Luís XIV pretendia estabelecer um vice-reinado francês no Brasil no século XVIII
Maria Fernanda Bicalho
Se parece difícil acreditar que alguém tenha autorização oficial do rei para saquear navios e sequestrar portos, a História diz o contrário. No início do século XVIII, os oceanos ficaram coalhados de corsários, que desfrutavam exatamente desse privilégio. Entre eles destacavam-se os franceses, que recebiam de seu rei, na época Luís XIV (1638-1715), uma “carta de marca”, uma espécie de permissão para furtar embarcações e ocupar os portos de nações inimigas, como era o caso de Portugal.
O corso era uma tática para enfraquecer os inimigos sem o dispêndio financeiro exigido pela construção e manutenção naval. Durante a Guerra de Sucessão da Espanha (1701-1713), aos comerciantes e contrabandistas, que já percorriam o litoral do Brasil havia 200 anos, somaram-se inúmeros corsários, que passaram a bordejar a costa americana. Além de dar cobertura aos salteadores, Luís XIV ainda enviou à colônia portuguesa duas esquadras, com o intuito de fragilizar o país adversário.
Em 1710, a expedição comandada por Jean-François Duclerc (1670-1711) tentou adentrar as águas da Baía de Guanabara, onde havia se estabelecido a França Antártica, colônia que existiu durante 12 anos em meados do século XVI. Hostilizado por disparos das fortalezas do Rio de Janeiro, o corsário decidiu navegar em direção ao sul e atracar na Ilha Grande. Lá também foi rechaçado. Voltando a expedição à praia de Guaratiba, 1.200 homens desembarcaram e seguiram a pé por caminhos pantanosos e acidentados até o engenho dos jesuítas. Na manhã seguinte, chegaram à cidade, onde soldados e moradores os esperavam. O combate durou pouco e os franceses foram derrotados.
No ano seguinte, em setembro de 1711, outra esquadra francesa, desta vez sob o comando de René Duguay-Trouin (1673-1736), fez a entrada mais espetacular de que se tem notícia no Rio de Janeiro. Em poucas horas, encobertas por denso nevoeiro, dezoito embarcações posicionaram-se diante dos olhares incrédulos de seus habitantes. Dois dias depois, cerca de três mil homens desceram na Ilha das Cobras (atual Arsenal da Marinha), na Baía de Guanabara, e enviaram mensagem para que a cidade se rendesse. Francisco de Castro Morais, governador do Rio de Janeiro entre 1710 e 1711, fugiu para o interior com as tropas de defesa e a maioria dos moradores, escondendo-se na fazenda dos jesuítas no Engenho Velho (atual Tijuca). Intimado por Duguay-Trouin, que ameaçava bombardear a cidade, pagou pelo sequestro do Rio de Janeiro o resgate de 610.000 cruzados em ouro, 100 caixas de açúcar e 200 cabeças de gado.
Se esses episódios são pouco tratados nos livros de História, o mesmo acontece com o projeto de Luís XV (1710-1774) de conquistar o Rio de Janeiro em 1762. Seu plano, diferente dos anteriores, não se resumia a invadir a cidade, saqueá-la, sequestrá-la e pedir considerável resgate para devolvê-la intacta. Isso já havia sido feito por Duguay-Trouin. A intenção do rei era bem mais ousada: estabelecer um vice-reinado francês no Brasil. Para compreendê-lo, é preciso reportar aos acontecimentos de meados do século XVIII.
Entre 1756 e 1763, a Europa vivia a Guerra dos Sete Anos. Como nos conflitos anteriores, França e Inglaterra eram as grandes rivais. A Espanha tomou partido da primeira, e Portugal tentava, a todo custo, manter sua posição de neutralidade. Temia que, ao apoiar a Inglaterra, sua grande aliada desde o século anterior, seus territórios ultramarinos fossem conquistados pelos franceses ou invadidos pelos espanhóis. A França já havia atacado o Rio de Janeiro por duas vezes. Quanto à Espanha, não parecia propício declarar inimizade: os limites territoriais entre os domínios portugueses e espanhóis na América continuavam em litígio mesmo depois do Tratado de Madri, assinado em 1750 e revogado 11 anos depois.
Naquela época, qualquer conflito entre as monarquias europeias repercutia necessariamente em seus territórios ultramarinos. A Guerra dos Sete Anos só iria aprofundar as disputas coloniais entre as grandes potências. As colônias, sobretudo na América, tornaram-se verdadeiros campos de batalha. Ao Norte, os ingleses conquistaram parte do Canadá, até então sob controle francês. Ao Sul, tropas castelhanas saídas de Buenos Aires invadiram as planícies do Rio Grande, conquistando vilas e fortalezas até Santa Catarina. Não era à toa que Portugal temia entrar na guerra. Sua neutralidade, porém, foi rompida em fins de 1761, diante de um ultimatum da França, que desejava utilizar os portos da península ibérica como base de suas investidas contra a Inglaterra.
