segunda-feira, 25 de julho de 2011

AS MÁSCARAS AFRICANAS E SUAS MÚLTIPLAS FACES


AS MÁSCARAS AFRICANAS E SUAS MÚLTIPLAS FACES

Luzia Gomes Ferreira
ayeomi@hotmail.com
Universidade Federal da Bahia


Em lugar de negar-lhes a história faríamos melhor se ouvíssemos as histórias que têm para contar. E quando o fizermos é possível que suas artes venham a ser, não as 'artes dos povos sem história’, mas sim as 'artes dos povos com outras histórias'.
Sally Price

INTRODUÇÃO

Os diversos povos africanos, através das suas manifestações artísticas, possibilitaram aos ocidentais uma nova concepção de arte e do belo. Por ser a arte africana muito ampla, a obra de arte a ser priorizada nesse trabalho serão as Máscaras Africanas, especificamente as Máscaras Geledés.
Esse trabalho pretende, a priori, fazer uma abordagem sobre as características da arte africana, e identificar de que forma essa arte está apresentada nos livros de História da Arte. No segundo momento irá se analisar as Máscaras Geledés evidenciando a importância da mulher na sociedade yorubana, de que forma as máscaras são usadas nos rituais da Sociedade Geledé e qual a sua função. Também será realizada uma análise sobre o processo de releituras das máscaras africanas, na Bahia através do Folguedo Zambiapunga e o Candomblé dos Egunguns.

ARTE AFRICANA
A África desempenhou um importante papel na História da Humanidade, uma vez que, neste continente foram encontrados os primeiros vestígios do ser humano na terra. Através desta constatação fica evidente que as produções artísticas dos diversos povos africanos, é uma das mais antigas do mundo. Há estudos que comprovam a existência de pinturas rupestres na Namíbia que datam vinte mil anos; e que no norte da Nigéria, no primeiro milênio a.C, já se produziam esculturas de terracota. 1
A arte africana possui características que lhes são peculiares. A obra aparece como um bem coletivo útil e sagrado, no qual está inserido no cotidiano das pessoas que a produz; o “belo” deve ser apreciado por todos; e não por um grupo seleto, como acontece na sociedade ocidental.
A arte ocidental é uma criação individual, em que o artista tem que expressar toda sua individualidade para se destacar dos demais.
As características tão singulares da arte africana fizeram com que durante muito tempo ela fosse vista pelo ocidente como uma "arte inferior". Não se considerou o fato de que a arte por ser produção humana, é diversa. Os ocidentais analisavam a obra de arte africana dentro dos seus próprios parâmetros, dentro da sua concepção do "belo universal". Mas, como afirma o professor Sodré: "A arte africana é uma outra forma de manifestação da sensibilidade humana, tão variável quanto à diversidade cultural do nosso planeta”.2 ·
Ou segundo Salum:

'Étnica', religiosa – toda arte ameaçada pela anulação dos seus autores é codificada de simbólica. Porém, a arte de origem, da África, e a arte negra do aqui-agora constituem uma criação ontológica, e não social propriamente. É uma arte em que a figura humana é plena e revestida de totalidade. Ideológica ou não, sua genuidade está na reflexão-do-homemsobre-o-homem-pelo-homem, dentro de um ideário cultural, sim, o que não quer dizer que não haja diferenças na arte negra, tradicional ou moderna – nem da África, nem do Brasil.
Isso explica o problema da individualidade na arte africana e na arte negra, sempre considerada em seu caráter 'coletivo' sociológico, e por isso diminuída em seu valor estético-artístico na concepção branca-colonial-européia.3

No tocante, a História da Arte pode-se perceber que geralmente a arte negra africana não aparece nos livros de História da Arte, e, quando aparece não é contextualizada lhe são atribuídos adjetivos como; “fetichista, primitiva, exótica”, exceto a arte egípcia, que apesar do Egito ser um país do continente africano, os ocidentais durante muito tempo o trataram como “não-África” e, quando começaram a tratá-lo como um país africano, tentou induzir a um pensamento de que os povos egípcios eram “superiores” aos demais povos africanos.
No século XIX, irá se intensificar a difusão de teorias como a do filósofo Hegel, em que ele afirmava que a "África não tem história". Outros teóricos afirmavam que as manifestações artísticas como as construções arquitetônicas dos grandes reinos africanos, por exemplo, foram feitas por outros povos que não africanos.4
Muitas dessas teorias criadas no século XIX, ainda permeiam o pensamento ocidental na atualidade. Muitos historiadores da arte, ainda se deixam influenciar por essas concepções de “inferioridade da arte africana”:

O venerável pai da História da Arte em nossos dias, Ernest Gombrich, expressa também algo parecido a um assombro quando chega o momento de falar dessas 'outras' classes de arte. No primeiro capítulo de The Story of Art, outro texto muito usado nos cursos introdutórios das universidades, as classifica de 'estranhos começos' e as compara com a infância de complexos artísticos mais 'maduros'. Os adjetivos que utiliza para descrevê-las são 'estranho', 'raro', 'contra-natural', 'absurdo', 'curioso', 'irracional'; os povos que as
produzem são 'crianças', suas atividades são 'teatro' e seu estado mental é de um 'conto de fadas' ou de um 'mundo de sonho'. Aqui, portanto, a colocação cronológica está clara: se cremos em Gombrich, se trata da expressão criadora no nível mais infantil da humanidade.5

Outro ponto importante, é que devido ao fato da arte africana e a religiosidade estarem intimamente interligados, criou-se segundo Price: “... a difundida idéia no ocidente de que os povos das chamadas sociedades tribais não têm consciência de sua própria história da arte, nem conversam especificamente sobre ela”.6
Pode-se notar que a arte africana durante muito tempo ficou excluída do cenário da arte ocidental; e no momento em que ela começou a fazer parte desse cenário, foi de forma estigmatizada. Os grandes artistas considerados “mestres da arte universal” como o Picasso, Cézanne e o Mondiglianni, criaram obras em que são perceptível nitidamente traços da arte africana, como é caso da Mademoiselles D’Avignon, obra do Picasso considerada o ícone do Cubismo, que possui características estéticas das Máscaras Africanas. Ainda assim; ao invés de
levar em consideração que esses artistas tenham se deixado influenciar por uma arte que traz uma outra releitura do belo, uma forma diferente de interpretar o mundo, e que eles foram privilegiados por ter essa sensibilidade, coloca-se esse fato como uma espécie de “apoio” para a arte africana. Mas vale evidenciar o que Sodré afirmou sobre essa questão: "Vale ressaltar que, apesar da sensibilidade do mestre Picasso vislumbrar na produção estética africana um potencial inovador, a arte africana já era arte por suas características contextuais e parâmetros artísticos”.

MÁSCARAS GELEDÉS

Antes de se fazer à abordagem específica sobre as Máscaras Geledés, falar-se-á, das Máscaras Africanas de uma forma generalizada.
As Máscaras nas comunidades africanas, geralmente estão ligadas a rituais religiosos, de guerra, de fertilidade da terra e até mesmo de entretenimento, elas são criadas para serem vistas em movimento. Diferentemente das máscaras da sociedade ocidental, para as comunidades africanas toda a indumentária que cobre o corpo do mascarado é considerada máscara; e geralmente são os homens quem dançam mascarados.
Quando esculpidas, as máscaras africanas não representam fielmente rostos humanos como em outras sociedades; e sim, nas suas representações elas vão transcender o plano terreno, elas são produzidas de forma que se perceba a sua ligação com o sobrenatural, com o divino. Mas, para as máscaras alcançarem o seu significado aqui na terra, elas precisarão do corpo humano, é o corpo desse ser que irá intermediar essa relação entre o mundo físico e o não físico. Essa concepção fica explícita na citação abaixo:

A máscara africana não representa, presentifica, Lucien Stephan define a presentificação como ‘a ação ou operação por meio da qual uma identidade pertencente ao mundo invisível se faz presente no mundo visível dos seres humanos.’ A máscara e o corpo do dançante não simulam ser, são: ancestral masculino e feminino, caos e força da energia cósmica controlada no espaço ritual, bruxa ou espírito benéfico [...] o outro sobrenatural se incorpora, mística do corpo e do rosto mascarado.

As máscaras africanas geralmente são esculpidas em madeira, a sua confecção passa por rituais desde a escolha de quem vai confeccioná-la até o ritual de purificação pelo qual o escultor irá passar, para que possa a partir daí, nascer uma nova máscara em substituição de outra.
Quando essas máscaras estão expostas em algum museu, toda essa sacralidade não é visível aos olhos do público, as pessoas só podem observá-las enquanto escultura, mas, a estética dessa escultura tem algo de diferente como explica Luz:


As esculturas africanas em geral se caracterizam basicamente por expressarem
esteticamente um conceito, uma idéia, uma essência, para além da aparência 'realista', referem-se um repertório de signos que muitas vezes se expressam em formas abstratas geométricas e exploram um espaço multidimensional. As esculturas representam e invocam uma visão do mundo, materializam forças invisíveis, representando-as . É a 'escultura dos signos', como se referiu Ola Balogun. 9

