificada como "o nascimento do mundo moderno".

Por mais importante que tenha sido a leitura de Lucrécio para Montaigne, o fato é que o mundo medieval já estava em crise antes da descoberta de Bracciolini. Aliás, o florentino só foi parar num convento da Alemanha porque seu empregador, o papa, havia sido deposto e preso numa rebelião eclesiástica.

O entusiasmo de Greenblatt, de todo modo, contagia o leitor; escrevendo num país tomado pela hipocrisia religiosa e pelo declínio da cultura letrada, pode-se entender o ímpeto com que narra essa história de prazer pelo conhecimento erudito.


AUTOR Stephen Greenblatt
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Caetano Waldrigues Galindo (304 págs.)

Folha de S. Paulo

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