sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Irmandades


Vivien Ishaq
Pesquisadora do Arquivo Nacional
Doutora em História - UFF

O culto em torno da devoção a um santo, representado por relíquia ou imagem, fazia parte das práticas do catolicismo ibérico. Devoção particular vivida na privacidade da casa, e devoção coletiva vivida na comunidade de irmãos organizada em torno da eleição de um padroeiro comum, com quem dividiam simbolicamente as incertezas e as dificuldades terrenas. A Igreja pós-tridentina confirmou os poderes dos intercessores, em resposta à reforma protestante que eliminou ou minimizou todos os intermediários entre o crente e Deus: liturgia, clero, sacramentos, culto dos santos e orações pelos mortos. Os santos da Igreja católica seriam os guias e advogados, os confessores, os mestres, os mártires da fé; “seriam eles os personagens intermediários que manteriam a relação entre a vida na terra e a inspiração do céu”[1]. Os católicos praticavam sua devoção em santuários, em oratórios, capelas, igrejas, e também em irmandades. Inspiradas por suas congêneres européias – que atingiriam o milhar no final do século XV –, especialmente as portuguesas, as irmandades fundadas por leigos, desde o século XVI, marcaram com suas festas e procissões a religiosidade vivida no mundo colonial, expressando ser uma célula importante da vida na América.
As irmandades não estavam subordinadas a uma ordem religiosa como as ordens terceiras e se distinguiam das confrarias medievais que, via de regra, eram vinculadas a uma paróquia. Antes da publicação, em 1719, das Constituições primeiras do arcebispado da Bahia, que regulamentaria a vida religiosa do território português, as irmandades fundadas no ultramar era regidas pelas Ordenações do Reino. Esta legislação determinou que as irmandades fundadas por leigos e por eles dirigidas estavam subordinadas às autoridades civis, podendo os prelados visitá-las, porém, somente com "nossa licença, por assim serem de nossa imediata proteção”, estabelecendo, ainda, limites da administração eclesiástica em relação a essas associações.[2].
As irmandades são associações formadas por leigos dedicadas ao incremento da devoção aos santos e santas da Igreja católica. Como a implantação dos bispados e paróquias ocorreu de maneira gradual e diferenciada nas terras lusas na América, concorrendo para que organização da vida religiosa da população ficasse, em grande medida, a cargo dessas associações. Foram elas que dinamizaram o incremento do culto católico pelas diversas regiões do vasto território, exigência do padroado concedido pela Santa Sé à monarquia portuguesa, e disputando com o clero colonial os dízimos administrados pela Coroa portuguesa.
A legislação dotava cada irmandade de autonomia para gestão de seus bens e rendas, que eram arrecadados também por meio de doações de fiéis e das heranças dos irmãos congregados. Cada irmandade era regida por um estatuto ou compromisso, que era submetido à aprovação régia, no qual estava registradas as regras do funcionamento da associação e os direitos e os deveres de seus membros, denominados irmãos ou irmãs.
No século XVIII a organização de irmandades se intensificou na Colônia e implicava, no mínimo, a obtenção de um altar onde se pudesse prestar a devoção ao santo patrono escolhido pelo grupo de fiéis. Era comum que em uma mesma igreja estivesse sediada mais de uma irmandade, e com o crescimento da associação e do volume de recursos arrecadados, a irmandade poderia construir sua própria igreja, existindo ainda a possibilidade de que um irmão abastado arcasse com a edificação da mesma, como foi o caso, por exemplo, da Igreja da Candelária na cidade do Rio de Janeiro. Nos documentos do Arquivo Nacional estão registrados os conflitos decorrentes da divisão de um mesmo espaço pelas diferentes irmandades, a busca de autonomia administrativa, assim como os esforços de arrecadação de recursos para construção e embelezamento das igrejas, pois elas eram o sinal visível da existência da associação para a comunidade de habitantes.
Em suas capelas e igrejas as populações teciam uma rede de relações que iam além de sua participação nos ofícios religiosos. Seus membros, já congregados em torno da devoção ao santo patrono, uniram-se por meio dos laços de solidariedade e de auxílio mútuo, promovendo sepultamentos dignos, sufrágios às almas dos irmãos falecidos, e prestando assistência às suas viúvas e órfãos. A documentação do Arquivo Nacional reunida, por exemplo, no Fundo Inventários, registra o desejo de inúmeros fieis, que motivados pela fé, por promessas, pela vontade de garantir um lugar longe do inferno ardente, pela necessidade de afirmação de sua fortuna perante a sociedade ou mesmo pela busca da eternidade, doavam parte de seu patrimônio às irmandades. Era prática comum dos devotos na sociedade portuguesa e também em suas colônias, designarem suas almas como herdeiras. Os legados eram administrados pelas irmandades, de forma a garantir a realização de missas pela alma do morto, muitas vezes por décadas, tentando, assim, interceder no julgamento final entre o inferno ou o paraíso.
