quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Notícias História Viva


As persistentes cicatrizes de Chernobyl

JOE NOCERA
DO "NEW YORK TIMES"

Estranhamente, o 25º aniversário do pior desastre nuclear da História foi rememorado por meio de reportagens sobre animais. Duas revistas, "Wired" e "Harper's", publicaram artigos longos sobre o ressurgimento da vida animal na chamada zona de exclusão que existe em torno da antiga usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia.

Isso é muito bom, mas dado o recente acidente nuclear japonês, será que o leitor não preferiria saber o que aconteceu com as pessoas que foram afetadas por Chernobyl? Conheço uma delas. Seu nome é Maria Gawronska.

Maria Gawronska, 30, é inteligente e atraente, e se transferiu de sua Polônia natal a Nova York em 2004. Eu a conheci por intermédio de minha noiva, há uns quatro anos. Ela sempre usa blusas de gola alta, mesmo no mais quente dos dias.

A cidade de Maria, Olsztyn, no norte da Polônia, fica a mais de 650 quilômetros de Chernobyl. Ela tinha cinco anos em abril de 1986 quando o reator da usina derreteu, espalhando imensas quantidades de radiatividade pela atmosfera. O vento conduziu a radiatividade ao território da Ucrânia, Belarus e também ao norte da Polônia.

"No começo", conta Maria, "eles disseram que tinha acontecido uma explosão mas não era perigosa". No entanto, poucos dias mais tarde a União Soviética relutantemente admitiu a gravidade do acidente. Maria recorda que todos receberam tabletes de iodo e foram instruídos a não ficar ao ar livre. Ela também se lembra de ter ouvido pessoas dizendo que demoraria anos para que os poloneses conhecessem as consequências de saúde do desastre.

Entre outras coisas, a radiação pode causar sérios problemas à glândula tireóide; por isso as pessoas receberam os tabletes de iodo, para minimizar o montante de iodo radiativo absorvido pela tireóide.

O quarto de século seguinte certamente confirmou uma explosão de problemas de tireóide em Olsztyn. Maria me contou que alas inteiras dos hospitais da cidade são dedicadas agora doenças da tireóide. Isso não é exagero. O Dr. Arthur Zalewski, um cirurgião de tireóide de Olsztyn, confirmou um grande aumento no número de cirurgias de tireóide a partir do início dos anos 90. Algumas pessoas sofrem de câncer de tireóide, mas muitas mais sofrem de um inchaço na glândula, ou tem tireóides que deixaram de funcionar devidamente.

Zalewski também me acautelou, porém, que não existiam provas científicas vinculando os problemas de tireóide a Chernobyl. Em parte devido à intransigência soviética, e em parte pelo que a revista médica britânica "Lancet" definiu como "consideráveis desafios logísticos", jamais foram iniciados estudos epidemiológicos que pudessem estabelecer o elo entre o desastre e os problemas de tireóide na Polônia.

Os estudos realizados se concentraram em casos de câncer. De acordo com a "Lancet", é possível que altas na incidência de leucemia infantil e câncer de mama em Belarus e na Ucrânia estejam relacionados a Chernobyl. Mas devido a "falhas na concepção dos estudos", não se pode considerar essas pesquisas como definitivas.

Quando entrei em contato por e-mail com a mãe de Maria, Barbara Gawronska-Kozak, ela se mostrou irredutível, no entanto: "Estou convencida de que Chernobyl causou o agravamento dos problemas de tireóide". Barbara, ela mesma cientista (ainda que não epidemiologista), me disse que essa era a opinião do "cidadão polonês comum".

Ela sofreu uma operação de tireóide uma década depois do desastre. Sua melhor amiga também. Sua mãe passou por duas dessas cirurgias. Uma velha amiga do segundo grau recentemente passou por uma cirurgia de remoção de bócio.

Maria me contou que seu pai era a única pessoa da família que não tinha problemas de tireóide. Cerca de cinco anos atrás, foi a vez dela. Sua tireóide inchou tanto que começou a afetar sua traqueia, tornando a respiração difícil em certas posições. A aparência desagradável do problema era o motivo para que usasse sempre golas altas, evidentemente.

Um especialista em Nova York disse a ela que jamais havia visto algo parecido, e que a operação de correção tinha risco elevado e poderia danificar suas cordas vocais. Por isso, Maria decidiu voltar à Polônia e se fazer operar em sua cidade. Ela o fez no começo deste ano.

Como no caso de Chernobyl, demoraremos anos a saber como o acidente na usina nuclear Fukushima Daiichi afetará a saúde das pessoas que viviam nas redondezas. Ainda que muito menos radiação tenha escapado, houve vazamento de radiação para a água, e traços de radiação foram encontrados em alimentos.

Isso nos faz refletir em como lidar com a energia nuclear, que oferece a deslumbrante perspectiva de eletricidade gerada de maneira não poluente, acompanhada pelo risco constante de desastre caso algo de errado aconteça. Não são questões simples -como nos vemos forçados a recordar sempre que acontece um acidente como o da Fukushima Daiichi. Ou Chernobyl.

Para Maria, ao menos, a história teve final feliz. Zalewski, que realizou a cirurgia, não se assustou com o tamanho de sua tireóide. A operação foi um sucesso. Suas cordas vocais não foram afetadas. Ela se sente muito mais vigorosa do que nos anos da doença.

Maria me contou que, quando estava em Olsztyn, conversou com velhos amigos. Quando souberam o motivo de sua volta, todos riram e mostraram cicatrizes. Quando me encontrei com ela, pouco depois de seu retorno a Nova York, não pude deixar de reparar na pequena cicatriz que ostentava. Maria não estava usando uma blusa de gola alta.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI

Folha de São Paulo

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