domingo, 3 de junho de 2012

O Brasil ‘inventado’ por Varnhagen


Historiador aponta viés etnocêntrico no
conjunto da obra do Visconde de Porto Seguro

Independência ou Morte, obra de Pedro Américo: para Varnhagen, a transição da Colônia para Império teria ocorrido sem rupturas (Fotos: Reprodução/Divulgação)Em seu livro História e Historiografia: Brasil pós-1964, o professor José Roberto do Amaral Lapa, criador do Centro de Memória da Unicamp (CMU), registrou que “a história, como outras áreas do saber na área de Ciências Humanas, é muito sujeita aos ventos que sopram de latitudes as mais diferentes”. Em outros termos, o tarimbado historiador, que viria a falecer em junho de 2000, aos 70 anos, alertava o leitor para o fato de não haver uma verdade única no que toca ao relato histórico. Orientado por esta referência, entre outras, o historiador Renilson Rosa Ribeiro decidiu investigar em sua tese de doutoramento, apresentada recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, como foram construídas as representações discursivas que acabaram por forjar um tipo de memória oficial para o Brasil. Do trabalho, orientado pelo professor Paulo Miceli, emergiu a figura de Francisco Adolfo de Varnhagen, mais conhecido como Visconde de Porto Seguro. “Ele foi um dos maiores artífices de uma visão histórica que perdura até hoje, tanto nos livros didáticos quanto no imaginário nacional”, afirma.
O interesse de Ribeiro pelo tema remonta à sua dissertação de mestrado, quando analisou o discurso de raça presente nos manuais escolares produzidos no final do século 19 e ao longo do século 20. Durante a investigação, ele deparou com a recorrência de temas quando os autores se dedicavam a pensar a história do Brasil. “Nas obras que tomei para análise, o perío­do colonial sempre era apresentado, com maior ou menor destaque, como a semente da nação. Isso me levou a querer investigar, com a orientação do professor Paulo Miceli, como esse discurso, que normalmente é apresentado como algo natural, foi construí­do ao longo do tempo”, explica.
A pesquisa de Ribeiro concentrou-se na produção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838 com o objetivo de “forjar uma memória para a nação brasileira”, que acabara de conquistar a sua independência. Ao analisar os temas, documentos e personagens vinculados ao instituto, o historiador elegeu como objeto principal de investigação a Revista do IHGB, que circula até hoje e cujo primeiro número foi editado em 1839. “Durante o trabalho de prospecção, percebemos que um personagem apresentava-se como emblemático em relação ao tema do nosso interesse, que vinha a ser Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro”, relata.
Embora tenha nascido na região de Sorocaba, interior de São Paulo, em 1816, Varnhagen viveu durante muitos anos fora do Brasil, sobretudo em Portugal, Espanha e Áustria-Hungria. Ele somente teve reconhecida a sua nacionalidade brasileira na década de 40 daquele século por meio de um decreto imperial. “Depois que obteve a cidadania brasileira, Varnhagen foi incorporado à diplomacia nacional, servindo em Portugal e na Espanha. Além disso, por desenvolver pesquisas históricas, foi convidado a integrar o IHGB, onde deu início a uma série de trabalhos. Uma das missões assumidas por ele foi realizar um levantamento nos arquivos europeus sobre o Brasil Colonial, de modo a produzir uma memória nacional. O objetivo final era compilar, sistematizar, organizar, arquivar e, por último, publicar as informações obtidas, principalmente nas páginas da Revista do IHGB”, informa Ribeiro.
O historiador Renilson Rosa Ribeiro: “Enredos temáticos constituíram um modelo de cronologia que se tornou constante nos manuais e livros didáticos” (Fotos: Reprodução/Divulgação)Tais pesquisas, prossegue o autor da tese, forneceram subsídios para que Varnhagen escrevesse mais tarde a sua mais importante obra, História Geral do Brasil, publicada em dois tomos (1854 e 1857) e considerada uma espécie de livro-monumento. “Nessa obra, Varnhagen apresenta uma proposta de narrativa da história do Brasil, que tem como cenário principal a atuação dos portugueses na formação da Colônia. Na narrativa, ele registra que a transição do Brasil Colonial para o Brasil Imperial teria ocorrido de forma tranqüila, sem rupturas. Também valoriza o legado português, deixando em plano secundário as figuras do índio e do negro, num posicionamento com profundo viés etnocêntrico”, afirma o historiador.
