quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A escola totalitária


A escola totalitária

Nos dois projetos mais articulados de dominação social do século 20, a educação operava um papel crucial

Fabiano Curi

Em regimes despóticos, a educação tem um papel estratégico na propagação das ideias de seus governantes. Nos dois grandes exemplos de sociedades totalitárias do século 20, a Alemanha de Hitler e a União Soviética de Stálin, as escolas e seus programas foram drasticamente reformulados para atender aos interesses do Estado.

Na Alemanha nazista, o programa nacional-socialista reescreveu a pedagogia com base no Mein Kampf, de Adolf Hitler, para aplicá-la em todos os níveis, do ensino fundamental à universidade. Logo ganharam importância as teorias raciais nazistas que enalteciam os arianos e colocavam todas as outras etnias como raças subalternas.

Campos do conhecimento foram alterados, surgindo assim uma "ciência alemã pura" - física alemã, matemática alemã, química alemã - livre da interferência bolchevique e judaica. A religião judaica se transformou em raça e passou a representar todo o mal do mundo. Judeus foram proibidos de lecionar ou de estudar.

Para se tornar professor era necessário passar por treinamento sob observação de funcionários do partido nazista. Os candidatos deviam demonstrar ser pessoas confiáveis na propagação da política do Terceiro Reich. Mais tarde, era vetada a carreira de docente aos que não tivessem passado anteriormente pelos campos de trabalho nazistas, pela Juventude Hitlerista ou pela SA (tropa de assalto do partido).

Durante o regime, as antigas escolas públicas foram abandonadas e a educação de jovens e crianças em boa parte ficou concentrada na organização da Juventude Hitlerista, para a qual os pais eram obrigados a deixar seus filhos ingressarem sob pena de serem presos. Esse modelo visava uma profunda imersão dos alunos em treinamentos físicos e ideologia nazista com um programa militarizado.

A partir de 1937 são estabelecidos três tipos de escolas para as elites: Escolas Adolph Hitler, Institutos de Educação Nacionais e Políticos e Castelos da Ordem. Para os primeiros, iam os jovens de 12 anos que se destacaram em suas escolas; para os segundos, sob supervisão da SS (tropa de elite nazista), eram direcionados aqueles habilitados à vida militar; finalmente, nos Castelos da Ordem, era formada a elite da elite, num cenário teutônico dos séculos 14 e 15, com intensivo treinamento físico e especialização nas "ciências raciais".

Esse processo de apagamento de quaisquer outras ideias que não as que fundamentavam o nazismo não foi menos desastroso do que em outros setores da sociedade alemã. Houve diminuição do número de estudantes e de professores, assim como da qualidade acadêmica. Os professores, intelectuais e artistas judeus ou comunistas importantes que não foram mortos deixaram o país e se estabeleceram em centros de ensino espalhados pelo mundo.

Na União Soviética de Stálin, a política educacional passou por profundas mudanças já na década de 1930, buscando conexão com a industrialização das cidades e com a coletivização das fazendas. O novo sistema tornava obrigatórios quatro anos de educação no campo e sete nas cidades. O número de alunos cresceu rapidamente em instituições rigidamente controladas pelo Estado para a promoção de um patriotismo soviético.

A partir da década de 1940, foi criada uma reserva de trabalhadores intercambiável entre escolas e fábricas com alunos que não tinham um bom desempenho acadêmico. Essa política educacional não admitia pluralidade ideológica e tinha o objetivo de formar trabalhadores para o modelo econômico socialista.

Stálin cunhou o termo "pseudo-ciências burguesas" para definir campos de conhecimento como genética, sociologia, semiótica e cibernética. Tais estudos foram proibidos durante sua permanência no poder. Professores, artistas e intelectuais que não aderiram ao regime foram duramente perseguidos. (Fabiano Curi)

Variações de um conceito

Poucos conceitos têm significados tão oscilantes quanto o de ideologia. Presente pela primeira vez na filosofia moderna em 1801, no livro Elementos da ideologia, do materialista iluminista francês Destutt de Tracy (1754-1836), era concebido como uma ciência do surgimento das ideias na relação do corpo humano com o meio ambiente. Logo foram publicados estudos de outros ideólogos franceses pautando um movimento liberal materialista que se posicionava contra a monarquia, o clero e a metafísica. Esse grupo apoiou Napoleão Bonaparte (1769-1821), que o deixou de lado quando assumiu o poder. Num discurso em 1812, o imperador declarou que a ideologia e os ideólogos eram responsáveis pelas desgraças da França.

Uma outra concepção, talvez a mais reproduzida, ganha força com Karl Marx (1818-1883), para quem o conceito de ideologia diz respeito a um "falseamento da realidade", um obscurecimento das relações que nos leva a naturalizar estruturas consumadas de poder, sem contestá-las. Apesar de a análise de Marx ter como foco a ideologia de filósofos alemães posteriores a Hegel, ela alimentou muitos estudos de pensadores de cepa marxista e continua sendo uma definição bastante presente no senso comum.

Depois de Marx, entre os autores que se debruçaram sobre o assunto destacam-se o italiano Antonio Gramsci (1891-1937) e o francês Louis Althusser (1918-1990). Ambos discordam do conceito segundo o qual uma classe dominante usa a ideologia para ludibriar as classes dominadas, tomando-o a partir de outro ângulo. Para Gramsci, a ideologia articula e sustenta a sociedade, sendo absolutamente necessária para manter a coesão de diferentes realidades sociais. Já Althusser vê na ideologia a proteção que possibilita a sustentação da sociedade. Por seu principal texto, Aparelhos Ideológicos de Estado, o filósofo francês é frequentemente citado como um dos pioneiros da discussão da relação da escola com ideologia, considerando-a um importante aparelho ideológico. Sílvio Gallo, da Faculdade de Educação da Unicamp, contudo, lembra de outro autor que havia discutido a questão anteriormente: "sempre me intrigou muito um autor do final do século 18, chamado (William) Godwin (1756-1836), que alertou, no momento em que se construíam os sistemas públicos de ensino europeus, sobre a necessidade de que houvesse cautela antes de colocá-los todos nas mãos do Estado. Ele antevia que certamente os sistemas seriam utilizados para defender os interesses dos representantes desses Estados".

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