segunda-feira, 2 de abril de 2012

1807

Os ingleses dão risada: na charge, "Boney", como apelidam Napoleão, puxa a peruca de Junot por não ter conseguido impedir a fuga da família real e chama o general de "seu grandessíssimo patife". http://brasilribaltareal.blogspot.com.br


Laurentino Gomes*

Imagine que, num dia qualquer, os brasileiros acordassem com a notícia de que o presidente da República havia fugido para a Austrália sob a proteção de aviões da Força Aérea dos EUA. Com ele, teriam partido, sem aviso prévio, todos os ministros, os integrantes dos tribunais superiores de Justiça, os deputados e senadores e alguns dos maiores líderes empresariais. E mais: a esta altura, tropas da Argentina já estariam marchando sobre Uberlândia, no Triângulo Minei­ro, a caminho de Brasília. Abandonado pelo governo e todos os seus dirigentes, o Brasil estaria à mercê dos invasores, dispostos a saquear toda e qualquer pro­priedade que encontrassem e assumir o controle do país por tempo indeterminado.
Provavelmente, a primeira sensação dos brasileiros diante de uma notícia tão inesperada seria de desamparo e traição. Depois, de medo e revolta. Foi assim que os portugueses reagiram na manhã de 29 de novembro de 1807, quando circulou a informação de que a rainha, o príncipe regente e toda a corte estavam fugindo para o Brasil sob a proteção da Marinha britânica. Nunca algo semelhante tinha acontecido na história de qualquer outro país europeu. Em tempos de guerra, reis e rainhas haviam sido destronados ou obrigados a se refugiar em territórios alheios, mas nenhum deles tinha ido tão longe a ponto de cruzar um oceano para viver e reinar do outro lado do mundo. Até aquele momento nenhum rei havia colocado os pés em seus territórios ultramarinos para uma simples visita – muito menos para ali morar e governar. Era, portanto, um acontecimento sem precedentes tanto para os portugueses, que se achavam na condição de órfãos de sua monarquia da noite para o dia, como para os brasileiros, habituados até então a ser tratados como uma simples colônia de Portugal.
Duzentos anos atrás, a noção de Estado, governo e identidade nacional era bem diferente da que se tem hoje. Ainda não existia em Portugal a idéia de que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido – o princípio fundamental da democracia. Sem o rei, o país ficava à míngua e sem rumo. Dele dependiam toda a atividade econômica, a sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português.
Por que o rei fugia?
Antes de explicar a fuga, é importante esclarecer que, nessa época, o trono de Portugal não era ocupado por um rei, mas por um príncipe regente. Dom João reinava em nome da mãe, dona Maria 1ª. Declarada insana e incapaz de governar, a rainha vivia trancafiada no Palácio de Queluz, a cerca de 10 quilômetros de Lisboa. Segundo filho da rainha louca, dom João não tinha sido edu­cado para dirigir o país. Seu irmão mais velho e herdeiro natural do trono, dom José, havia morrido de varíola em 1788, aos 27 anos. Além de despreparado para reinar, dom João era um homem solitário, às voltas com problemas conjugais. Em 1807, fazia 3 anos que vivia separado da mulher, a princesa Carlota Joaquina, uma espanhola geniosa e mandona com quem tivera 9 filhos, um dos quais havia morrido antes de completar 1 ano. O casal, que se odiava profundamente, dormia não só em camas separadas, mas em palácios diferentes e distantes um do outro. Carlota morava em Queluz, com a rainha louca. Dom João, em Mafra, com centenas de frades e monges que viviam à custa da monarquia portuguesa.
O príncipe regente era tímido, supersticioso e feio. O principal traço de sua personalidade e que se refletia no trabalho, no entanto, era a indecisão. No meio de grupos com opiniões conflitantes, relutava até o último momento a fazer escolhas. As providências mais elementares do governo o atormentavam e angustiavam para além dos limites. Por isso, delegava tudo aos ministros que o rodeavam. Em novembro de 1807, porém, dom João foi colocado contra a parede e obrigado a tomar a decisão mais importante da sua vida. A fuga para o Bra­sil foi resultado da pressão irresistível exercida sobre ele pelo maior gênio militar que o mundo havia conhecido desde os tempos dos césares do Império Romano: Napoleão Bonaparte.
