sábado, 8 de outubro de 2011

CANUDOS: REPORTERES E ESCRITORES


Conselheiristas presos no dia 2 de outubro de 1897

A revolta de Canudos, nos ultimos anos do seculo XIX, atraiu ao local dos acontecimentos varios jornalistas: entre outros Manuel Benicio, do Rio; Favila Nunes, Cisneiros Cavalcanti, Manuel de Figueiredo e Euclides da Cunha, de São Paulo.
Esses enviados especiais guardavam entre si uma característica comum: Euclides da Cunha era tenente reformado, Favila Nunes era coronel, Manuel Benicio, capitão, e Manuel de Figueiredo, major.
Em reportagens assinadas, Euclides escreveu de 7 de agosto a 1 de outubro de 1897. Suas reportagens foram publicadas duas vezes em forma de livro: "Canudos - Diário de uma Expedição", edição organizada por Antonio Simões dos Reis, José Olympio, Rio, 1939; "Canudos e Inéditos", organizada por Olímpio de Souza Andrade, São Paulo, 1967.
Tanto as reportagens como o livro que publicou cinco anos mais tarde - "Os Sertões" - estão profundamente marcados por suas posições que, refletem as posições filosóficas predominantes no momento: o positivismo, a geopolítica, a antropogeografia. Da mesma maneira que os outros enviados especiais, Euclides oscila entre as opiniões preconcebidas e a realidade presenciada. Da mesma maneira que os outros, Euclides se cala, enquanto reporta quanto à praticas como a de degolar prisioneiros, cuja existencia não era desconhecida nem causava escandalo. "Os Sertões" - como tambem Manuel Benicio em "O Rei dos Jagunços", publicado em 1899 - Euclides faz uma denuncia apaixonada. No Diário de Notícias, da Bahia, de 16 de agosto de 1897, aparece uma notícia sobre o relatorio que o coronel Serra Martins fizera ao presidente Prudente de Morais, na qual surge, entre várias informações a seguinte: "Disse que quando deixou Canudos, não havia prisioneiros no acampamento um só jagunço, porque os que são apanhados são logo mortos".

O jornalismo de então: o que era e o que não era

"Espantoso.
Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte:
Que no último ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembraram-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi comprado na popular casa O Monumento.
Que feliz idéia!..."
Anúncios como esse, publicados na primeira página do Diário de Notícias, da Bahia, a 12 de agosto de 1897, era bastante comuns. A publicidade atual também utiliza fatos e pessoas como as vitórias de Fittipaldi ou de Pelé. O que mudou foram os fatos.
O jornal era o mais eficiente veículo de comunicação no Brasil, no final do século XIX: ele acolhe em suas páginas um material variadissimo, que hoje - sobretudo com a televisão - que se encontra disperso. Tudo se passava em suas páginas; e também se criava: incidentes, intrigas e conspirações.
Anúncios classificados sobre cabras 'com abundância de leite", sobre roubo de "besta de sela, arreada, cor de pinhão, com sinal no quarto, ainda nova e pequena" ou oferecendo à venda lenha em achas; uma crônica literária em francês ao lado de uma lista de livros "só para homens"; anúncios que divulgam elixires e "poderosos reconstituintes" que curam tudo, como por exemplo "Embriaguês habitual ou crônica - cura-se em poucos dias com o Específico Giffoni". É um tempo em que se anuncia o Cinematógrafo Edson à rua do Ouvidor, como "a maior novidade do dia" e se acrescentava "Entrada com cadeira 1$000".
É o tempo da popularidade cênica de Pepa Ruiz e do êxito da peça "A Capital Federal" de Artur de Azevedo.
Talvez tenha sido "A Notícia", do Rio de Janeiro, um dos primeiros jornais a realizar alguma coisa com propaganda subliminar. No meio das notícias curtas, de primeira página, aparece frequentemente impresso em tipo muito menor, o seguinte: "Thé de Lipton. Rien de mieux".
Publicações a pedido, provocações para brigas, cartas abertas, bilhetes amorosos, mensagens de lojas maçônicas, prestações de contas do "Comitê de Solidariedade" à guerra de libertação nacional cubana, tudo isso dá uma idéia bastante clara da vida que se levava na época.
Declarações assinadas e cartas anônimas, contendo acusações de maior ou menor gravidade sobre a vida particular das pessoas provocaram não poucos atentados a jornalistas profissionais e crimes de morte. Apenas a derrota da Expedição Moreira Cesar, na campanha de Canudos, provocou o empastelamento de três jornais, no Rio de Janeiro - Apóstolo, Liberdade e Gazeta da Tarde - e um em São Paulo - O Comercio de São Paulo - além do assassinato de Gentil de Castro.
A localização da maior parte dos jornais cariocas - à rua do Ouvidor, então a mais importante do País - não era casual; todas as pessoas passavam por lá para saber das novidades. As frequentes agitações começavam ou terminavam quase sempre na rua do Ouvidor.
Ao lado da riqueza do conteúdo, entretanto, esses jornais eram visualmente monótonos. Muito diferentes dos jornais de hoje - visualmente atraentes - eles eram muito semelhantes entre si, quer fossem editados na capital do País, para um público presumivelmente mais refindado, ou nas cidades do interior. Ausência de fotos, raras ilustrações: geralmente mapas de batalhas, mortos ilustres, anúncios de remédios, moda feminina. O tamanho grande da página, os tipos miúdos, as colunas estreitas obrigavam o leitor a iniciar a leitura lá de cima, logo abaixo do cabeçalho, percorrer quase um metro de página e procurar continuação do artigo na coluna do lado, novamente lá em cima.
Em proporção à população, havia no Brasil mais jornais do que hoje. Apenas no Estado da Bahia, circularam entre 1811 e 1899, 700 jornais diferentes. Mesmo se levarmos em conta que muitos desapareciam por falta de autonomia financeira ou por motivos políticos, ou que alguns eram criados apenas para comemorar uma data ou prestigiar uma personalidade e depois eram fechados - ainda assim era excessivo o número de jornais existentes na época.
Sensacionalismo, ironia, bom senso, tudo isso temperou a intensa movimentação jornalística provocada pela Guerra de Canudos. Correspondentes especiais foram enviados exclusivamente para informar sobre o que se passava, notícias desencontradas chegavam, as casas comerciais faziam anúncios baseados na campanha e nos principais acontecimentos, a sátira política fervia.

