Imagine viver numa sociedade que desconhece a guerra e a violência 
sistemática, que não possui classes nem estrutura rígida de poder, que não 
oprime mulheres nem homens e que celebra a vida a ponto de adorar a natureza 
como expressão de um ser divino. Soa como um sonho dourado de futuro? Pois, em 
linhas gerais, é assim que muitas pessoas acreditam que foi o passado da 
humanidade. Essa fase aparentemente idílica é conhecida por alguns como período 
matriarcal. Tal sociedade teria existido na Europa e na Ásia, pelo menos desde o 
ano 35.000 a.C. Mas os traços dessa cultura teriam sido progressivamente 
extintos a partir de 4.000 a.C., quando invasores vindos das estepes teriam 
tomado os continentes e introduzido o machismo, a cultura da guerra e a 
sociedade patriarcal. 
A possível existência de uma fase matriarcal na história da civilização foi sugerida no século 19 e chegou a ser considerada um fato histórico por importantes arqueólogos e antropólogos até meados do século passado. Ao longo dos últimos 20 anos, porém, houve uma reviravolta no debate, e hoje boa parte da comunidade científica tende a rejeitar a idéia. Fora da academia, porém, a convicção de que houve um passado onde as relações entre homens e mulheres eram igualitárias permanece forte entre os adeptos das religiões neopagãs e as feministas. Mas ambos os grupos estão mostrando que são capazes de aceitar o revisionismo histórico sem abrir mão de suas crenças fundamentais. A hipótese matriarcal surgiu em 1861, quando o suíço Johann Bachofen sugeriu a existência de sociedades matriarcais na pré-história. Suas idéias influenciaram fortemente antropólogos e arqueólogos do final do século 19 e começo do século 20. Quando os pesquisadores da chamada era do gelo (40.000 - 10.000 a.C.) desencavaram grande quantidade de estátuas femininas conhecidas como vênus (essa que você vê acima é a vênus de Willendorf), foram rápidos em identificá-las como representações de deusas-mãe. Em 1901 o arqueólogo britânico Sir Arthur Evans descobriu a civilização minóica, que teve seu auge na Grécia entre os século 27 e 11 a.C., e afirmou tratar-se de uma sociedade matriarcal. 
Para explicar mais exatamente o que isso seria, foram surgindo mais 
especulações: além da descendência matrilinear, nesses povos as mulheres 
ocupariam os postos de liderança e até os bens herdados seriam passados de mãe 
para filha. Em 1958 foi descoberto na Turquia um imenso povoado do período 
neolítico (8.000-5.000 a.C.). Batizado de Çatalhouyk, era uma cidade que 
abrigava 8.000 moradores em 2.000 casas, construídas umas sobre as outras, numa 
área de 26 acres.  
O descobridor, o arqueólogo inglês James Mellaart, estava bem familiarizado 
com a idéia de matriarcado ancestral. Por isso, ao encontrar em suas escavações 
estátuas mostrando poderosas figuras femininas, ele não exitou em identificá-las 
como representações de deusas, e sugeriu que a base da estrutura social em 
Çatalhouyk era matriarcal. 
As descobertas de Mellaart, divulgadas nos anos 1960, chamaram a atenção de 
Marija Gimbutas, uma arqueóloga lituana residente nos Estados Unidos. Gimbutas 
se interessava pela "velha Europa", que era como chamava as culturas que 
habitaram o continente durante o período neolítico. Gimbutas estudou os 
artefatos produzidos numa extensa área, que ia da Rússia até a Itália, Turquia e 
Grécia. Ela defendia a tese de que todas essas sociedades compartilhavam uma 
mesma matriz cultural. O ponto central dessa cultura era o culto a uma deusa que 
simbolizava a Natureza, cujas raízes antiquíssimas remontariam ao paleolítico. 
Seu modo de vida, que ela chamava de matrifocal, seria agrária e não-violento. 
 
 
Gimbutas explicava ainda o fim da antiga Europa: uma cultura invasora teria 
aos poucos submetido os povos locais. Ela identificou essa cultura com os 
kurgans, um povo que veio das estepes russas em 3.500 a.C. Gimbutas acreditava 
que os kurgans fossem uma cultura nômade e guerreira, que teria introduzido o 
cavalo e o idioma original indo-europeu na Europa. As idéias de Gimbutas se 
tornaram muito populares nos anos 1970. Surgiram seguidoras que usaram seu 
modelo para explicar também a pré-história de sociedades fora da "velha Europa", 
como a hindu. Mas a maior parte do seu público estava longe da academia, entre 
as feministas e os adeptos das religiões neo-pagãs. 
A antropóloga americana Cynthia Eller, uma estudiosa do movimento neo-pagão, 
está na linha de frente do combate ao legado de Gimbutas. Ela causou polêmica ao 
lançar em 2000 o livro "O Mito da Deusa", no qual dissecava a crença num 
matriarcado pré-histórico. "Sociedades tem costumes diferentes. A idéia de que 
povos separados por milhares de quilômetros tivessem a mesma religião e os 
mesmos costumes não faz sentido", ataca. "E o fato de cultuar uma deusa não 
implica numa vida boa para as mulheres. Na Índia existem muitas deusas, e isso 
não se reflete nas condições da população feminina". 
As críticas de Eller encontram eco na pesquisa arqueológica mais recente. 
Desde 1993 retomaram-se as escavações em Çatalhouyk. As novas pesquisas não 
sugerem que as mulheres usufruíssem de status especial, embora a vila pareça não 
ter abrigado grandes distinções entre os papéis sociais dos dois sexos.  
 
 
A interpretação das estátuas neolíticas como representações de uma deusa está 
sob fogo cerrado. "Estátuas de deusas-mães costumam mostrá-las segurando 
crianças, parindo ou copulando. Não é o caso das vênus, onde a mulher parece ser 
objetificada", analisa o britânico Timothy Taylor, especialista em arte 
pré-histórica. "Não há consenso sobre o significado das vênus entre os 
estudiosos, mas a teoria do matriarcado tem pouquíssimo apoio", diz. Ele aponta 
mais novidades. "Hoje conhecemos fortificações e covas coletivas que datam do 
período neolítico, mostrando que já existia matança e violência antes dos 
kurgans", diz. Além disso, questões como a domesticação do cavalo e a difusão 
das línguas indo-européias têm se mostrado muito complexas para serem explicadas 
só através de uma invasão. 
 
O pesquisador Cláudio Quintino, autor de "A Religião da Grande Deusa", também 
acolhe ambas as visões. "Não acho que haja evidência de um culto à deusa vindo 
da pré-história. Penso que nossa sociedade sofre de uma carência do elemento 
feminino, que se manifesta pela religião várias vezes ao longo da história, sem 
necessidade de continuidade entre as manifestações", explica. "E essa 
necessidade é ainda mais premente hoje". Ou seja, quem acredita na importância 
de criar um mundo mais aberto aos valores femininos, seja na área da 
espiritualidade, dos relacionamentos ou em ambas, nada tem a temer por parte da 
ciência. 
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sexta-feira, 27 de julho de 2012
Matriarcado - História ou mito?
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