domingo, 18 de novembro de 2012

Anita, a heroína de dois continentes

A saga da companheira de Giuseppe Garibaldi, uma mulher movida pela paixão e pela aventura

MILU LEITE

O primeiro encontro de Giuseppe e Anita /
Ilustração de Edoardo Matania

O ano de 2011 é dedicado a comemorações na Itália, e o nome da brasileira Anita Garibaldi tem sido mencionado em inúmeros eventos que, se não ocorrem diretamente em sua homenagem, não lhe furtam o merecido destaque na história do Risorgimento, movimento que culminou com a unificação daquele país 150 anos atrás. Anita é amada pelos italianos na mesma medida em que é venerado ali seu companheiro de lutas e aventuras, Giuseppe Garibaldi. O casal combateu ao longo de um ano aqueles que se opunham à ideia de uma Itália unida e forte, até o dia em que a morte derrubou definitivamente Anita, quando ela e o marido fugiam de Roma, em 4 de agosto de 1849. Antes de tornar-se heroína na Itália, porém, Anita já tinha lavrado seu nome na história do Brasil, ao participar ativamente da Guerra dos Farrapos, e da do Uruguai, onde viveu ao lado de Garibaldi por sete loucos anos.

Sendo, então, Anita e Giuseppe um casal intercontinental, nada mais apropriado que Brasil e Itália os lembrarem como símbolo das boas relações entre as duas nações durante o evento intitulado Momento Itália-Brasil, que ocorre de outubro deste ano a junho de 2012, em diversas cidades brasileiras. A declaração de apoio à iniciativa, assinada pelos presidentes dos dois países em 2010, destaca os objetivos de aprimorar as relações econômico-comerciais, tecnológicas, científicas, culturais e educacionais entre os dois povos. A programação é extensa e, como não poderia deixar de ser, inclui um espetáculo teatral sobre a heroína: Anita dei Due Mondi, trazido pela produtora Dell’Arte.

A vida de Anita Garibaldi, nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro, é um prato cheio para os escritores, já que pode não só ser narrada com dados reais como ser romanceada com doses de imaginação que vão de uma sutil pitadinha de pimenta a um sacolão de temperos. Por exemplo, determinar a data e o local de seu nascimento já demandou de todo biógrafo que vasculhou sua vida pesquisas em montanhas de papéis com declarações, suposições e deduções. Chegou-se a um consenso (não falemos em unanimidade), apesar de não haver documento de registro que comprove os seguintes dados: Anita nasceu no dia 30 de agosto de 1821, em algum ponto da extensa faixa que abarcava então a região de Laguna (apenas parte dela corresponde agora a esse município), no estado de Santa Catarina. Alguns acreditam que veio ao mundo mesmo em Laguna, outros, em Morrinhos, hoje bairro de Tubarão. Mas, como bem explica o cartunista José Custódio Rosa Filho, autor da história em quadrinhos Anita Garibaldi, o Nascimento de uma Heroína, “na época, tudo era Laguna. Menos Lages, que foi de São Paulo. Do ponto de vista atual, creio que, mesmo que tivesse nascido em Lages, ela seria, claro, catarinense”. Desnecessário dizer que tanto uma cidade quanto outra disputam o título de berço de Anita, dedicando a ela homenagens e monumentos com igual júbilo.

Contudo, se por um lado a falta de documentação a respeito do que fazia Anita (era analfabeta, portanto as poucas cartas que escreveu não foram de próprio punho) antes de conhecer Garibaldi se interpõe como dificuldade para os biógrafos, por outro o próprio Garibaldi os presenteia, em sua autobiografia, com centenas de linhas a respeito de sua companheira, e como bom romancista prepara o clima antes de introduzir os fatos. É ele quem nos conta, por exemplo, do sentimento que o devorava quando navegava, ainda só, pelas águas do sul do Brasil, em obediência aos planos de Bento Gonçalves, um dos principais articuladores da Revolução Farroupilha: “Era pois uma mulher que se me tornava necessária; só uma mulher me podia curar, uma mulher, quer dizer, o único refúgio, um anjo consolador, a estrela da tempestade. A mulher é uma divindade que nunca se implora em vão, especialmente quando se é desgraçado. Era com este incessante pensamento que, do meu camarote, a bordo do Itaparica, voltava sem cessar o meu olhar para a terra”, escreve Giuseppe nas Memórias.

