quinta-feira, 12 de abril de 2012

O Universo em um botão de tulipa: como o mercado de flores do século 17 explica todas as crises da Terra

Alexandre Versignassi
Esse mercado só se sustentaria se os preços continuassem subindo para sempre. Mas os valores ali já não tinham mais nada a ver com a demanda pelas flores como artigos de luxo. Não havia tantos nobres dispostos a gastar o preço de uma mansão numa florzinha para mostrar aos amigos. A quantidade de gente assim é um recurso finito. Àquela altura, não havia mais um consumidor final para valer. As pessoas só compravam os títulos por valores extorsivos na esperança de que surgisse alguém “mais otário” lá na frente disposto a pagar mais ainda por eles. Mas otários também são um recurso finito. Uma hora começou a faltar compradores.

Para piorar, descobriram um monte de fraudes: floristas estavam vendendo mais contratos do que a quantidade de bulbos que tinham em estoque. Era como imprimir dinheiro falso. Outra: ninguém sabia que o responsável pela existência da Semper Augustus era um vírus (nem fazia ideia do que era um vírus, já que a vida microscópica era desconhecida na época).

Se o vírus não infectasse o bulbo, nascia uma tulipa normal. E o investidor via que tinha comprado gato por lebre. Quando tudo isso veio à tona, a desconfiança reinou. E o mercado minguou. De vez.

Quem tinha vendido casa e carruagem para investir no dinheiro fácil das tulipas se viu com as calças na mão de uma hora para a outra. Os contratos tinham virado “títulos podres”, como dizem os economistas. Não valiam mais nada. O governo precisou intervir, perdoando dívidas de pessoas falidas. E a economia demoraria anos para voltar ao normal.

Para qualquer um que acompanhou o que aconteceu com a economia antes, durante e depois da crise de 2008, tudo isso é familiar. No mundo dos investimentos, os primeiros anos do século 21 foram tão eufóricos como a época da mania das tulipas. Inclusive boa parte das ações subiu tanto quanto as flores de 300 anos atrás. Sem exagero, nos três anos anteriores à crise, as da Vale aumentaram tanto quanto a Semper Augustus nos três anos de pico da bolha holandesa: 200%. As da Gerdau foram no mesmo pique das tulipas Gouda: 1.000%.

E a onda não afetou só quem opera diretamente na bolsa. As 312 mil pessoas que optaram por deixar uma parte de seus fundos de garantia em ações da Petrobras quando o governo criou esse programa, em 2000, viram seu dinheiro dar cria. Quem separou R$ 50 mil do FGTS para investir nisso, por exemplo, chegou a ter mais de R$ 500 mil na conta em 2008 – e fazendo menos esforço do que se tivesse ganhado esse dinheiro no Big Brother; ou na Holanda do século 17.

A diferença é que esse não foi um jogo entre malandros e otários. Os lucros dessas empresas estavam subindo no mesmo ritmo que o preço das ações – às vezes até mais rápido. Isso deixa tudo mais concreto (veja o boxe da página 16).

Se você tem uma ação da Vale, por exemplo, significa que é dono de 0,2 bilionésimo da empresa. Como proprietário de uma parte da mineradora, você tem direito a um pedaço dos lucros dela, os “dividendos”, no jargão. E esse dinheiro pinga na sua conta de tempos em tempos. É para isso que serve uma ação: pagar dividendos.

Se os lucros estão altos, o dinheiro que entra para você também é alto. Ter esses papéis nas mãos é um bom negócio quando a empresa é lucrativa. Tão bom que outras pessoas vão querer comprá-los de você para ficar com o direito de receber um naco dos lucros da companhia. Aí é a lei da oferta e da procura: se muita gente está interessada nelas, o preço sobe. E você pode vender na bolsa por mais do que pagou. Básico.

É para isso também que serve uma ação – lucrar sobre as expectativas dos outros. Quem compra, em tese, é um sujeito interessado em ficar com o papel para que a grana dos dividendos caia na conta dele. Mas, como tem muita gente nesse mercado, na prática o comprador típico é alguém que só espera vender a ação por um preço maior no futuro, igual ao mercado de tulipas.

