quinta-feira, 26 de julho de 2012

Desafios, limites e novas pistas no retorno de Marx


Platéia na última edição do Colóquio Internacional Marx e Engels, realizado na Unicamp entre 6 e 9 de novembro (Foto: Divulgação)
Em outubro 1997, quando as bolsas de valores de Hong Kong começavam a cair alimentando uma espiral de pânico e crashes, John Cassidy narrou nas páginas da cultuada revista New Yorker um interessante diálogo que manteve com um amigo seu, executivo de um grande banco de investimentos em Wall Street. “Quanto mais tempo passo em Wall Street mais convencido fico de que Marx estava certo”, disse o executivo. Vários pânicos e crashes depois, em março de 2005, o Financial Times comentava que Colin Graham, da Merrill Lynch Investment Management, aconselhava seus ouvintes a terem cautela com os hedge funds relembrando o que havia aprendido em seus primeiros dias na empresa justamente naquele fatídico outubro de 1997: “nosso chefe saiu e comprou Das Kapital para ver o que ocorreria quando o capitalismo ruísse.”


As vozes provenientes dos lugares mais inesperados anunciando que Marx estava vivo se tornaram mais fortes e numerosas nos últimos anos. Repetidamente, o autor d’O capital foi interpretado por inesperados leitores como um profeta da globalização, um arauto do colapso do capitalismo ou um defensor do determinismo econômico. Mas não foi apenas por leitores apressados – e amedrontados – que Marx foi lembrado. A reemergência do conflito social e os movimentos altermundialistas de resistência às políticas neoliberais encontraram muitas vezes na obra de Marx um ponto de apoio e uma fonte de inspiração. A retomada da mobilização sindical na Europa a partir de 1995; os protestos que tiveram lugar depois da manifestação de Seattle por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio, em 1999; a organização do Fórum Social Mundial a partir de 2001; e os levantes populares que ocorreram na Argentina, Equador e Bolívia, nos primeiros anos deste século, desenharam um contexto favorável à difusão da teoria marxista.


Revalorização internacional
Desde que sua enésima morte foi anunciada, imediatamente após a queda do muro de Berlim, jovens pesquisadores (e outros nem tanto) se puseram a trabalhar sobre as ruínas de uma apropriação dogmática do marxismo. A crítica à transformação pelo stalinismo do marxismo em uma ideologia de Estado implicava encarar o desafio de uma reconstrução crítica do pensamento de Marx. 

Aos poucos o trabalho desses pesquisadores assentou as bases para uma lenta, mas segura revalorização da obra de Marx na qual as certezas eram deixadas de lado para abrir lugar à pesquisa paciente e rigorosa. Já em meio aos escombros era possível vislumbrar esse trabalho, mas ele começou a emergir e a tornar-se mais visível em 1995 com a realização do Congrès Marx International, organizado pela revista Actuel Marx. Em sua primeira edição o congresso aglutinou cerca de cem revistas e instituições constituindo uma rede plural de pesquisadores. Um ano depois, teve lugar na University of Massachusetts-Amherst, no Estados Unidos, a conferência Politics and Languages of Contemporary Marxism, organizada pela Association for Economic and Social Analysis e pela revista Rethinking Marxism. 

O Congrès Marx International realizou em 2007 seu quinto encontro, mesmo número de edições que a Rethinking Marxism Conference completou no ano anterior. Mais recentemente, a revista britânica Historical Materialism, publicada desde 1997, iniciou uma importante série de conferências anuais. Também merece destaque o evento, embora de menor dimensão, organizado em 2006 pela revista Capital & Class, também na Inglaterra, bem como a URPE Summer Conference, que tem lugar anualmente desde 2001 nos Estados Unidos, promovida pela Union of Radical Political Economics.


A experiência do Cemarx
O desenvolvimento dessa revalorização da obra de Marx seguiu no Brasil um ritmo desigual e combinado. A ascensão às esferas de poder nacionais e subnacionais de partidos e lideranças políticas que em algum momento tiveram o marxismo como uma referência produziu um fenômeno de transformismo de intelectuais que passaram a ocupar posições nos aparelhos de Estado abandonando uma perspectiva crítica. Contraditoriamente foi na tentativa de compreender o que estava ocorrendo no Brasil e no mundo que o marxismo foi novamente convocado a ocupar um lugar de destaque no debate contemporâneo. As universidades brasileiras não são o locus exclusivo dessa revalorização, mas têm, sem dúvida, um importante papel. 