Dentre os vários rituais em que são usadas as Máscaras Africanas, está o ritual da Sociedade Geledé, sociedade esta, composta e presidida apenas por mulheres a partir dos quarenta anos. Os rituais dessa sociedade acontecem na região que atualmente se encontra a Nigéria, que é uma região yorubá:

A Sociedade Geledé é composta por mulheres acima da idade da menopausa. Elas são
consideradas Iya-mi, nossas mães. Como tal são temidas como aje (feiticeiras). As pragas duma mãe são as mais temidas nas sociedades Yorubá.O poder das mulheres mais velhas na Sociedade Yorubá é essencialmente ligado a menopausa. A menstruação é concebida como o poder generativo da mulher.
Nessa concepção, o sangue da menstruação leva todas as impurezas perigosas para fora da mulher. Quando a menstruação pára, esse sangue é guardado dentro da mulher formando um reservatório de poder antigerativo e anti-conceptivo, ou seja, o poder de destruir, jogar pragas e fazer feitiços.
A Sociedade Geledé é mais forte na região Ketu que estende para os dois lados dafronteira entre o Benin e a Nigéria.10

No relato acima, quando o autor se refere à região "Benin-Nigéria", ele está falando do atual Benin. Sobre a Sociedade Geledé há vários contos, como o narrado pelo Maucler e Moniot:

A sociedade Guelede deve apaziguar as 'Mães'. Entre as mulheres há feiticeiras que envenenam as crianças, e tornam as outras mulheres estéreis. As mães, por outro lado, são também a força benéfica feminina, generosa e progentitora. Esta força é o aspecto duplo do poder espiritual das mulheres, a que o culto guelede se devota, embora os intervenientes actuantes sejam as orações. A 'Mãe Grande', aparece mascarada de mulher barbuda ou de pássaro. E principalmente Efé, um ser mascarado vindo do além, aparece e canta acompanhado por um trio de tocadores de tambores e membros da sociedade, o qual tem o poder de neutralizar os malefícios dos feiticeiros. No dia seguinte, na fase diurna, os mascarados Guelede saem e dançam em grande número. Desta vez é o divertimento dos espectadores que conta e a atmosfera é de descontração.
A fecundidade e a maternidade inspiram muitas destas máscaras, e também uma galeria de retratos típicos, com expressões fisionómicas relistas: o jovem, a rapariga galante, o sedutor, o comerciante, o iniciado no culto do deus Xangu [...] As sociedades Gueledes mantêm assim uma produção importante e sempre renovada de máscaras em madeira.11

Veja-se a análise da Ribeiro sobre a Sociedade Geledé:

De acordo com a autora, a sociedade das Geledés, simboliza aspectos coletivos do poder ancestral feminino é dirigida 'pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta.' 12

Através das citações acima, nota-se que os autores fazem referência ao poder feminino ancestral e ao fato das Geledés serem temidas na comunidade Yorubá. Diferentemente da sociedade ocidental, também se percebe que a Mulher na sociedade africana tem papel de destaque, pois para essas comunidades, a mulher é o ser que gera a vida como afirma Lopes:

Sem o poder feminino que tem a mulher, sem o princípio de criação não brotam plantas, os animais não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem a mulher não existe vida, devendo por isso a mulher ser reverenciada e neste culto Gélèdes temos representada a relação com a reverência que os homens têm para com as mulheres, já que somente elas criam, transformam, modificam, as coisas.1

Devido ao temor, prestígio e respeito que as mulheres da Sociedade Geledé possuem nas comunidades yorubanas, nos rituais em que são utilizadas as máscaras, quem dançará mascarado serão os homens:

Os mortos do sexo feminino recebem o nome de Ì yámi Agba (minha mãe anciã), mas, não são cultuados individualmente. Sua energia como ancestral é aglutinada de forma coletiva e representada por Ì yámi Oxorongá chamada também de Ì yá Nia, a grande mãe. esta imensa massa energética que representa o poder da ancestralidade coletiva feminina é cultuada pelas 'Sociedades Gëlèdé', compostas exclusivamente por mulheres, e somente elas detêm e manipulam este perigoso poder. O medo da ira de Ì yámi nas comunidades é tão grande que, nos festivais anuais na Nigéria em louvor ao poder feminino ancestral, os homens se vestem de mulher e usam máscaras 14