O grande desventurado, truanesco e pavoroso

Uma página de Euclides da Cunha, sobre Antonio Conselheiro:
"A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silencio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermanavam-se as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia-se autoridade unica.
"Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrencia, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes.
"Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratoria barbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricavel e confuso de conselhos dogmaticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdruxulas...
"Era truanesco e era pavoroso.
"Imagina-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse...
"Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante.
"Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais decisiva. Enunciava-se e emudecia: alevantava a cabeça, descerrava de golpe as palpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar - uma cintilação ofuscante... Ninguem ousava contemplá-lo. A multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela insania formidavel.
"E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu unico milagre: conseguia não se tornar ridiculo..."

"Os sertões", atual setenta anos depois

Emir M. Nogueira

São José do Rio Pardo, Tatuí e Taubaté são algumas das poucas cidades paulistanas - e brasileiras - que procuram conservar vivo o culto a personalidades nelas nascidas, ou com elas de alguma forma relacionadas. Tatuí e Taubaté realizam, anualmente, as "semanas" de Paulo Setubal e Monteiro Lobato, respectivamente, em homenagem a esses escritores, naturais dessa cidade. A mais antiga de tais "semanas", entretanto, é a euclidiana, que hoje, 15 de agosto, se encerra em São José do Rio Pardo, e que se vem repetindo desde 1912.
A ata se justifica por assinalar o dia da morte de Euclides da Cunha (1909). O mais expressivo, no culto à sua memoria, em São José do Rio Pardo, é que o escritor não é filho dessa cidade, tendo aí vivido apenas alguns anos, de 1898 a 1901, na sua condição de engenheiro, responsavel pela construção de uma ponte pensil sobre o rio que dá nome à localidade.
Foi no entanto em São José do Rio Pardo que Euclides escreveu a sua obra máxima - "Os Sertões" - nos intervalos de sua atividade profissional. Francisco Escobar, amigo íntimo do autor, como qual manteve correspondencia durante longos anos, foi um dos que mais contribuiram para criar na cidade a tradição da "Semana Euclidiana", que abrange cerimonias culturais, cívicas e esportivas, de que participam representantes de quase todo o Estado. Alguns dos melhores ensaios sobre a obra de Euclides foram apresentados como conferencias, durante as "semanas".