Expressões desse movimento são as atividades do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e a organização por esse Centro do Colóquio Internacional Marx e Engels. Desde 1999 o Colóquio é realizado bianualmente, reunindo pesquisadores de todo o país e convidados internacionais que assumem o pensamento de Marx e Engels como um objeto de pesquisa e/ou como um método de investigação. A evolução desse evento surpreende. No 1º Colóquio, em 1999, foram apresentados 31 trabalhos. Em sua 5º edição realizada entre 6 e 9 de novembro de 2007, inscreveram-se 300 comunicações e 100 painéis e foram selecionados para participar do evento 160 comunicações e 73 painéis. 
Experiências similares, algumas delas explicitamente inspiradas no Cemarx, começam a surgir em outras universidades. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, os professores Aloísio Teixeira e José Ricardo Tauile, falecido em 2005, criaram no Instituto de Economia o Laboratório de Estudos Marxistas. Na Universidade do Estado da Bahia, foi fundado em 2006 um centro de estudos homônimo ao da Unicamp. Em 2007 tiveram início as atividades do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo na Universidade Federal Fluminense. Na Universidade de São Paulo foi realizado, neste ano, sob a iniciativa dos professores Ricardo Musse e Ruy Braga, ambos do Departamento de Sociologia, o 1º Colóquio Marx e os Marxismos. Também em 2007 ocorreu em Salvador o 3º Encontro Brasileiro de Educação e Marxismo, reunindo quase mil participantes. 
O marxismo tem marcado presença também nas associações nacionais de pesquisa e pós-graduação. Merecem destaque o Grupo de Trabalho Marxismo, ativo desde 2003 na Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia; o Simpósio Marxismo e Multidisciplinaridade realizado em 2007 no espaço da Associação Nacional de História; e o Seminário Temático Marxismo e Ciências Sociais, realizado no 31º Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, em 2007. 

Por último caberia citar a intensa atividade editorial que tem distinguido a recente evolução do marxismo brasileiro. Revistas como Crítica Marxista, Outubro, Margem Esquerda e Novos Rumos já se encontram plenamente consolidadas, deixando para trás uma longa linhagem de publicações efêmeras ou esporádicas. A publicação de novas edições de obras de Marx pelas editoras Civilização Brasileira e Boitempo, o relançamento dos seis volumes da História do Marxismo no Brasil, pela editora da Unicamp, e a reedição da monumental História da Revolução Russa de Leon Trotsky pela jovem editora Sundermann, marcam esse novo momento editorial. 


Novas direções para a pesquisa
Quatro parecem ser as direções sobre os quais esse diversificado movimento de renovação dos estudos marxistas tem fixado a atenção. Em primeiro lugar o desenvolvimento da crítica da economia política tem assumido como objeto as transformações da economia capitalista e, particularmente, os fenômenos de mundialização e financeirização do capital e as novas formas do imperialismo. A caracterização do neoliberalismo como um momento atual do capitalismo tem motivado importantes debates e os problemas teóricos da análise desse momento tem exigido uma abordagem inovadora tanto da teoria do valor, como da teoria do imperialismo.

Em segundo lugar, a crítica da divisão do trabalho enfrenta a análise das transformações nos processos de trabalho decorrentes da utilização de novas tecnologias e da reorganização gerencial do espaço da produção de mercadorias por meio dos processos de reengenharia, terceirização, downsizing, etc., bem como o estudo da reação das classes trabalhadoras a esses processos. Aqui os problemas teóricos mais importantes são a relevância do trabalho como uma categoria chave da análise social, a permanência das classes trabalhadoras como sujeitos sociais ou políticos, a nova morfologia dessas classes e as práticas de resistência e emancipação afirmadas por elas.
Em terceiro lugar, a crítica da política tem tratado das novas formas que a dominação política capitalista assumiu, bem como os movimentos de oposição a essa dominação, em um contexto no qual o regime democrático liberal dá sinais em nosso país de uma longevidade sem precedentes e o neoliberalismo impõe uma profunda reconfiguração das relações entre política e economia. As questões apresentadas nesta direção dizem respeito fundamentalmente à definição do Estado-nação e da política. Discussões sobre as formas atuais do Estado capitalista e sua relação com as classes sociais, liberdade e igualdade, nação e nacionalidade, estratégia socialista no século XXI e a emergência de novos atores políticos têm recebido forte atenção por parte dos pesquisadores. 
Por último, a crítica da ideologia encontra-se às voltas com a análise do processo de mercantilização das relações sociais e o novo lugar funcional que a cultura, aproximando-se da economia, passou a ter na organização do modo de produção capitalista. Na medida em que a produção estética passou a integrar o processo de produção de mercadorias, novos problemas foram colocados para a pesquisa crítica. O debate sobre o pós-modernismo e a lógica cultural do capitalismo embora tenha arrefecido nos últimos anos, permanece importante.
Os desafios levantados por essas quatro críticas são grandes e um novo “retorno” a Marx torna-se necessário para esses estudos merecerem o adjetivo marxista. Não se trata mais de encontrar o “verdadeiro” Marx para contrapô-lo às interpretações consideradas desviantes. Se há algo que o século XX ensinou foi a duvidar dos dogmas. Esse retorno só fará sentido se enfrentar de modo crítico os desafios impostos pela sua obra, reconhecer seus limites e encontrar nela novas pistas para a análise do presente.
Alvaro Bianchi é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH) e diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx)
Jornal da UNICAMP

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