sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Notícias História Viva


"... No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras…), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. ...

Estado brasileiro matou 556 civis em 32 conflitos esquecidos do século 20
Reportagem do Estado resgata revoltas populares sem ideologia nem tutela de partidos políticos ou de instituições religiosas

Tropas legais fuzilaram ou causaram a morte de pelo menos 556 civis e tiveram 100 baixas ao reprimir 32 revoltas desconhecidas ou simplesmente esquecidas no Brasil ao longo do século 20. Os episódios mostram a paranoia do Estado brasileiro em usar seu poder de fogo para conter beatos barbudos, rezadeiras, descontentes com a política econômica ou pequenos agricultores em busca de terra, e tomar partido de latifundiários e grileiros nas brigas com posseiros.

Foram revoltas populares sem ideologia ou tutela de partidos políticos e instituições militares ou religiosas. Neste caderno, essas revoltas não são chamadas de guerras pelo grau do confronto de forças e sim pelo poderio de fogo da repressão e pelas marcas deixadas nos lugares onde ocorreram. O que ficou são traumas de guerra - e é assim que, do Norte ao Sul do País, testemunhas e protagonistas referem-se ao episódio do qual participaram. A máquina policial do Estado nunca olhou o tempo histórico para tratar revoltosos dos sertões. A fúria da repressão foi igual em momentos de exceção ou de democracia.

A elaboração do mapa das revoltas e as reportagens deste caderno tiveram como ponto de partida a consulta a coleções de inquéritos criminais, das Secretarias de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco e Minas Gerais - Estados sempre citados nos estudos sobre conflitos rurais, da década de 1930 aos anos 1960. O levantamento das revoltas se baseou ainda nos dados dos Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) dos Estados e das atas do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e dos relatórios do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), relativos aos anos 1970 e 1980, guardados no Arquivo Nacional. Pesquisas complementares foram feitas em centros culturais e cartórios criminais e cíveis.

Investigação. Foram consultados ainda diários de famílias, cartas, atas de compra e venda de terras, livretos mimeografados, papéis de paróquias, telegramas, cartões postais, boletins policiais, denúncias de comarcas, bilhetes de rebeldes, dados de hospitais e cemitérios, documentos de prefeituras, gravações, recortes de jornais regionais, álbuns particulares de fotos, arquivos privados de agentes policiais e das Forças Armadas. Para localizar testemunhas e participantes dos conflitos, recorreu-se até a cadastros de fregueses de compra a fiado no comércio.

Uma viagem aos cenários das revoltas genuínas da terra põe em debate a versão de que a população civil dos sertões assistiu calada a duas ditaduras do período republicano - os regimes Vargas e militar. Embora sem conexão, esses conflitos revelam, em sua soma, a face de inconformismo dos brasileiros, que vivem em rincões tão distantes e isolados que parecem integrar outra nação.

A pobreza, a falta de alternativas de renda e a confiança em beatos messiânicos são características de boa parte das revoltas e elos com movimentos como Canudos e Pedra do Reino, no Nordeste. E em cada revolta o Estado via Antônio Conselheiro, líder de Canudos.

A pesquisa não contabilizou mortes em conflitos que ganharam destaque nacional e são sempre lembrados por entidades não-governamentais, como o que resultou no assassinato do líder seringueiro Chico Mendes, em 1988, no Acre, o de Corumbiara, em Rondônia (1995), e Eldorado do Carajás, no Pará (1996) - apoiados pelo Movimento dos Sem-Terra - , além de outros mais antigos, como a Guerra do Contestado, em Santa Catarina (1912-1916) e Revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910), no Rio. Ficaram ainda de fora mortes causadas por repressão em greves nas grandes cidades.
Jornal o Estadão

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