terça-feira, 25 de setembro de 2012

O declínio do império astrológico


No fim do século XVI, fenômenos como o surgimento de cometas e de “estrelas novas” levantam dúvidas sobre o poder dos astros de influenciar a vida na Terra

Luís Miguel Carolino

Na gravura de 1647, representação do astrônomo polonês Johannes Havelius. Aos poucos, a Astrologia foi perdendo o status de ciência. (Biblioteca Nacional da França))

Depois de longo período de influência na vida de gente letrada e iletrada, a Astrologia foi perdendo o encanto, e até mesmo sua utilidade foi questionada. Novos rumos foram impostos a seus cultores nos séculos XVII e XVIII, num cenário recheado de críticas. Consumida e admirada na sociedade, ela chegou ao apogeu ainda na primeira metade do século XVII. Conquistou leitores do mundo moderno por causa das cartas celestes que previam o futuro das pessoas, bem como os almanaques astrológicos, com grandes tiragens. Na Europa, as práticas astrológicas eram amplamente cultivadas nas cortes; a influência celeste era motivo de teses nas universidades europeias e a Teologia se ocupou da discussão sobre seus limites.

Prova da imensa aceitação da Astrologia na sociedade europeia seiscentista foi, sem dúvida, a ampla circulação dos almanaques a partir das primeiras décadas do século XVII. Eram pequenas publicações com 16, 24 ou 32 páginas, vendidas por cerca de um décimo do salário semanal de um trabalhador manual. Como a proposta era divulgar as influências planetárias específicas para cada ano, eles eram publicados nas primeiras semanas de cada um. Em Portugal, por exemplo, a estimativa é que no início do século XVIII fossem vendidos 17.500 exemplares por ano. França e Inglaterra vendiam mais.

A parte mais importante dos almanaques astrológicos era o chamado juízo do ano, um prognóstico sobre a influência dos planetas, antecedido por um prólogo em que o astrólogo discorria sobre temas variados. Na sequência, a referência aos dias das quatro têmporas, ou seja, os dias em que se devia jejuar em cada estação do ano, e aos eventuais eclipses e conjunções daquele ano, a indicação do calendário das festas móveis, como a Páscoa, e das fases da Lua.

O astrônomo e astrólogo Cláudio Ptolomeu foi essencial no processo de estabilização dos conteúdos da Astrologia, que se estabelecera havia muito tempo. No século II da era cristã, ele sintetizou os conhecimentos astronômicos e as hipóteses astrológicas anteriores, codificando aquele saber num livro muito seguido durante os séculos seguintes: o Tetrabiblos. No início dos Seiscentos, essa era a fonte de conhecimento que servia de referência para publicações que tratavam das bases da Astrologia ocidental.

A natureza dos corpos celestes era diferente da dos terrestres. Essa concepção cosmológica serviu de base para Ptolomeu ao formular sua teoria. Astros e estrelas eram aparentemente imutáveis e, portanto, superiores aos corpos terrestres, sujeitos a constante mudança, nascimento e morte. Ptolomeu estabeleceu que determinado poder emanava dos astros e se difundia na região terrestre, provocando alterações nos quatro elementos primários que formavam a base da vida na Terra: fogo, ar, água e terra. O Sol agia sobre a vida na Terra, provocando o calor e a secura, enquanto a Lua fomentava o frio e a umidade na região terrestre. Saturno estava na origem do frio e da secura; Júpiter, do calor e da umidade; Marte, do calor e da secura; Vênus, do frio e da umidade; e, por último, a influência de Mercúrio provocava na Terra a secura e a umidade.

Determinados planetas eram considerados benéficos; outros, maléficos. A Lua, Júpiter e Vênus eram vistos como planetas benéficos, pois produziam uma síntese de calor e umidade com moderação. Pelo contrário, Saturno e Marte, pelo frio e secura excessivos que respectivamente originavam, concebiam-se como planetas maléficos. Ptolomeu atribuía ainda outras características aos planetas: diurnos ou noturnos, femininos ou masculinos.