Os ganhos podem ser tão grandes entre a compra e a venda de uma ação que, na prática, a bolsa gira em torno disso. Quase todo o mundo que compra papéis o faz na esperança de vendê-los por mais dinheiro um dia. E os dividendos acabam vistos como meros adicionais, só um dinheirinho que chega de vez em quando. O que vale mesmo é a expectativa de vender os papéis por um valor duas, três, dez vezes maior. Mas isso é uma inversão de valores que só atrapalha na hora de entender a lógica do mercado acionário.
Para começar, o que faz o preço de uma ação subir? O óbvio: quanto mais pessoas estiverem interessadas no papel, mais caro ele vai ficar no mercado. Normal. Mas o que faz com que muita gente decida comprar ações de alguma empresa em especial, levando o preço dos papéis lá para cima? O potencial de lucros dessa empresa. Quanto mais a companhia faturar, maior será a capacidade de ela pagar dividendos polpudos. Ou seja, os dividendos não são meros extras. Eles formam a essência do mercado financeiro. Se existe a expectativa de que uma empresa vai dar mais lucros, de que ela vai pagar dividendos melhores lá na frente, mais investidores correrão para as ações dela.

E o preço vai subir.

Mas tem um problema aí: expectativa é só expectativa. Ninguém tem como dizer se uma empresa vai dar mais ou menos lucro no futuro. E, se ela começar a viver no prejuízo e acabar falindo, o destino das ações será o mesmo dos títulos de tulipas: não valer mais nada. É por causa dessa incerteza que o mercado financeiro está cheio de analistas pagos para estudar a saúde financeira das empresas. Eles fuçam os balanços e escarafuncham o mercado em busca de quaisquer indícios sobre a capacidade de uma companhia continuar dando lucro.

Mas não é o suficiente. Por exemplo, você compraria ações de uma empresa que aumentou seu faturamento de US$ 13 bilhões para US$ 100 bilhões em cinco anos? Para completar, imagine que essa mesma companhia ainda afirmasse por A mais B que iria dobrar esses US$ 100 bilhões logo ali, no ano seguinte.

Adicione o fato de que ela já era tão grande e aparentemente segura como uma Vale da vida. Não comprar ações de uma empresa dessas seria como rasgar dinheiro. E essa companhia existiu: era a Enron, a maior companhia de energia elétrica dos EUA no fim do século 20.

Depois de quase multiplicar seu faturamento por dez, ela foi para a confortável posição de segunda companhia que mais faturava no mundo, atrás apenas da Exxon Mobil, a maior petroleira da Terra. Não podia haver investimento mais seguro. Era a empresa responsável por iluminar boa parte do território da maior economia do mundo. Para ela deixar de ganhar, só se os americanos abdicassem da eletricidade para viver sob luz de velas.

Por isso mesmo, as companhias de energia elétrica geralmente são garantia de um fluxo constante de dividendos. Um negócio quase sem risco. Tanto que, em épocas de vacas magras muita gente corre para as ações delas – enquanto a Bovespa derretia na crise de 2008, por exemplo, os papéis de várias empresas dessa área ficaram imunes. Mas claro: se fosse só por isso, todo o mundo compraria apenas ações da companhia de energia elétrica. Mas tem outro ponto. Se, por um lado, essas ações garantem dividendos faça chuva ou faça sol na economia, por outro, elas dificilmente sobem grande coisa. O potencial de lucro dessas empresas está restrito ao consumo de energia das pessoas. E isso nunca dá grandes saltos de uma hora para a outra. Então, as expectativas de lucro nunca batem no teto. Ficam sempre ali, numa zona morna. E o preço das ações delas nunca sobe um absurdo do dia para a noite. Se você tem papéis da Petrobras, por exemplo, e ela anuncia que o pré-sal tem o dobro do petróleo que estava previsto, o potencial de lucro dela vai para a estratosfera, e o preço das ações sobe junto. Com uma empresa de energia elétrica é virtualmente impossível acontecer algo assim.