Em 1807, o imperador francês era o senhor absoluto da Europa. Seus exércitos haviam colocado de joelhos todos os reis e rainhas do continente, numa sucessão de vitórias brilhantes. Só não haviam conseguido subjugar a Inglaterra. Protegidos pelo canal da Mancha, os ingleses tinham evitado o confronto direto em terra com as forças de Napoleão. Ao mesmo tempo, haviam se consolidado como os senhores dos mares na Batalha de Trafalgar, em 1805, quando sua Marinha de Guerra, sob o comando de lord Nelson, destruiu, na entrada do Mediterrâneo, as esquadras combinadas da França e da Espanha. Napoleão reagiu decre­tando o bloqueio continental, medida que previa fechamento dos portos europeus ao comércio de produtos britânicos. Suas ordens foram imediatamente obedecidas por todos os países, com uma única exceção: o pequeno e desprotegido Portugal. Pressionado pela Inglaterra, sua tradicional aliada, dom João ainda relutava em ceder às exigências de Napoleão. Por essa razão, em novembro de 1807 tropas francesas marchavam em direção à fronteira de Portugal, prontas para invadir o país e destronar seu príncipe regente. Encurralado entre as duas maiores potências econômicas e militares de sua época, dom João tinha duas alternativas amargas e ex­­clu­dentes. A 1ª era ceder à pressão de Napoleão e aderir ao bloqueio continental. A 2ª, aceitar a oferta dos aliados ingleses e embarcar para o Brasil levando a família real, a maior parte da nobreza, os tesouros e todo o aparato do Estado.
Aparentemente, era uma oferta generosa. Na prática, tratava-se de uma chantagem. Se dom João optasse pela primeira escolha e se curvasse às exigências de Napoleão, a Inglaterra repetiria em Portugal o que já havia feito, meses antes, na também relutante Dinamarca. Na manhã de 1o de setembro de 1807, os habitantes de Copenhague, a capital dinamarquesa, acordaram sob uma barragem de fogo despejada pelos canhões dos navios britânicos ancorados diante do seu porto. O bombardeio durou 4 dias e 4 noites. Ao final, 2 000 pessoas estavam mortas. No dia 7, Copenhague capitulou. Os ingleses se apoderaram de todos os navios, materiais e munições, deixando a cidade sem defesas. No caso de Portugal, as conse­qüências poderiam ser ainda piores. Se o príncipe regente aderisse a Napoleão, os ingleses não só bombardeariam Lisboa e seqüestrariam a frota portuguesa como muito provavelmente tomariam suas colônias ultramarinas, das quais o país dependia para sobreviver.
Com o apoio dos ingleses, o Brasil, a maior e mais rica dessas colônias, provavelmente declararia sua independência mais cedo do que se esperava, seguindo o exemplo dos EUA e de seus vizinhos territórios espanhóis. E, sem o Brasil, Portugal não seria nada.
A decisão
Os meses que antecederam a decisão foram tensos e agitados. No dia 19 de agosto de 1807, o Conselho de Estado se re­u­niu no Palácio de Mafra para discutir a crise política. Composto dos 9 auxiliares mais próximos do príncipe regente, incluindo seu roupeiro e seu médico particular, o conselho era o mais importante órgão de assessoria da monarquia, encarregado de propor, em tempos de guerra e paz, as grandes medidas do governo. Dom João leu os termos da intimação de Bonaparte: Portugal deveria aderir ao bloqueio continental, declarar guerra à Inglaterra, retirar o embaixador em Lon­dres, expulsar o embaixador inglês de Lisboa e fechar os portos portugueses aos navios britânicos. Por fim, teria que prender todos os ingleses em Portugal e confiscar suas propriedades. A­medrontado, o conselho aprovou imediatamente as condições de Napoleão, com duas ressalvas: os ingleses não seriam presos nem suas propriedades confiscadas.
Era tudo um jogo de faz-de-conta, uma partida perigosa, na qual Portugal tentava blefar simultaneamente com Napoleão e com a Inglaterra. Enquanto fingia aceitar o ultimato da França, negociava com a Inglaterra uma solução diferente para o impasse. Logo depois de encerrada a reunião, o representante inglês em Lisboa, Percy Clinton Sidney, visconde de Strangford, escreveu ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, George Canning, dando uma versão dos acontecimentos bem diferente do que relatava a carta enviada a Napoleão. Segundo Strangford, Portugal tentava ganhar tempo com “um aparente sistema de hostilidades”. A guerra com a Inglaterra seria oficialmente declarada, mas era apenas uma dissimulação.