Sobre esta base, estabeleceu-se um corpo complexo de princípios e regras que permitiam prever o temperamento das pessoas e, em certa medida, também a ocorrência futura de grandes eventos coletivos. De forma muito sucinta, o astrólogo, nas suas previsões, tinha de considerar o movimento e a posição relativa dos astros entre si, bem como a posição destes no zodíaco.

Um fato inesperado teve papel de relevo no início ao declínio do império astrológico. Foi o surgimento de cometas e de “estrelas novas” em fins do século XVI e no início do seguinte. Estes fenômenos, que inicialmente foram seguidos com particular entusiasmo pelas populações e explorados com sucesso pelos astrólogos, levantaram fortes dúvidas sobre o real poder dos astros de influenciar a vida na Terra. Se novos cometas apareciam nos céus, estes então não poderiam ser perfeitos. O debate cosmológico sobre as novidades celestes intensificou-se e levou a que a maioria dos filósofos e astrônomos reconhecesse, no fim do século XVII, que os céus eram corruptíveis, tal como a Terra. E, reconhecendo-o, aproximavam céus e Terra, abolindo a separação em que se baseava tradicionalmente a Astrologia. 

Essas dúvidas acabaram se juntando a outras de natureza mais teórica, que decorriam da proposta de Nicolau Copérnico (1473-1543), segundo a qual a Terra não estava no centro do universo recebendo as influências celestes, mas era, ela própria, um corpo girando em torno do Sol. O modelo cosmológico de Ptolomeu foi gradualmente substituído pelo modelo heliocêntrico, segundo o qual o Sol se encontrava fixo no centro do universo, girando a Terra e os planetas em torno dele, contribuindo para agravar a crise em que a Astrologia se encontrava no fim dos Seiscentos.

Se a estas razões juntarmos a crítica racionalista dos autores iluministas do século XVIII, que consideravam a Astrologia um conhecimento sem qualquer fundamento científico, é compreensível que a Astrologia fosse cada vez mais associada às crenças e superstições próprias das pessoas pouco letradas.

Astrólogos não assistiram de forma passiva à falência da sua ciência e do seu ganha-pão. Os mais letrados se empenharam em reformar o corpo teórico da Astrologia, numa tentativa de assimilar novas teorias e observações astronômicas. Exemplo deste movimento reformador é a Astrologia Gallica, livro escrito pelo francês Jean-Baptiste Morin, publicado em 1661.Por outro lado – o dos populares almanaques astrológicos –, assistiu-se a uma lenta diminuição dos conteúdos astrológicos, suplantados por informação de caráter mais prático e, sobretudo, por historietas e outra informação lúdica. A informação astrológica cedeu lugar à narração de histórias e aventuras de personagens de ficção. Lendo estes exemplares de literatura popular, os astrólogos tornaram-se seus críticos mais agudos. Foi assim que, por exemplo, num almanaque de 1735, Vitorino José da Costa apresentou, de forma jocosa, o seu astrólogo como “Cosme Francez, Sarrabal Saloio, Doctorinpartibus, Magisterinartibus, declaro por mim, e por todos os da minha faculdade, que tudo o que se lê neste, e nos mais Prognósticos, não é mais do que uma travessura da idea, uma ficção engenhosa; e pelo que respeita às predições dos tempos, revoluções politicas, e ameaços de enfermidades, uma ténue conjectura, ou para melhor dizer, uma mentira de 24 quilates, artificio de pobres vergonhosos, com que procuram garfiar a vossas mercês os vintens, que lhe não haviam de dar remédio de tantas fomes. Assim declaro, que neste papel tudo são patranhas [...]”.

A Astrologia deixara de ser ciência.
Luís Miguel Carolino é professor da Universidade de Coimbra, pesquisador do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, UL/UNL, e autor de A escrita celeste. Almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. (Access Editora, 2002)

Saiba Mais - Bibliografia
CAPP, Bernard. Astrology and the popular press. English almanacs, 1500-1800.Londres: Farber & Farber, 1979.
CORONA, Carmen. Lunarios. Calendarios Novohispanicos del siglo XVIII. Cidade do México: Publicaciones Mexicanas, 1991.
GARIN, Eugenio. O zodíaco da vida. A polémica sobre a astrologia do século XIV ao século XVI. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.

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