Um ano mais tarde, quando já se falava em negociações de paz, Luís XV, aconselhado por seus ministros, planejou conquistar o Rio de Janeiro. Astuto, antevia um amplo campo de manobra se seu plano fosse bem-sucedido. Seu objetivo era dispor de um trunfo, uma espécie de moeda de troca que lhe permitisse negociar compensações nos tratados de paz que se avizinhavam. A França sofria derrotas para tropas e armadas britânicas no Canadá e na parte oriental da Louisiana, na América, e na costa do Coromandel, em Pondichéry, no Malabar e em Bengala, no Índico. O Brasil, além de pertencer a Portugal, era uma rica colônia e o Rio de Janeiro, o principal porto de escoamento do ouro das Minas. Conquistando-o, o rei de França atingiria os interesses de sua principal rival, a Grã-Bretanha, pois comerciantes e contrabandistas ingleses atuavam na região do Rio da Prata, acobertados por negociantes e autoridades do Rio de Janeiro.
Em outubro de 1762, apenas quatro meses antes do Tratado de Paris, que poria fim à guerra, uma carta de Luís XV dirigida a Beaussier de l’Isle (1700-1765), oficial da Marinha francesa, encarregava-o do comando da expedição. A esquadra seria formada por oito naus de guerra e duas fragatas pertencentes à Armada Real. Dois outros navios seriam comprados na cidade de Brest e dez adquiridos em Nantes. Oito batalhões, num total de 4.800 homens, comporiam as tropas de desembarque, além de dois destacamentos do Corpo Real de Artilharia. Ao todo, somavam 5.150 soldados, fora os oficiais.
O ministro da Marinha de Luís XV, o duque de Choiseul (1719-1785), instruiu Beaussier d’Isle para que se dirigisse primeiro à Bahia e depois ao Rio de Janeiro. Em Salvador, deveria permanecer apenas o tempo necessário para conquistar a cidade, destituir o vice-rei e cobrar os tributos de praxe em casos de guerra. Seguiria então para o Rio, alvo principal. Enviou-lhe mapas e descrições minuciosas das duas cidades. Dizia não ter mandado fazer cópias para distribuí-las entre os demais oficiais da expedição, pois todos os detalhes deveriam ser tratados em absoluto segredo. Caso contrário, o plano poderia ser descoberto, o que poria em risco toda a empreitada.
Além de Beaussier de l’Isle, o único que sabia do projeto era o conde d’Estaing (1729-1794). Nomeado pelo rei comandante e estrategista das tropas terrestres, ele discordava do início da expedição pela Bahia. Para ele, o Rio era, sem dúvida, a cidade mais importante, pois em seu porto era embarcado o ouro proveniente das Minas. Invadir Salvador significava arriscar a melhor arma em qualquer confronto: a surpresa. Não era aconselhável dividir esforços nem desperdiçar homens e munição. Uma estratégia bem elaborada era um ingrediente indispensável ao sucesso da empresa.
Mas d’Estaing não deixava de apontar razões favoráveis à investida contra a Bahia. A vitória seria certa e a cidade, sede do vice-reinado, não havia sido anteriormente invadida, ao menos pelos franceses. Sua conquista por Luís XV causaria boa impressão na Europa. Se o intuito real era dispor de uma valiosa moeda de troca nas negociações da paz, tomar Salvador significava, pelo menos simbolicamente, conquistar o Brasil inteiro. Porém, na balança dos prós e contras, d’Estaing recomendava atacar somente o Rio de Janeiro. Cantando louros antes da vitória, o experiente oficial se comprometia a surpreender o governador, as forças de defesa e os moradores da cidade. Dizia conhecer bem os portugueses, que tinham medo dos franceses e se defendiam com pífias demonstrações militares ou com muita missa, reza e procissão.
Em suas instruções, d´Estaing não descrevia com detalhes sua passagem anterior pelo Rio, embora tenha comentado que observara as fortificações da cidade em 1757. Essa referência e o fato de ter servido a Luís XV na Índia entre 1757 e 1758 indicam que ele participara da expedição do conde d’Aché, em julho de 1757. Nesse episódio, o rei de Portugal recebeu a notícia de que seis navios franceses, comandados por esse nobre oficial, haviam entrado na Baía da Guanabara. Faziam parte de uma esquadra que seguia para o Oriente, onde deveriam atacar os ingleses, sempre no contexto da Guerra dos Sete Anos.
Os relatos sobre a chegada dos franceses, como o do bispo do Rio de Janeiro, descreviam com nitidez o “terror pânico” que assolou a cidade, cuja população ainda guardava na memória o episódio de 1711, quando Duguay-Trouin a invadiu e a sequestrou. Enquanto a esquadra de d’Aché assustava seus moradores, o governador Gomes Freire de Andrade (1685-1763) e parte das tropas que defendiam a cidade encontravam-se no sul, onde negociavam com o governador de Buenos Aires as determinações do Tratado de Madri.
