A propriedade na Cidade Antiga.
Anotações sobre Fustel de Coulanges
I - O AUTOR E A OBRA
Numa-Denis Fustel de Coulanges nasceu em Paris, em 1830, e desde cedo se interessou pelos estudos históricos. Na condição de professor da Universidade de Estrasburgo, em 1862, Fustel ministrava aulas de História e deu início à redação de "La Cité Antigue [01]." A primeira edição foi de apenas 650 cópias, mas poucos anos depois teve várias edições até se tornar um clássico.
O Livro Segundo trata sobre a Família e, estranhamente, o Capítulo VI deste livro é dedicado ao Direito de Propriedade. A propriedade na família? Sim, para Fustel, a história da propriedade faz parte da organização da família e da religião doméstica, conforme veremos.
II - O DIREITO DE PROPRIEDADE
Inicialmente, Fustel no s adverte que sua abordagem não pode ser baseada no Direito de Propriedade de nossos dias, ou seja, da época que a obra foi escrita: 1862/1863. [02]
A pesquisa de Fustel indica que alguns povos antigos jamais estabeleceram a propriedade em suas relações e outras adotaram a propriedade, superando um problema crucial de então: como afirmar "esta terra é minha!"
Segundo Fustel, os Tártaros [03] concebiam o direito de propriedade somente em relação aos seus rebanhos, mas não em relação ao solo. De outro lado, em relação aos germanos [04], a terra não pertencia a ninguém e a cada ano a própria tribo distribuía um lote aos seus membros para o plantio, cuja colheita pertencia ao que laborava a terra, o mesmo acontecendo em relação a uma parte dos povos de raça semítica [05] e alguns povos eslavos [06].
Com relação aos povos da antiga Grécia e Itália, no entanto, "desde a mais remota antiguidade," sempre se conheceu e praticou a propriedade privada e não existem registros históricos de que tivessem utilizado a terra de forma comum ou mesmo em relação à partilha do cultivo. Com os povos gregos, ao contrário, em algumas cidades os lavradores de então eram obrigados a disponibilizar parte de sua colheita à comunidade. Assim, contraditoriamente, tinha a propriedade do solo, mas não podia dispor livremente de seus frutos!
III - RELIGIÃO, FAMÍLIA E PROPRIEDADE
Segundo Fustel, este tripé – religião, família e propriedade – teve relação inseparável e fundamentava o Direito de Propriedade entre os povos antigos que estabeleceram de imediato a propriedade privada.
Fala-se aqui, evidentemente, da religião doméstica.
Necessariamente, devemos voltar ao Livro Primeiro, Capítulo III, em busca do entendimento do conceito de "fogo sagrado."
Segundo Fustel, o fogo tinha sentido divino e cada casa, seja de grego ou romano, deveria conter um altar com cinzas e carvões acessos, eternamente, como obrigação sagrada.
"Desventurada a casa onde este fogo apagasse."
Era obrigação do chefe da casa cobrir os carvões de cinza para que não se consumissem totalmente durante a noite e, na manhã seguinte, reavivar os carvões e alimentar o fogo com ramos secos, ou seja, rendia-se verdadeiro culto ao "fogo sagrado" e era este fogo quem mantinha a unidade e perpetuidade do grupo familiar através dessa "religião doméstica."
Assim, juntamente com o culto aos antepassados (cada família possuía seu túmulo), o fogo sagrado era a base da religião doméstica dos antepassados e, como veremos, terá grande influência na definição da propriedade.
Ora, sendo cada fogo exclusivo de cada família, ele se constituía, por assim dizer, na propriedade daquela família e, como deveria ser posto em um altar sobre o solo, terminou por transformar cada "lugar" do solo em sua propriedade e da família que lhe cultuava.
A família, portanto, devendo continuar unida em torno de suas tradições, erguia sua casa, seu altar e ali cultuava seu "fogo sagrado," eternamente. A família está ligada ao fogo e este, de sua vez, ligado ao solo, irremediavelmente.
Sendo tão essencial e sagrado, o fogo necessitava também de um espaço protegido: primeiro apenas um marco, depois um muro de pedra; depois uma cabana, depois uma casa de pedra, etc. Ao seu redor, as gerações se sucediam e agora já existem um grande pátio e altas construções para proteger o fogo sagrado.
IV - O CULTO AOS MORTOS
O culto aos ancestrais também apresentava forte tradição entre os povos antigos. Segundo Fustel, cada família tinha seu próprio túmulo e, da mesma forma que os fogos domésticos não se misturavam, também os túmulos eram exclusivos de cada família. Da mesma forma que não se permita enterrar um morto fora do túmulo da família, também não se permitia enterrar um estanho no mesmo local.