E é isso o que torna o caso da Enron especial. Se uma elétrica das grandes como ela começa a apresentar lucros absurdos, é o mundo perfeito: uma ação com um potencial enorme de subir e que não tem como descer. Era bom demais para ser verdade. Mas era verdade. Aí não deu outra: as ações dispararam. Para variar, exatamente naquele ritmo da Semper Augustus, a rainha das tulipas: 200% em três anos – entre 1999 e 2001, a ação da Enron foi de US$ 30,00 para US$ 90,00. Bom para os investidores que compraram essas ações na bolsa; melhor ainda para os executivos da Enron. Eles ganhavam toneladas desses papéis de graça, como parte de seus bônus anuais. Um prêmio merecido, diga-se, se você levar em conta que a Enron recebeu o Prêmio de Empresa mais Inovadora da América, da revista Fortune, por seis anos consecutivos.

Depois que o preço dos papéis triplicou, alguns executivos fizeram o que qualquer um faria: venderam as centenas de milhares de ações que tinham ganho de bônus, embolsaram o lucro todo e saíram para curtir a vida. Um deles foi Lou Pai, um americano de origem chinesa. Aos 52 anos, ele controlava uma das divisões da Enron e resolveu se aposentar. Lou conseguiu US$ 268 milhões numa tacada só e foi viver tranqüilo numa fazenda de 310 km2 no Colorado – a segunda maior propriedade daquele estado. Também tinha uma menorzinha, no Texas, para abrigar seu haras.

Um fim de carreira mais do que feliz. Só que a história estava longe de acabar. Para quem tinha comprado ações da Enron, ela estava apenas começando. Pouco mais de um ano depois de o valor de cada ação ter chegado a US$ 90,00, a Enron estava falida. E quem tinha apostado suas economias nela também. Perda total. Um investimento que deveria ser à prova de risco − e que já tinha enriquecido muita gente − se mostrava furado.

O que aconteceu?

Um crime. Os executivos da empresa estavam mentindo sobre os lucros. Eles colocavam valores falsos nos balanços para garantir seus próprios lucros, na forma de bônus pelo bom desempenho da companhia. Uma hora, porém, as autoridades que fiscalizam empresas com ações na bolsa acabaram descobrindo as fraudes. Refizeram, então, os balanços e constataram que a Enron estava dando prejuízo. A notícia se espalhou e as ações despencaram para perto de zero. E em questão de meses foram a zero mesmo: a Enron entrou com um pedido de falência. A tulipa estava morta.

Esse foi um caso extremo, em que uma mentira estava por trás da escalada nos preços das ações. E que terminou com a empresa fechando as portas. Mas o mercado vive situações parecidas o tempo todo. Não precisa haver uma fraude para que uma ação suba a um valor muito maior do que deveria. Basta que as expectativas sobre os lucros que ela possa dar no futuro sejam exageradas.

Na maioria das vezes, inclusive, a irracionalidade reina não só em relação a uma única empresa, mas no mercado inteiro. Centenas de companhias diferentes podem ver o preço de suas ações subir ao mesmo tempo por conta de expectativas fora da realidade. Se houver uma esperança muito grande de que a economia vá crescer, por exemplo, isso vai se refletir no mercado acionário. Claro: uma boa economia oferece mais empregos. Mais empregos = mais consumidores. Mais consumidores, mais possibilidades de lucro para as empresas. Aí as ações sobem e...

Opa! Espera um pouco. Primeiro, o que significa exatamente uma “boa economia”? Segundo: um mundo com muito emprego, muito consumo e muito lucro para muita gente é causa ou consequência de “uma boa economia”? A resposta é uma só: “Sim”. Um mundo ok é causa e consequência de uma economia nos trinques. Mas para entender exatamente o que essa resposta quer dizer, você precisa compreender outra coisa: o que é o dinheiro.

Dinheiro, a princípio, é um mecanismo engenhoso: permite que uma manicure compre seis pãezinhos sem ter de fazer as unhas do padeiro. Mas os chimpanzés talvez tenham uma resposta melhor. Vamos ver o que eles têm a dizer.

(Trecho do livro Crash – Uma breve história da economia – da Grécia Antiga ao século XXI, do editor da SUPER Alexandre Versignassi. Leia o início do capítulo em http://migre.me/5xZOt . Compre o livro aqui: http://abr.io/1Kqy.)
Revista Superinteressante

Um comentário:

  1. Olá, tudo bem?

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