Uma vida tragica

Durante muitos anos, após o desaparecimento do escritor, os estudos sobre o que produziu foram obscurecidos pelo impacto de sua morte tragica. Depois, como numa especie de consenso sobre o respeito devido à familia, relativo silencio passou a ser observado sobre o assunto. Por volta de 1945, quando um dos principais personagens do drama - o homem que matou Euclides - decidiu dar sua versão dos fatos, as discussões se reacenderam.
Sem entrar em pormenores penosos, e irrelevantes a esta altura, o que se pode recordar é que a tragedia euclidiana teve dois atos principais: no primeiro, a vitima foi o escritor, que tombou morto num duelo a tiros com o homem que supunha ter-lhe manchado o lar; o segundo, alguns anos mais tarde, morreu o filho de Euclides, que quis vingá-lo, sendo igualmente atingido, mortalmente, pelos tiros daquele que lhe matara o pai. Nas duas vezes, levado a julgamento, o autor das mortes de pai e filho foi absolvido, reconhecendo a Justiça que agira em legítima defesa.

Uma obra extraordinária

"Os Sertões" é, para muita gente, um daqueles livros de que todo mundo fala mas poucos, realmente, lêm. Trata-se de alentado volume, de mais de 600 páginas, cujo tema imediato é a chamada campanha de Canudos, ou seja, o episodio, ocorrido em fins do seculo passado, de que Antonio Conselheiro é a figura principal.
O livro é dividido em três partes: "A Terra", "O Homem" e "a Luta". A primeira é uma espécie de descrição do cenario - o Nordeste brasileiro - onde se desenrolariam os choques entre as forças legais e os seguidores do Conselheiro. Corresponde a cerca de 1/10 do livro, isto é, mais ou menos 60 páginas comuns; é a parte de mais difícil leitura, pois Euclides, engenheiro com vocação de antropologo e sociologo, desce a minuncias técnicas na descrição e na analise do meio fisico que gerou os jagunços.
Em "O Homem", descreve-se o personagem da tragedia: o sertanejo, o nordestino, quase esmagado por um ambiente hostil, mas que de uma forma ou de outra ainda encontra forças para reagir contra ele. Uma das mais conhecidas paginas dessa parte é aquela que se inicia pela frase - "O sertanejo é antes de tudo um forte" - presente em numerosas antologias. Para muitos é a melhor parte do livro, embora menos longa que a ultima, "A Luta".
Na terceira parte, Euclides descreve por assim dizer duas especies de luta: a das forças legais contra os jagunços (quatro expedições foram mandadas contra eles; Euclides acompanhou a quarta) e, a mais importante, a luta do homem contra a terra, para poder dominá-la e sobreviver.
O importante, em "Os Sertões", não é propriamente o relato dos embates entre soldados e jagunços. É a colocação do drama nordestino. Pela primeira vez, no Brasil, apresentava-se à nossa consciencia o problema do subdesenvolvimento de uma vasta area do país, até então praticamente abandonada à propria sorte. A obra de Euclides inspirará, em boa parte, o moderno romance brasileiro (surgido por volta de 1930 no nordeste, com tematica semelhante à de "Os Sertões").
Enviado ao cenario dos acontecimentos por um jornal, Euclides da Cunha não se limitou a fazer reportagem. Dotado de excepcional sensibilidade, colheu elementos para uma obra que, ao ser lançada, em 1902, logo foi reconhecida como a mais profunda tentativa de interpretação da realidade brasileira até então feita em nosso país.
É claro que, setenta anos mais tarde, muita coisa, em "Os Sertões" está superada. Permanece, entretanto, como uma das coisas mais serias já escritas no Brasil. O interesse pela obra vem sendo revigorado em nossos dias, com novas edições criticas, analises e ensaios que procuram mostrar o que ela tem de atual.

O escritor

Numa frase celebre, Joaquim Nabuco disse que Euclides parecia escrever "com um cipó". É uma referencia, aliás pouco feliz, ao estilo nervoso, por vezes agreste, mas quase sempre vigoroso do autor. Vocabulario riquissimo (como aliás era de praxe na epoca), Euclides convida a lê-los como dicionario à mão. Perde-se às vezes em preciosismos - palavras e expressões raras - desenterra arcaismos ou construções classicas.
Muitas de suas paginas são, no entanto, antologicas, no sentido mais exigente do termo. Tal é a descrição dos ultimos dias e a morte do Conselheiro (paginas de fecho de "Os Sertões'), pelas quais perpassa um sopro epico pouco comum em nossa literatura, o mesmo acontece em numerosas outras passagens do livro.
Além de "Os Sertões", deixou Euclides, ainda, "A Margem da Historia", "Contrastes e Confrontos", "Peru vx. Bolivia", além de artigos de jornal e farta correspondencia - tudo fruto de suas andanças pelo país e de sua capacidade de observação e estudo dos diversos aspectos da nossa realidade.

Folha de S.Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 1972

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