Assim como os muros passaram a proteger as casas que protegiam o fogo sagrado das famílias, também as cercas e os muros passaram a proteger o campo que servia de túmulo para determinada família. O local era inviolável, imprescritível e jamais poderia ser destruído ou transferido.
Seguindo a mesma lógica, o solo passou a pertencer aos mortos, cujas famílias lhes cultuavam e se obrigavam a proteger. Por conseqüência, também aquela terra passou a ser considerada propriedade sagrada da família. Mais tarde, os campos foram delimitados com troncos e pedras e se chamavam "termos." O termo era sagrado e o vizinho não ousava, sequer, aproximar-se demasiadamente dele, sob pena de castigos severos. Diz Fustel, citando Ovídio, que o deus familiar que se sentia ferido pelo arado do vizinho, clamava: "detém-te, este é o meu campo, lá está o teu."
Não como negar, portanto, a importância fundamental da família e da religião doméstica na delimitação da propriedade entre os povos antigas da região da Grécia e Itália. Assim, não foi, conseqüentemente, uma lei que estabeleceu a propriedade e seus limites para aqueles povos, mas os preceitos da religião.
Depois dessa fase, virá a formação das cidades, a fundação de Roma e suas leis. Mas esta é outra história.
Notas
01 COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. 2ª ed. São Paulo: Edipro, 1999. 334 p.
02 O Code Civil des Français tinha entrado em vigor em 21 de março de 1804 e, como sabemos, protegia fortemente a propriedade. Tinha a seguinte estrutura original:
Título Preliminar: Da publicação, dos efeitos e da aplicação das leis em geral (artigos 1 a 6);
Livro Primeiro: Das pessoas (artigos 7 a 515);
Livro Segundo: Dos bens e das diferentes modificações da propriedade (artigos 516 a 710) e
Livro Terceiro: Dos diferentes modos de adquirir a propriedade (artigo 711 a 2302).
03 Tártaros: A Tartária é uma região de fronteiras indefinidas na Ásia Central, considerada como o território de origem dos tártaros, um grupo étnico relacionado aos turcos e aos mongóis. Alguns historiadores crêem que a Tartária já constituiu sua própria monarquia, do século XIII ao XVI, embora muitos ainda digam que os tártaros constituíram apenas tribos, que ocupavam o sudeste da atual Rússia. Se existiu mesmo um império tártaro, ele se estendia sobre toda a Rússia central, oriental, partes do Alasca e norte do Japão. (http://pt.wikipedia.org).
04 Germanos: são um grupo histórico de povos falantes de línguas indo-européias, originários da Europa Setentrional e identificados pelo uso comum das línguas germânicas, que se diversificaram a partir do proto-germânico ou germânico comum durante a Idade do Ferro pré-romana. Os povos falantes de línguas germânicas da Idade do ferro romana e do período de migrações dos povos bárbaros revelam uma cultura material uniforme e crenças religiosas comuns, embora pesquisas recentes contestem a existência de um grupo étnico germânico distinto. (http://pt.wikipedia.org).
05 Semíticos: é um adjetivo que se refere aos povos que tradicionalmente falavam línguas semíticas ou a coisas que lhes pertencem. A análise genética sugere que os povos semíticos partilham uma significativa ancestralidade comum, apesar de diferenças importantes e de contribuições de outros grupos. Existe muito debate acerca do âmbito do uso "racial" da palavra no contexto da genética de populações e da história, mas como termo lingüístico está bem definida, referindo-se a uma família de línguas — quer antigas, quer modernas —, originárias na sua maioria do Médio Oriente, que inclui o acádio, o amárico, o árabe, o aramaico, o assírio, o hebraico, o maltês e o tigrigna. (http://pt.wikipedia.org).
06 Eslavos: são um povo indo-europeu que habita a região da Europa central e oriental há cerca de cinco mil anos, cujos descendentes atuais são os russos, bielo-russos, ucranianos (ramo oriental), búlgaros, sérvios, croatas, macedônios, eslovenos (grupo meridional), Tchecos, eslovacos, polacos e lusácios (grupo ocidental). A idéia de que os povos eslavos têm muito em comum quanto às suas origens, a origem de suas línguas e de alguns aspectos culturais são derivados do nacionalismo romântico, do pan-eslavismo e da noção de raça como uma base biológica para as nações, embora muitas semelhanças histórico-genéticas, geo-culturais e fonético-idiomáticas tenham sido comprovadas por muitos estudos sobre os povos proto-indo-europeus ou ários. (http://pt.wikipedia.org).
Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/10600/a-propriedade-na-cidade-antiga#ixzz1rqsdyIPe
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