quinta-feira, 5 de abril de 2012

1922: em busca da cabeça do Brasil moderno


1922: em busca da cabeça do Brasil moderno
Marly Silva da Motta
Intitulado 1922: em busca da cabeça do Brasil moderno, o trabalho que vou apresentar retoma algumas das questões discutidas em minha dissertação de mestrado, defendida nesta casa há exatamente três anos atrás - outubro de 1991- sob a orientação do professor Manoel Salgado.
Dos vários aspectos que têm marcado as novas abordagens dos anos 20, pelo menos três devem ser especialmente destacados. Em primeiro lugar, a percepção da especificidade do período em contraposição a uma tendência na historiografia que via 20 apenas como "antecedente" dos anos 30, numa construção de memória que elevava 1930 a marco divisor na história brasileira. Parece-me, assim, que a década de 20 passou a ocupar hoje um lugar próprio na historiografia, iluminada por suas próprias questões, deixando de lado, em parte, a incômoda posição de ter de explicar porque 30 ocorrera.

Por outro lado, não há como negar a sedução que a inquietação dos anos 20 exerce sobre a intelectualidade de um país sempre às voltas com o dilema de estar entre a catástrofe iminente e a esperança de algo novo. Menos preocupada com influências ou heranças, a historiografia recente sobre os anos 20 compartilha, no entanto, com a "geração de 22" a utopia da inserção do país na modernidade.
Finalmente, é preciso destacar a abertura do leque de temas, para além daqueles que particularmente marcaram o período. Ou seja, além dos eventos tradicionais dos anos 20 - a fundação do PCB, a Semana de Arte Moderna, e a irrupção do movimento tenentista -, cuja lugar na memória e na historiografia nacionais foi cuidadosamente construído ao longo do tempo, verifica-se agora a introdução de temas antes relegados a segundo plano. Refiro-me, por exemplo, à tensa sucessão presidencial de 1922, ou ainda à organização de um centro do pensamento católico, como o Centro Dom Vital, ou então a propostas de reformas educacionais, que, geralmente ocupavam um lugar secundário no quadro de análises que buscavam explicar os nossos anos 20.
No que toca especificamente à comemoração do centenário da independência, em 1922, esta sequer é lembrada, a não ser em citações passageiras em enciclopédias e livros didáticos antigos. Tal omissão pode ser explicada, sem dúvida, pela suspeição que essas comemorações coletivas despertavam na comunidade de historiadores. Tais celebrações, que encarnariam o artificialismo e o elitismo da ideologia dominante, podiam interessar, se tanto, à "história oficial".
O estudo de Mona Ozouf sobre as festas da Revolução Francesa, publicado em 1976, pode ser considerado um importante passo para a quebra de tais preconceitos. Destacando o caráter institucional do evento comemorativo, pela massa de relatórios, discursos, projetos e propostas que lhe foram dedicados, a historiadora francesa enfatiza sobretudo o aspecto pedagógico da comemoração, chamada a tornar-se a "professora da nação". É forte o apelo à reunião, à unificação, à eliminação dos fatores de diversidade, aspecto aliás ressaltado por Raoul Girardet
no seu Mitos e mitologias políticas. É pois no âmbito de uma corrente historiográfica preocupada com o delicado processo de construção das nações que se desenvolveram estudos sobre a constituição do universo nacional, ou seja, símbolos, 2 práticas, comportamentos e valores que ao definirem o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, tornam-se elementos básicos da identidade nacional.
A memória coletiva ocupa um papel fundamental em todo esse processo, como foi bem demonstrado por Eric Hobsbawm em seu trabalho sobre a invenção de tradições na Europa de 1870 a 1914, e principalmente no clássico de Pierre Nora, Les lieux de mémoire, onde é desvendada a relação entre memória e nação. "Datas magnas" - como o 4 de julho nos EUA, o 14 de julho na França, o 7 de setembro, no Brasil - seriam lugares de sacralização da nação e de identificação do nacional.
Uma vasta documentação, especialmente representada por jornais, revistas, livros, congressos, palestras,- e que foi por nós explorada na dissertação de mestrado - indica efetivamente que a comemoração do centenário da independência em 1922 mobilizou a intelectualidade dos dois principais centros urbanos do país, Rio de Janeiro e São Paulo. Ao forçar a busca das origens e a avaliação do papel das figuras históricas, ao julgar o passado colonial e as realizações republicanas, a comemoração do centenário suscitou debates sobre a formação e as perspectivas da sociedade brasileira, recolocando de forma especialmente urgente o dilema da salvação nacional. A década de 20 abriu-se, assim, com um aceso debate sobre a nação brasileira às vésperas de completar cem anos de vida independente, marcada porém pelo atraso.
Em desacordo sobre os reais motivos do descompasso do país com a modernidade, divergindo em torno dos caminhos que deveriam conduzir até ela, a intelectualidade brasileira convergia, no entanto, na compreensão de que o centenário seria o momento-chave em que tais questões deveriam ser discutidas.
Momento de articulação do presente/passado/futuro, de construção de diferentes modelos para a criação de uma nação "brasileira e moderna", o centenário de 1922 não se reduziu à comemoração de uma data memorável, mas ao contrário, envolveu a intelectualidade brasileira na tarefa sempre renovada de criar a nação, traçar a identidade nacional e, mais que tudo, construir um Brasil moderno.