A partir da publicação de História Geral do Brasil, Varnhagen lançou-se no esforço para fazer com que a obra fosse aceita como uma produção oficial do IHGB. Para isso, recorreu até mesmo a Dom Pedro II, a quem pediu apoio. A despeito do seu empenho, o livro foi recebido com profundo silêncio pelos seus pares, e o instituto acabou por não acolhê-lo. “Tal recusa o deixou extremamente indignado e lhe valeu vários ataques por parte dos autores românticos e indigenistas que também integravam o IHGB”, diz Ribeiro. Mesmo não desfrutando do reconhecimento almejado entre seus pares, Varnhagen, que recebeu o título de nobreza somente no final da vida, foi alçado, após sua morte, como um historiador símbolo do instituto.
Essa nova condição, infere o autor da tese, certamente deve ter contribuído para que o Brasil “inventado” pelo Visconde de Porto Seguro ganhasse crédito e longevidade. Nesse processo de construção da memória nacional, reforça o pesquisador, Varnhagen trabalhou com enredos temáticos encadeados cronologicamente. Assim, nos seus escritos, as origens do Brasil remontam à época do Descobrimento. É como se a história do Brasil não existisse antes da chegada dos portugueses. Na sequência, o autor de História Geral do Brasil considera a formação do povo, por meio da integração entre negros, índios e brancos. Neste caso, a herança portuguesa se sobrepunha às demais. “No livro, Varnhagen também trabalha com um mito fundador, este relacionado à invasão holandesa. Na visão dele, a união das três raças para expulsar os elementos estrangeiros teria sido o primeiro sinal de nacionalidade”, esclarece o pesquisador.
A abordagem cronológica desemboca, enfim, no que o autor da tese de doutorado classificou de “elos de continuidade”, que teriam sido forjados, no entender de Varnhagen, na transição sem conflitos entre o período Colonial e o Imperial. “Esses enredos temáticos constituíram um modelo de cronologia que se tornou constante nos manuais e livros didáticos de História do Brasil elaborados a partir da segunda metade do século 19 e ao longo do século 20. Se consultarmos as obras de autores do naipe de João Ribeiro, João Pandiá Calógeras, Pedro Calmon, Vicente Tapajós, Boris Furtado, entre outros, será possível identificar a presença da grade cronológica temática esboçada por Varnhagen, ainda que inserida em abordagens teóricas, metodológicas e ideológicas distintas”.
Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro: valorização do legado português (Fotos: Reprodução/Divulgação)A mesma visão histórica, acrescenta Ribeiro, costuma passear pelas falas de importantes personagens da atualidade, bem como pelos enredos de obras televisivas e cinematográficas. Um exemplo do uso atual de elementos presentes na construção histórica de Varnhagen, ressalta o historiador, pode ser encontrado no discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ocasião do anúncio da descoberta de uma gigantesca reserva de petróleo na camada pré-sal. Lula afirmou que os recursos que serão gerados pelo combustível fóssil significarão “a nova independência do Brasil”. “Quando assistimos a produções como Carlota Joaquina, no cinema, ou Caramuru, na televisão, também podemos identificar traços claros da ideia da Colônia como berço do Brasil independente”, analisa.
Retornando à frase do professor Amaral Lapa, que abre este texto e que também está consignada na tese de Ribeiro, convém situar a produção de Varnhagen no espaço e no tempo, como adverte o pesquisador. Ele pontua que, como qualquer historiador, o Visconde de Porto Seguro identificava-se com questões da sua época. “Isso implica trazer o historiador-diplomata para o interior dos debates travados naquele período acerca do fazer histórico, como objetivos, procedimentos e compromissos”, detalha. Desse modo, entende Ribeiro, Varnhagen não pode ser considerado um mero reflexo de um projeto político, mas sim um participante deste, na medida em que elaborou suas leituras e interpretações do passado pelas vivências e limites do seu tempo. “Em outros termos, a narrativa da nação de Varnhagen está permeada pelos termos de seu lugar social e das práticas de seu ofício. E foi neste espaço que ele interagiu e elaborou sua obra”. E completa: “Não se pode querer, portanto, definir pretensiosamente por meio de Varnhagen como o Brasil oitocentista pensava o passado e o papel do historiador. Sua obra não é uma janela aberta para toda uma época, mas ela ajuda a compreender um dos possíveis ângulos do seu tempo”.
Jornal da Unicamp

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