Espremido entre as duas potências rivais, Portugal tinha a seu favor a precariedade das comunicações e dos transportes. Em 1807, o envio de uma carta de Lisboa para Paris demorava duas semanas. Os correios viajavam por estradas de terra esburacadas, que ficavam intransitáveis em dias de chuva. A lentidão permitia aos portugueses ganhar tempo enquanto tentavam uma ­saída mais honrosa. Ao receber os termos da contraproposta portuguesa, Napoleão reagiu como se previa: mandou avisar que, se não concordassem com suas exigências, Portugal seria invadido e a dinastia de Bragança, sobrenome da família real portuguesa, seria destronada.
Em meados de outubro, a decisão de transferir a corte para o Brasil já estava tomada de forma definitiva. Dom João tinha assinado um acordo secreto com a Inglaterra pelo qual, em troca da proteção durante a viagem para o Rio de Janeiro, abriria os portos do Brasil ao comércio com nações estrangeiras. Até então, só os portugueses podiam comprar ou vender mercadorias na colônia.
No dia 1º de novembro, o correio de Paris chegou a Lisboa com mais um recado assustador de Napoleão: “Se Portugal não fizer o que quero, a Casa de Bragança não reinará mais na Europa em dois meses”. A essa altura, o Exército francês cruzava os Pirineus, a cadeia montanhosa na fronteira da França com a Espanha, em direção a Portugal. Cinco dias depois, foi a vez de a esquadra inglesa aparecer na foz do rio Tejo, em território português, com uma força de 7 000 homens. Seu comandante, o almirante sir Sidney Smith (o mesmo oficial que havia bombardeado Copenhague dois meses antes), tinha duas ordens, a­pa­rentemente contraditórias. A 1ª, e prioritária, era proteger o embarque da família real portuguesa e escoltá-la até o Brasil. A 2ª, caso a 1ª não acontecesse, era bombardear Lisboa.
No dia 23, Portugal foi invadido por 50 mil soldados franceses e espanhóis. Se quisesse, dom João poderia ter resistido, com boas chances de vencer. Os soldados enviados por Napoleão eram, em sua maioria, novatos ou pertencentes a le­giões estrangeiras que não tinham nenhum interesse em defender as ambições do imperador francês. Seu comandante, o general Jean Andoche Junot, era um oficial de 2ª linha — bravo combatente, mas péssimo estrategista. Devido à falta de planejamento e à pressa com que a invasão foi decidida, ao chegar à fronteira de Portugal suas tropas eram uma legião maltrapilha e faminta. Metade dos seus cavalos tinha perecido no caminho. Restavam apenas 6 canhões. Dos 25 mil soldados que deixaram a França, 700 já tinham morrido sem entrar em combate. Um quarto da infantaria tinha desaparecido porque, no desespero para encontrar comida, os soldados haviam se afastado da coluna principal e se perdido. “Não há exemplo na história de um reino conquistado em tão poucos dias e sem grande resistência como Portugal em 1807”, escreveu sir Charles Oman, professor da Universidade de Oxford e autor do livro A History of the Peninsular War (“Uma História da Guerra Peninsular”, sem edição no Brasil), a mais importante obra sobre a campanha de Napoleão na península Ibérica. “Era um testemunho não apenas da fraqueza do governo português, mas também do poder que o nome de Napoleão inspirava nessa época.”
A partida
A invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte obrigou dom João a optar pela fuga, mas os planos de mudança para o Brasil eram uma idéia antiga. Ressurgia sempre que a independência do país estava ameaçada pelos vizinhos. Apesar de ter inaugurado a era das grandes navegações marítimas, Portugal não passava de um país pequeno e sem recursos. No meio de interesses de seus vizinhos mais poderosos, não tinha braços nem exércitos para se defender na Europa e muito menos para colonizar e proteger seus territórios além-mar. A fuga para o Brasil, onde haveria mais riquezas naturais, mão-de-obra e, em especial, maiores chances de defesa contra os invasores do reino, foi, portanto, uma opção natural e bem avaliada.
Em 1736, o então embaixador português em Paris, Luiz da Cunha, escrevia num memorando secreto a dom João 5º que Portugal não passava de “uma orelha de terra”. A solução sugerida por Cunha era mudar a corte para o Brasil, onde João 5º assumiria o título de “Imperador do Ocidente”. Em 1762, diante de mais uma ameaça de invasão, o então marquês de Pombal propôs que o rei dom José 1º tomasse “as medidas necessárias para sua passagem para o Brasil”.