Mas o que significava pensar o Brasil nesse momento? O grande desafio era, sem dúvida, romper com o passado recente, encarnado, por um lado, numa Belle Époque falida após a I Guerra; e, por outro, numa República que se revelou bem distante dos sonhos dos primeiros republicanos. Ou seja, de qualquer maneira era preciso buscar novos parâmetros para definir uma nação moderna, já que o modelo até então consagrado parecia esgotado.
Marcada pela missão de fecundar idéias singulares, - "basta de fecundação artificial", bradava Ronald de Carvalho - nem por isso a "geração de 22" se furtou a buscar a modernidade através de uma integração crítica e seletiva das idéias que circulavam na Europa, e que revelavam o desmoronar dos valores que sustentavam a Belle Epoque, ou seja, o liberalismo, o racionalismo, o otimismo cientificista. Desse modo, o antiintelectualismo, o antiliberalismo e o nacionalismo, foram componentes que alimentaram o chamado pensamento tradicionalista, mas que foram igualmente levantados pelas correntes de vanguarda para demolir todas as "tradições".
Abastecidos nas mesmas fontes, tradição e vanguarda reivindicavam para si o monopólio de portadores da modernidade.
Para os tradicionalistas, nada havia de moderno na realidade urbano-industrial marcada pelo desenraizamento e o artificialismo. Para enfrentar esse mundo que se desmanchava no ar, o homem moderno precisava de raízes firmemente ancoradas na tradição nacional. O retorno ao campo e a valorização do setor agrário eram difundidos como a possibilidade concreta de um mundo harmonioso. A sociedade da máquina, intelectualizada e racionalizada, era entendida como decadente e caótica. Ao se afastar do mundo natural, através da artificialidade do maquinismo e do meio urbano, o homem teria perdido contato com as "reais"
virtudes da civilização.
"Fujamos da natureza", essa era a palavra de ordem da vanguarda, marcando uma opção de enfrentamento da modernidade radicalmente oposta à dos tradicionalistas, que pregavam um retorno à natureza. O Manifesto Futurista, de Marinetti, marcado pela apologia dos "aeroplanos, locomotivas e oficinas", indicava o desejo, marcante na vanguarda européia, de exaltar a vida moderna, corporificada no maquinismo e panorama urbano.
No Brasil, a intelectualidade comprometida com a construção de um Brasil moderno oscilou entre a tradição e a vanguarda. É marcante a diferença entre essas duas elites intelectuais: uma, composta por indivíduos ligados às idéias vanguardistas européias, rompendo com os valores "clássicos" e buscando sintonizar a realidade nacional com o ritmo veloz e febril do novo mundo urbano e industrial; outra, igualmente filiada a correntes internacionais, de caráter conservador, marcada pelo apelo aos valores da natureza e do campo, pelo repúdio ao industrialismo e à modalidade da vida urbana, litoralista, cosmopolita e liberal. Ambas se unem pela oposição às pretensões da razão universal derrotada na guerra, e advogam a originalidade de cada nação. É claro que, como em todas as classificações excessivamente simples, a dicotomia, por vezes, torna-se artificial, uma verdadeira camisa-de-força. Porém como todas as distinções encerram algum grau de verdade, a oposição "tradicionalismo" x "vanguarda" oferece um ponto de partida para a
reflexão.
A adesão aos valores "sólidos" da tradição rural, a filiação às correntes que pregavam um retorno à natureza, a valorização da atividade agrária frente à "ameaça" industrialista, atraíam tanto os intelectuais da reação católica, Jackson de Figueiredo e Tristão de Ataíde, como os "verde-amarelos", Plínio Salgado e Cassiano Ricardo, ou ainda Oliveira Vianna e Monteiro Lobato, membros de uma elita agrária em crise. Para estes intelectuais, a identidade nacional teria que ser buscada longe dos centros urbanos litorâneos corrompidos pelo "vício da imitação".
Como diz Monteiro Lobato, "é preciso frisar que o Brasil está no interior, nos sertões onde o sertanejo vestido de couro vaqueja(...) sem um escrúpulo de francesismo a lhe aleijar a alma(...). Romper com as idéias importadas significava deixar de ser caranguejo a arranhar o litoral. A descrença nos valores da belle époque , a avaliação crítica dos cem anos de naçào, a crise do pacto republicano, reforçavam a necessidade maior de firmar os "bastiões da nacionalidade" no interior. Era preciso não esquecer a licão de Euclides da Cunha: rumo aos sertões.
Marcado por um certo retomar do pensamento romântico, a corrente tradicionalista tendeu a privilegiar o espaço. O espacial seria o elemento definidor do Brasil e garantidor de sua originalidade na quadro internacional, e a geografia, o instrumento mais adequado para uma reflexão sobre a nacionalidade brasileira. A identificação entre nacionalismo e território era clara. Quem não se lembra do primeiro contato com o Brasil, "fazendo rios com tinta azul e montanhas com lápis marrom, traçando fronteiras com tinta vermelha...", concluía Plínio Salgado. Afinal, se a avaliação dos 100 anos de história parecia nos condenar, a geografia poderia nos redimir.