A essa altura, ele não imaginava que em terra a jovem Ana, então com 18 anos e casada há quatro com o sapateiro Manuel Duarte de Aguiar, seria essa mulher, embora ela já cavalgasse como uma amazona, chamando para si a atenção de muitos homens da região não apenas por sua habilidade na montaria como também, e talvez principalmente, por sua maneira de lidar com eles. De acordo com os biógrafos de Anita, ela já tinha demonstrado ser dura na queda ao menos em duas ocasiões: quando interferiu numa briga de terras de pessoas de seu povoado e quando açoitou o rosto de um rapaz que se metera com ela, com intenção de, talvez, violá-la. Por causa desse último episódio, sua família teria se mudado de casa, temendo represálias.

Tesouro valioso

O encontro entre Anita e Giuseppe é mais um terreno fértil para discordâncias e invenções. Uma vez que depoimentos e declarações foram colhidos somente muitos anos depois, as versões variam em gênero, número e grau. Em sua obra De Sonhos e Utopias... Giuseppe e Anita Garibaldi, a autora Yvonne Capuano seleciona algumas delas. Virgílio Várzea narra um encontro entre a doce e dedicada Ana que acompanhava o marido (um soldado monarquista voluntário), quando ele estava ferido num hospital para os republicanos em Laguna. Teriam ido para lá graças à interferência de Garibaldi. Alguns encontros e... a paixão entre ambos nascera de maneira arrebatadora. De acordo com essa versão, Anita teria implorado a Garibaldi que a levasse consigo quando embarcasse, e ele, depois de tentar demovê-la da ideia, teria cedido aos apelos de seu coração, àquela altura completamente tomado de amor pela jovem.

Outras versões falam de um encontro na igreja matriz, protagonizado por uma Anita impetuosa e atrevida. Todas elas, no entanto, sucumbem diante do relato de Garibaldi, que diz em suas memórias ter avistado com a luneta Anita, ainda quando estava no tombadilho do Itaparica. Ao desembarcar, conta ele, aceitou o convite para um café na casa de um homem que tinha acabado de conhecer. Ao chegar ali, defrontou-se com Anita e, apresentando-se, disse: “Tu devi essere mia”. O homem em questão, segundo alguns, era o marido de Anita. Anos mais tarde, Garibaldi diria: “Havia encontrado um tesouro proibido, mas um tesouro valioso”.

As diferentes versões a respeito do encontro se devem a muitas razões, mas talvez a mais importante esteja vinculada a um fator pouco comentado. Em um breve estudo para o Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a historiadora Cíntia Vieira Souto fala da necessidade de se dar à heroína um caráter virtuoso, recorrendo-se muitas vezes ao embelezamento de suas atitudes. “Anita Garibaldi é uma das poucas mulheres brasileiras que, antes do século 20, participaram, de forma ativa, de episódios políticos e militares da história do Brasil. Ao lado do companheiro, o italiano Giuseppe Garibaldi, atuou em algumas das batalhas decisivas da Revolução Farroupilha em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Foi a primeira mulher brasileira a ganhar um monumento público, o monumento a Garibaldi e Anita em Porto Alegre, em 1913”, ressalta Cíntia. Para gozar de tamanha honra, porém, Anita não poderia ser apenas a mulher corajosa e audaciosa que foi. Não bastaria ser apenas Anita, pois ela, apesar de lutar bravamente por seus ideais, quebrara tabus. Anita deixou o marido para fugir com Giuseppe. Não deu bola para a família, nem para a cidade toda. Simplesmente fez o que lhe deu na telha... e poucas mulheres faziam o que lhes dava na telha no século 19. E, afinal, o que era o Brasil em meados do século 19?

A Revolução Farroupilha eclodiu em 1835 na província do Rio Grande do Sul, em resposta a mais uma elevação de taxas, que penalizava os criadores de gado e os produtores de charque, obrigados a concorrer com os produtores do Uruguai e da Argentina, beneficiados por impostos mais baixos.