Embora o plano de fuga para o Brasil fosse antigo, a viagem foi executada de forma improvisada. Até uma semana antes da partida, ainda havia na corte de dom João alguma esperança de composição com Napoleão capaz de evitar a invasão de Portugal. Tudo isso caiu por terra no dia 24 de novembro, quando chegou a Lisboa a última edição do jornal parisiense Le Moniteur, órgão oficial de Napoleão, na qual o imperador francês anunciava que “a Casa de Bragança havia cessado de reinar na Europa”. A notícia causou alvoroço na corte e venceu, enfim, a indecisão do príncipe regente. Ou a família real fugia ou seria destronada.
À meia-noite daquele dia, Joaquim ­José de Azevedo, oficial da corte, foi acordado por um men­sa­geiro e ins­truído a se dirigir ao Palácio Real. Lá, recebeu ordens pessoais de dom João para organizar o embarque. Antes de se dirigir ao porto, Azevedo se assegurou de que o seu lugar e o de sua família num dos navios estavam garantidos. Em seguida, colocou mãos à obra.
Os palácios reais de Mafra e Queluz foram evacuados às pressas. Camareiras e pajens vararam noites retirando tapetes, quadros e ornamentos das paredes. Centenas de bagagens contendo roupas, louças, faqueiros, jóias e objetos pessoais eram despachadas para as docas. No total, a caravana tinha mais de 700 carroças. A prata das igrejas e os 60 mil volumes da Real Biblioteca foram embalados e acomodados em 14 carros puxados por mulas de carga. Em caixotes, o ouro, os diamantes e o dinheiro do tesouro real foram enviados para o cais sob escolta.
Entre 10 mil e 15 mil pessoas acompanharam o príncipe regente na viagem ao Brasil. Era muita gente, levando-se em conta que a capital, Lisboa, tinha cerca de 200 mil habitantes. Durante 3 dias, o povo de Lisboa observou o movimento de cavalos, carruagens e funcionários do governo nas imediações do porto, sem entender o que se passava. Quando a notícia da partida se espalhou, o povo reagiu de forma indignada. Nas ruas, havia choro e demonstrações de desespero e revolta. Antônio de Araújo, o conde da Barca, teve sua carruagem apedrejada quando tentou atravessar a multidão a caminho da fragata Medusa. O cocheiro saiu ferido. “O muito nobre e sempre leal povo de Lisboa não podia familiarizar-se com a idéia da saída do rei para os domínios ultramarinos”, escreveu o oficial da corte Joaquim José de Azevedo.
Como fazer um discurso de despedida era impossível nessas circunstâncias, dom João mandou afixar nas ruas de Lisboa um decreto no qual explicava as razões da partida. Dizia que as tropas fran­cesas estavam a caminho de Lisboa e que resistir a elas seria derramar sangue à toa. Acrescentava que, apesar de todos os esforços, não tinha conseguido preservar a paz para os seus amados súditos. Por isso, estava se mudando para o Rio de Janeiro até que a situação se acalmasse.
Antes de embarcar, dom João teve também o cuidado de raspar os cofres do governo – providência que repetiria 13 anos mais tarde ao deixar o Rio de Janeiro. Em 1807, embarcaram com o tesouro real cerca de 80 milhões de cruzados. Representavam metade das moedas em circulação em Portugal, além de uma grande quantidade de diamantes extraídos em Minas Gerais que, i­nes­pe­ra­da­mente, retornavam ao Brasil.
Depois de soprar forte do mar para o continente durante dois dias, na manhã de 29 de novembro o vento mudou de direção. A chuva parou e o Sol apareceu. Às 7 horas da manhã, a nau Príncipe Real inflou as velas e deslizou em direção ao Atlântico. Levava a bordo o príncipe regente, dom João, sua mãe, a rainha louca dona Maria 1ª, e os príncipes dom Pedro e dom Miguel. O restante da família real estava em outros 3 navios, e mais 4 dezenas de barcos seguiam atrás da esquadra real. Os navios portugueses ainda estavam à vista no horizonte quando as tropas francesas começaram a entrar em Lisboa.
*Adaptado do livro 1808, do jornalista Laurentino Gomes.
1808
Laurentino Gomes, Planeta, 2007.

Revista Superinteressante

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