Como Portugal não havia ainda, àquela altura, declarado guerra à França, os acordos internacionais determinavam que qualquer porto, em caso de urgência ou necessidade, deveria ser hospitaleiro com os navios de nações “amigas”. Mesmo apavorados, os moradores tiveram que acolher os franceses, embora impusessem restrições ao seu deslocamento pela cidade, sistematicamente ignoradas. Os oficiais andaram livremente pelo Rio, inclusive à noite, embora devessem voltar a seus navios pela hora da Ave-Maria (seis da tarde). Observaram as fortalezas, fizeram perguntas sobre a frota, queriam saber quanto ouro transportava para Portugal e em que período do ano partia.
Essa atitude não contribuiu para acalmar os ânimos da “plebe miúda”, que, a certa altura, queria expulsá-los. A situação não ficou mais tensa porque Antônio Freire de Andrade (1708-1784), governador interino, desceu das Minas em direção ao Rio. Experiente no governo, ele conseguiu aplacar o medo e a fúria dos moradores. Desde sua chegada até a partida dos indesejáveis visitantes, a convivência entre portugueses e franceses tornou-se, se não amistosa, pelo menos pacífica.
D’Estaing era, provavelmente, um desses oficiais que andaram livremente pelo Rio de Janeiro em 1757. Em comunicado a Luís XV, informou ter agido como espião e fez observações militares. Seus comentários sobre o modo de vida dos habitantes não destoavam da visão que os estrangeiros tinham do Brasil. Ele mencionava a utilização de vadios na constituição das tropas mineiras, a situação dos escravos, a cumplicidade entre a população e os jesuítas, a lendária rebeldia dos paulistas e sua resistência a se submeterem ao poder metropolitano. Por fim, d’Estaing concordava com o projeto de instituir um vice-reinado francês no Brasil. Bem sabia que a tarefa de conservá-lo não seria fácil. Por isso, propunha o envio de grandes contingentes militares. Como as terras eram férteis e abundantes em animais, as tropas de ocupação teriam como se sustentar. Da França viriam os tecidos e, principalmente, o vinho. Comerciantes franceses seriam certamente atraídos pela abundância do ouro.
Não foi à toa que Luís XV escolheu o conde d’Estaing para ocupar o cargo de vice-rei do Brasil. Apesar da pouca idade, sua experiência militar e seu tino de estrategista eram admiráveis. Charles Henri d’Estaing, filho do marquês de Sillans, nasceu em 1729 em Puy-de-Dôme, na França. Começou sua carreira na infantaria e participou de importantes batalhas na Guerra dos Sete Anos. Protegido do ministro da Guerra de Luís XV, o duque de Choiseul, passou à Marinha de Guerra e lutou na Índia. Ferido em Madras, foi feito prisioneiro dos ingleses. Ao ser libertado, retornou a Paris em 1762. Tinha apenas 32 anos ao ser designado futuro vice-rei do Brasil, caso o projeto de conquista do Rio de Janeiro fosse vitorioso.
No entanto, um plano tão bem concebido não teve chance de ser executado. A paz chegou antes que os navios franceses partissem em direção ao Brasil. Não se conhecem os detalhes do que se passou entre o fim de 1762 e o início do ano seguinte. Em meados de 1763, alguns meses após o fim da guerra ser declarado em Paris, M. Beaussier de l’Isle chegava às Antilhas francesas, provavelmente com parte das forças arregimentadas para o Rio.
Porém, o mais curioso são as peças pregadas pelo tempo ou pela História. Se em 1763 os franceses não chegaram a invadir o Brasil e d’Estaing não ocupou o palácio dos vice-reis no Rio de Janeiro, atualmente a residência dos embaixadores brasileiros em Paris situa-se justamente na Rua do Almirante d’Estaing.
Maria Fernanda Bicalho é professora de História na Universidade Federal Fluminense e autora de A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII. (Civilização Brasileira, 2003) e co-autora de O Governo dos Povos (Laura de Mello e Souza e Júnia Ferreira Furtado (org)). (Alameda, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia:
MARIZ, Vasco (org.). Brasil-França: Relações históricas no período colonial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Ed., 2006.
FRANÇA, Jean Marcel C. & RAMINELLI, Ronald. Andanças pelo Brasil Colonial: Catálogo comentado (1503-1808). São Paulo: Ed. Unesp, 2009.
Revista de História da Biblioteca Nacional
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ResponderExcluirHavia um bom tempo que não vinha ler muitas das histórias do nosso país em relação aos nossos oponentes da época. Fiquei mais rico com essa história da História Universal, adquirindo mais conhecimento sobre as relações Brasil França.
ResponderExcluirAbraço
Adorei o blog. Vou adicionar ao meu, que tal uma parceira entre Redação e História?
ResponderExcluirAbraço,