Os ideais republicanos já cativavam havia algum tempo parte da população da província e se propagaram ainda mais depois das medidas aplicadas pelo Império. Sendo assim, em 20 de setembro de 1835, os estancieiros dominaram a capital, Porto Alegre, sob a liderança do coronel Bento Gonçalves. Pouco a pouco, o movimento ganhou força, e as tropas imperiais foram perdendo o controle da situação. Um ano depois, foi proclamada a República Rio-Grandense e, em 1839, os revoltosos tomaram Santa Catarina e fundaram a República Juliana.

Somente em 1842 é que a revolução começou a ser debelada, graças à eficaz ação das tropas monarquistas comandadas por Luís Alves de Lima e Silva, que viria a se tornar o duque de Caxias. Dez anos depois de sua eclosão, com o movimento já bastante fraco, o então imperador dom Pedro II propôs um acordo de paz, oferecendo algumas vantagens aos revoltosos, e pôs fim ao levante.

Anita teria assistido ao desfile dos farroupilhas quando estes chegaram vitoriosos a Laguna, em 1939. Simpática aos ideais republicanos (posição contrária à do marido, defensor da monarquia), compareceu à missa em homenagem a Garibaldi e seus companheiros. A fama de Garibaldi, a essa altura com 32 anos, já corria de boca em boca. O marinheiro italiano chegara ao Brasil fugido da Itália, depois de ter decretada sua pena de morte por participação no movimento pela unificação do país. Suas proezas em mar e terra, sua astúcia e valentia já o haviam alçado à categoria de exímio combatente nos anos em que vivera como marinheiro mercante no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que se enfronhava mais e mais nas reuniões dos republicanos. No mais, sua atuação no sul também já havia lhe rendido louros, principalmente depois de ter ele levado por terra os dois lanchões necessários para a tomada de Laguna, fazendo uso de um inteligente estratagema para enganar as forças imperiais.

Construção de um mito

Era esse o Giuseppe com quem Ana Maria de Jesus Ribeiro compartilhou um café no casual encontro que mudaria radicalmente os rumos de sua vida. Em agosto de 1939, ela embarcou no Seival ao lado de Garibaldi e de dezenas de homens e não tardou a exibir seu poder de combate. Exposta a balas na proa, disparava tiros já no primeiro ataque sofrido pelos rebeldes, sobrevivendo em meio a uma dezena de mortos.

O mito Anita se construía aos poucos, com ações, é verdade, mas sobretudo sob o olhar do homem que a amava e escreveria anos depois sobre ela os poucos relatos acerca de sua bravura. Ao colher dados para redigir seu livro Anita Garibaldi – Uma Heroína Brasileira, o jornalista Paulo Markun explica que encontrou algumas dificuldades, mas que a maior “foi separar o joio do trigo. Como Anita foi adotada por Mussolini como a mãe da pátria, surgiram muitas versões fantasiosas de sua trajetória, que já é impressionante, mesmo se circunscrita ao que parece fato”.

Outros episódios de coragem são relatados pelo jornalista em seu livro, mas o mais marcante deles é o que conta a fuga de Anita de um acampamento de prisioneiros em Curitibanos para ir ao encalço de Garibaldi em Lages, 80 quilômetros adiante, primeiro a pé, depois montada num cavalo branco, enfrentando encostas perigosíssimas e as águas do furioso rio Canoas, usando uma espécie de poncho, também branco, que conseguiu pelo caminho. “Assim vestida e com seus cabelos negros despenteados pelo vento, acabou por espantar os que buscavam fugitivos, que a confundiram com uma aparição”, narra Markun em seu livro.

A República Juliana, como se sabe, não vingou. Anita e Garibaldi deixaram o exército republicano e partiram para o Uruguai. Depois de mais de 50 dias de viagem, o casal se estabeleceu em Montevidéu, agora em situação diferente: Anita como dona de casa, Garibaldi como comandante do exército e da esquadra oriental. Casaram-se no dia 26 de março de 1842, graças a uma omissão de Anita, que não revelou seu estado civil. Por essa época, já carregava nos braços o primogênito Menotti e estava grávida de Rosita, que morreria dois anos depois vítima de uma infecção.

Mas, apesar da vida mais tranquila, o casal não se afastou do debate político. Ao contrário, a residência de Anita e Garibaldi era frequentada por dissidentes estrangeiros e, principalmente, por carbonários que viviam no Uruguai mas não haviam abandonado o sonho de unificar a Itália. Garibaldi sentia renascer a vontade de realizar por seu país o que fora impedido de fazer anos antes.