Além de se constituírem em "cerne da nacionalidade", as populações rurais seriam as maiores fontes produtoras da riqueza nacional. Como diz Alberto Torres, ao trabalho produtivo da lavoura se contrapunham as indústrias das cidades, "parasitas mantidos pelos cofres públicos...". Considerada por grande parte da historiografia como apenas uma "manifestação ideológica dos setores agrários conservadores" frente ao crescente espaço ocupado pelos interesses industriais no panorama político, essa corrente de ideias, que privilegiava o interior, a natureza, o campo, portava um projeto de nação. Só que também em nome de um projeto de nação, outros louvavam a urbanização e a industrialização.
Para um expressivo grupo de intelectuais, especialmente aqueles que dentro do modernismo admiravam os cânones vanguardistas - Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, para citar os principais - era difícil acreditar que o Brasil estava no sertão. Para estes, a cidade impunha-se como o novo centro dinâmico da vida nacional, impunha-se como identidade nova. Como diz Menotti, "queremos luz, ar, aeroplanos, reivindicações obreiras, motores, chaminés de fábricas, sangue, velocidade...". A incorporação à ordem moderna, compreendida
como urbana e industrial, precisava se afastar do "nacionalismo carro-de-boi, com Jeca "maginando", canto de cambaxirra e regato sussurrante...". Não era nas matas ou no sertão que se encontraria o tipo representativo de nacionalidade. Como diz Mario, "fujamos da natureza. Só assim a arte não se ressentirá da ridicula fraqueza da fotografia colorida...".

Diante do desafio de comemorar o centenário da independência, a geração intelectual de 1922 produziu novas e variadas explicações do Brasil. Explicações caracterizadas por um desejo dilacerante de compreender o país, de repensá-lo, e, principalmente, de salvá-lo. A própria dinâmica da celebração - o balanço obrigatório dos feitos do passado, a avaliação do presente de realizações frustradas, a perspectiva de um futuro incerto, - estimulava a produção acelerada de
significações do que fora essa nação, do que era àquela altura e do que deveria ser no futuro. Filiada a diferentes concepções de modernidade, devotada à causa da brasilidade, essa geração partilhava a crença de que a construção da sociedade moderna dependia de um projeto de reconstrução da nação brasileira. Essa produção intelectual resultou na configuração de um imaginário nacional - firmado na invenção de novas tradições e na construção de novos marcos simbólicos - que teve uma insuspeitada permanência na mentalidade coletiva. Paradigmaticas, as interpretações que deram para o Brasil inauguraram novos estilos de pensar o país, sua história, seus dilemas do presente e suas perspectivas do futuro.
Institucionalizadas, tais idéias se tornaram referências constantes em programas de governo. Formaram discípulos, seguidores e dissidentes. Detonado um debate que atravessou toda a década de 1920, deixou para os períodos posteriores a sensação de que o país encontrara seu perfil e o seu caminho. Oliveira Viana, Mario de Andrade, Monteiro Lobato, estabeleceram estilos de pensamento, e, principalmente, tornaram-se marcos obrigatórios de reflexão e ação para aqueles que insistiram e ainda insistem em desvendar a questão nacional.

MOTTA, Marly Silva da. 1922: em busca da cabeça do Brasil moderno. Rio de Janeiro, CPDOC,1994. 8f.
Seminário 70 Anos da Coluna Prestes: 1924-94
IFCS/UFRJ - 26 de outubro de 1994

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