É evidente que no continente africano são diversos os rituais em que as Máscaras são utilizadas, nesse trabalho falou-se apenas das Máscaras que são usadas nos rituais da Sociedade Guelede. Um dos fatos mais importante que já foi mencionado nesse trabalho, mas que será retomado novamente nesse parágrafo; é que através da estrutura política e dos rituais dos mascarados na Sociedade Gueledé, fica explicito a importância da mulher para as comunidades yorubás na África. Trazendo esse aspecto para ao contexto brasileiro, em que se instituiu uma sociedade patriarcal e cristã que por sua vez, se tornou uma sociedade machista, fazendo com que em pleno século XXI o machismo ainda impere na sociedade brasileira, percebe-se que nas Comunidades de Santo ainda se preserva o respeito e a admiração pela Mulher. São as mulheres que quase sempre presidem esses Terreiros, ainda são elas as responsáveis pelos saberes e ensinamentos ancestrais; e a relação que elas estabelecem com os homens não é uma relação de superioridade, mas, sim, de complementaridade entre os dois gêneros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório o quanto de belo há na arte africana, mesmo que nesse trabalho apenas se tenha estudado uma das suas várias formas de produção e manifestação artística. As máscaras africanas enquanto obras de arte possuem uma função eminentemente social.
Quando os africanos de diversas partes da África chegam ao Brasil na condição de escravos, eles trazem consigo toda uma ancestralidade que será expressa nas variadas manifestações culturais e religiosas que eles recriam em território brasileiro. Segundo Oliveira, "na Diáspora africana o que vem para o Brasil não é a estrutura física-espacial das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-africanos”.15
Ele também afirma que: "São aspectos civilizatórios característicos da cultura negra, reconstruída no contexto brasileiro, preservando, entretanto, sua matriz africana”. 16
No Brasil não irá se encontrar rituais com máscaras idênticos aos do continente africano, mas pode-se perceber que há algumas releituras desses rituais, especialmente na Bahia com o Folguedo Zambiapunga da cidade de Nilo Peçanha e o Candomblé dos Egunguns na Ilha de Itaparica. Mesmo considerando que os povos que deram origem a essas duas manifestações cultural e religiosa são de lugares diferentes da África, há semelhanças entre ambas. As duas fazem rituais em homenagens aos seus antepassados e as pessoas que compõem os rituais estão mascaradas. Fica explicito que essas manifestações brasileiras, cada uma, com as suas peculiaridades, estão muito próximas dos rituais africanos em que são usadas as máscaras.

Notas
1 Ver Cátalogo da exposição MAMAFRICA, realizada no museu de Arte Moderna da Bahia em 1997.
2 SODRÉ. Jaime. Arte Africana. - Uma brevissíma abordagem. Correio da Bahia. 06 de janeiro de 2001.
3 SALUM. Marta Heloísa Leuba. “Imaginários Negros”, Negritude e Africanidade na arte plástica brasileira. In:História do Negro no Brasil. O Negro na Sociedade Brasileira: Resistência, Participação, Contribuição. Kabengele
Munanga (org.). 2004 (p. 346).
4 Ver OLIVEIRA. Eduardo David. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente.
Fortaleza: LCR. 2003. (p.24 -25)
5 PRICE, Sally. A arte dos povos sem história. In: Afro-Ásia, Salvador: UFBA, 1996. no 18 (p.207).
6 Ibid, 05. 1996. (p.222).
7 Ibid, 02. 2001.
8 VILLARTA. José. Arte Negro, Figuración De La Alteridad. In: Catálogo África El Legado Eterno. Sala de
Exposiciones. Estácion Marítima. La Coruna. 2001. (p. 26-27). Tradução feita pelo Doutorando Brian Brazeal e revisada pela Profa Dra Joseania Freitas.
9 LUZ. Marco Aurélio. Estética Negra e Artes Plásticas. In: Cultura Negra e Ideologia de recalque. Edições Achiamé Ltda. Rio de Janeiro. 1983. (p. 76).
10
BRAZEAL. Brian. Unpublished manuscript. Songs of Derision and Invocation. Universidade de Chicago – EUA.
2002. Tradução feita pelo próprio autor. Segundo o autor o título do trabalho em Português quer dizer: “Músicas Yorubás para Insultar e Invocar”.
11 MAUCLER. Christian. /MONIOT. Henri. As Máscaras Guelede. In: A história dos Homens: As civilizações da África. 1987. ( p. 71)
12 Ibid, 04 2003. (p.63-64)
13 LOPES. Helena Theodoro.Artigo: Mulher negra, mitos e sexualidade. Grupo de Trabalho 6. Universidade Gama Filho. Disponível em : http//www.mulheresnegras.org/santos3
14 BARRETTI FILHO. Aulo. O culto dos egunguns no candomblé. Revista Planeta. 1986. (p 01)
15 Ibid, 04. 2003. (p.83)
16 Ibid, 04. 2003. (p.83)

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