No final de 1847, animado com as notícias de anistia aos rebeldes em sua terra, Garibaldi convenceu Anita a partir com os três filhos para a Itália, não sem antes prometer-lhe levar os restos da pequena Rosita consigo. Dois meses depois, Anita desembarcava com Teresita, Menotti e Ricciotti em Gênova, onde foi recebida com simpatia e deferência. Só em meados do ano seguinte conseguiu reencontrar Garibaldi, que vinha de uma viagem longa até chegar a Nice, na época pertencente ao reino da Sardenha, onde viviam sua mãe e amigos. Iniciaria então o período de batalhas e fugas pela Itália, lutando pela unificação ao lado do marido. Sobre o episódio, escreveu Garibaldi: “A minha boa Anita, apesar de meus argumentos para tentar convencê-la a permanecer, decidiu acompanhar-me. A observação de que eu teria de enfrentar uma tremenda vida de dificuldades, privações e perigos, cercado de tantos inimigos, serviu muito mais de estímulo à corajosa mulher; em vão lembrei-lhe o fato de estar grávida. Chegando à primeira casa, solicitou a uma senhora que lhe cortasse o cabelo, vestiu-se de homem e montou a cavalo”.

Anita adoeceu e morreu meses depois. O próprio Garibaldi relata os fatos em suas memórias. Conta que ela chegou deitada na carroça conduzida por ele até Mandriole e que imediatamente suplicou que trouxessem um médico. Este, ao transportá-la para a cama, dissera: “Chamaram-me apenas para atestar uma morte”. Garibaldi tomou então o pulso de sua mulher: “Já não batia. Tinha diante de mim a mãe de meus filhos, que eu tanto amava, morta!”

Não se sabe até hoje qual foi a doença que a matou. “Aparentemente, uma febre tifoide ou algo assim. As circunstâncias da morte e da autópsia, feita vários dias depois numa pequena cidadezinha italiana, dificultam uma conclusão mais precisa. Seguramente, não foi enforcada por Garibaldi, como chegaram a difundir na época”, explica Markun.

Mulher de seu tempo

A tragédia de Anita é um dos episódios mais tristes da história dos dois países. À luz dos nossos dias, parece impensável que uma mulher grávida empunhasse armas e saísse para lutar montada num cavalo. De que tempo seria alguém assim? “Talvez ela tenha sido uma mulher do tempo dela, e nós é que acabamos adotando uma ideia falsa da mulher brasileira da época colonial que só podia ser a sinhazinha romântica, sempre às voltas com aulas de piano e bordado, ou a escrava negra, ama de leite, cobiçada pelo patrão. Uma pesquisa da historiadora Mary Del Priore mostra que havia mais do que isso no Brasil colonial: mulheres que mantinham suas casas, enquanto os maridos ganhavam a vida nas minas ou no comércio de animais”, escreve o jornalista.

O cartunista Custódio faz uma avaliação a partir de dois enfoques. “Em uma primeira conclusão, certamente ela estaria à frente de seu tempo”, diz. “Anita abandonou um casamento, provavelmente infeliz, não teve filhos enquanto estava com o primeiro marido, depois se juntou (seduzida ou não, não importa) a um homem sem parada, um aventureiro, e o seguiu obstinadamente.” Segundo Custódio, nesse aspecto ela se mostra uma mulher quase moderna, cujas escolhas são feitas à luz da própria vontade. “É a mulher que quer ser senhora do próprio destino”, resume. “Mas, por outro lado”, prossegue o cartunista, “ela poderia ser também a clássica mulher que se atira em busca do seu homem, a qualquer preço, e se contenta com qualquer migalha que o destino lhe dê em troca de estar com seu amado. Quase a Amélia da música, que ‘passava fome ao meu lado e achava bonito não ter o que comer’. Minha tendência é ficar com a primeira imagem, mas é evidente que é uma interpretação fácil para torná-la mais heroína ainda, o que é desnecessário, pois mesmo que ela fizesse tudo apenas por paixão, ainda assim teria os mesmos méritos que tem como heroína de guerra”.
Revista Problemas Brasileiros

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