As relações de solidariedade eram soldadas no mesmo espaço da realização dos rituais religiosos; e em razão da sua natureza associativa e de seu caráter eletivo, era também um lugar de sociabilidade. Ser membro de uma irmandade respondia a uma necessidade social inscrita na sociedade colonial, alguém que não participasse da vida religiosa, seja nas igrejas paroquiais, seja nas irmandades, seria de certa forma visto com desconfiança, a possibilidade de denúncia à Inquisição era uma ameaça sempre presente.
O calendário de festas religiosas e procissões proporcionava à população momentos de convívio social, sobretudo às mulheres, rompendo seu cotidiano restrito ao ambiente doméstico-familiar. Nessas ocasiões, nas vilas e cidades, os fogos de artifício eram soltos em frente às portas das igrejas, que ficavam iluminadas durante toda a noite. Cruzes e figas contra o mau-olhado eram vendidas à mesma população, o comércio dos objetos considerados capazes de afastar as desgraças e os malefícios se intensificava, eram vendidas, por exemplo, fitas que pretendiam ter a exata altura das imagens do santo escolhido. Usadas em torno da cintura, inscrevia-se nelas o nome de quem as portava, com a esperança de que amarradas junto ao corpo, removessem dores ou doenças. Nas procissões, cada irmandade concorria para fazer dessa participação o momento de reconhecimento da comunidade. As vestimentas, as cores, as opas e os estandartes utilizados pelos membros de uma irmandade eram sinais de reconhecimento interno e permitiam, igualmente a afirmação de identidade do grupo para o exterior.
Os dias das festas dos santos e santas venerados pelas irmandades de negros, por exemplo, eram ocasiões onde as tradições africanas se manifestavam, sobretudo, durante as eleições de reis e rainhas da irmandade. Momentos de afirmação de identidade cultural, mas também oportunidade de lutar pela sobrevivência de cada irmandade, uma vez que nesses dias havia a arrecadação de doações, que auxiliava a comunidade a manter a associação, tornando-se o único lugar de convívio social dessa população fora do mundo do trabalho. Uma importante função cabia às irmandades que reunia escravos, reservar parte dos recursos das irmandades para a compra de alforria de alguns de seus membros, conforme foi registrado na correspondência da Coroa ao governador da capitania de Rio de Janeiro: “por parte dos irmãos da Senhora do Rosário dessa capitania, se me representou aqui terem alguns irmãos cativos em algumas casas com ruim cativeiro, e por alguns deles se achasse com bastante resgate para se libertarem, não podia fazer a dita Irmandade sem licença minha[3].
Organizadas segundo os diferentes grupos sociais, as irmandades revelavam a estratificação da sociedade colonial. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário, por exemplo, reuniam negros forros e escravos. As famílias mais ricas geralmente se reuniam nas Igrejas da Irmandade de Misericórdia e do Santíssimo Sacramento. Uma rígida hierarquia existia entre as diversas irmandades que conviviam numa mesma localidade, expressando o prestígio social das atividades profissionais dos seus membros, das disparidades entre seu nível de fortuna e, em relação direta com esses últimos elementos, dos meios de que cada irmandade dispunha para assegurar um belo desfile numa procissão.
As irmandades coloniais desempenharam uma intenção função de regulação das comunidades paroquiais; reforçando hierarquias sociais, difundindo padrões morais e de comportamento.Eram unidades espaciais mais próximas da comunidade de fiéis e que cumpriram funções religiosas e sociais, auxiliando na resolução de aspectos fundamentais tanto da vida privada quanto da coletiva, tentando assim, atender ou dar melhor resposta às necessidades vividas por parte da população colonial.

[1] Giulio Carlo Argan. L’age baroque. Géneve: Editons d’Art Albert Skira, 1989, p. 77.
[2] Ordenações e leis do Reino de Portugal. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1833, 10a edição, parágrafo 42, p. 238.
[3] Arquivo Nacional. Códice Correspondência da Corte para o governador Duarte Teixeira e Chaves, 12 de janeiro de 1685
http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br
O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira

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