SINCRETISMO E RELIGIÃO NA FESTA DO DIVINO1
Sergio F. Ferretti
Dr. em Antropologia, professos associado da UFMA, realiza pesquisas na área de religião e cultura popular. E.mail: ferretti@elo.com.br
Sincretismo religioso
Sabemos que o sincretismo religioso é um tema complexo e muito discutido. Embora não se restrinja ao campo da religião, abrangendo também toda a cultura, tem sido mais debatido no âmbito da religião. Todas as religiões são sincréticas, são frutos de contatos culturais múltiplos, mas todas se julgam puras, perfeitas e não se querem misturadas com outras que seriam impuras. Em nossa sociedade o sincretismo é mais discutido, principalmente em relação às religiões afro-brasileiras, consideradas religiões sincréticas por excelência, por terem sido formadas no Brasil com a inclusão de elementos de procedências africanas, ameríndias, católicas e outras. Atualmente no Brasil também se discute o sincretismo em relação às religiões neopentecostais, sobre as quais não nos referiremos aqui.
Conforme a pesquisadora dinamarquesa Anita Leopold (2005), a categoria sincretismo é considerada uma das mais controversas no estudo da religião, que a maioria dos estudiosos da religião gostaria de abolir. De acordo com pesquisador holandês André Droogers (1989), o sincretismo é descrito como mistura de religiões e como avaliação de tal mistura, por isso muitos querem abolir este conceito. Na Antigüidade, conforme seu sentido etimológico, significava “junção de forças opostas face ao inimigo comum”. A partir do século XVIII, tomou caráter negativo, passando a referir-se à reconciliação ilegítima de pontos de vista teológicos opostos, ou heresia contra a verdadeira religião. Devido a essa mudança de sentido entre a definição objetiva e subjetiva o sincretismo tornou-se mal visto e tem sido rejeitado, provocando mal estar entre muitos, que evitam mencionar o conceito, considerado como sinônimo de mistura confusa de elementos diferentes, ou imposição de evolucionismo e do colonialismo.
O médico maranhense Nina Rodrigues, fundador do campo de estudos afro-brasileiros, curiosamente não emprega a categoria sincretismo, já conhecida em sua época e enunciada em 1902 em resenha de seu trabalho por Marcel Mauss2. Nina Rodrigues discorre sobre o tema, usando, entre outras, expressões como: fusão de crenças, justaposição de exterioridades e idéias, associação, adaptação, equivalência de divindades e, principal e significativamente, ilusão da catequese. Esta ilusão decorria, para ele, da equivalência entre as divindades. Afirmava que os negros baianos, sem renunciar aos orixás, tinham profunda devoção pelos santos (id., p. 182). Nas décadas de 1930 e 1940, o médico e antropólogo alagoano Arthur Ramos substituiu a perspectiva evolucionista e racista de Nina Rodrigues por idéias da teoria culturalista3 , então dominante, sobretudo na Antropologia norte-americana, na qual se destacava o africanista Meville J. Herskovits4.
Ramos incluía entre os resultados da aculturação, a aceitação, o sincretismo e a reação. Preferia chamar de sincretismo o que outros chamavam de adaptação. Considerava o sincretismo como um resultado harmonioso de contatos culturais sem conflitos. Nos últimos trabalhos, constata, porém, que nem sempre esse processo é harmonioso e não conflitivo, especialmente quando decorre da colonização e da escravidão. Em vários livros, Arthur Ramos apresenta quadros e esquemas de sincretismos, como era comum entre autores da época, referindo-se (1942, p. 6) a avalanches de sincretismos: “jeje-nagô-muçulmi-banto-católicoespírita-caboclo”, etc. Hoje, esses esquemas se mostram formais, mecânicos, e são considerados de reduzido valor explicativo, uma vez que apenas identificam misturas entre as raízes dos fenômenos, sem realizar maior análise explicativa sobre os mesmos.
O etnólogo Nunes Pereira, que, na década de 40 do século XX, redigiu importante trabalho sobre a Casa das Minas Jeje do Maranhão, considera que lá não havia sincretismo. Afirma (1979, p. 33) que as filhas-de-santo apreciam os santos católicos, “no entanto a distinção entre os dois cultos mina-jeje e o católico é bem nítida”. Para ele, os negros mantinham oratórios “para despistar os oficiantes - receosos de perseguições e castigos da parte dos senhores de escravos [...] no íntimo apreciavam [...] só os voduns da África”.
A teoria culturalista das décadas de 1940 e 1950 considerava o sincretismo como um processo de mudança cultural decorrente da aculturação ou do contacto entre culturas diferentes, uma forma de reinterpretação, exemplificada principalmente pelas religiões afrobrasileiras. Mas os autores de modo geral se interessavam principalmente pelas culturas consideradas mais puras ou não misturadas.
A partir dos anos de 1960, com a superação dos estudos culturalistas, o interesse pelo tema do sincretismo religioso não atraiu mais muita atenção. Na continuidade dos estudos afrobrasileiros, durante muitos anos os autores se desinteressaram pelo sincretismo ou dele trataram sem encontrar novas perspectivas. Entre as décadas de 1940 a 1970, Roger Bastide principal teórico dos estudos afro-brasileiros, redigiu textos com estudos sobre sincretismo. Para Bastide a idéia de sincretismo lembrava fusão, mistura ou identificação entre crenças.
Bastide se interessava mais pela preservação da pureza do candomblé baiano, em oposição à desintegração e à mistura, que julgava encontrar na macumba e na umbanda daí seu menor interesse pelo fenômeno do sincretismo, que entendia mais como mistura. Na linha de Bastide, muitos de seus discípulos se desinteressaram em dar continuidade ao tema e alguns expoentes dos estudos afro-brasileiros passaram a abominar o sincretismo e a valorizar a denominada “pureza africana”5.
O chamado “mito da pureza africana” tem sido defendido principalmente por estudiosos e praticantes do candomblé ketu, difundido no Brasil a partir da Bahia, como comentou o antropólogo Peter Fry em diversos trabalhos. Em texto a respeito da II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, ocorrida em Salvador, em 1983, o autor comenta documento, assinado pela Yalorixá Mãe Stella de Oxóssi, do Ilê Axé Opô Afonjá, uma das mais importantes mães-de-santo baianas que lideraram o movimento contra o sincretismo, segundo o qual, se o catolicismo foi útil aos escravos, hoje os praticantes da religião dos orixás, que têm liturgia e doutrina próprias, não necessitam mais desse disfarce. Para Peter Fry (1984, p. 40), a polêmica demonstra que “o conceito de ‘pureza’ e o seu oposto, a ‘mistura’ ou o ‘sincretismo’ são sempre construções essencialmente sociais e tendem a aparecer em ocasião de disputa de poder e hegemonia”. O autor conclui que o sincretismo religioso remete a uma discussão mais ampla sobre o pensamento brasileiro em relação ao negro e à sua cultura.
Diversos autores com diferentes perspectivas demonstram que o tema do sincretismo afro-brasileiro ainda está longe de um consenso e é bastante atual, envolvendo-se diretamente com os conflitos intelectuais e sociais de nossa sociedade.
Josildete Consorte (1999, pp. 78/79) da PUC/SP, em coletânea coordenada por Caroso e Bacelar (1999), registra que o debate sobre o sincretismo se popularizou nas décadas de 30 e 40 do século XX, quando interessava apenas aos meios acadêmicos e à Igreja. A grande novidade foi que, na década de 1980, começa a envolver a comunidade do candomblé na Bahia e a ser divulgado nos meios de comunicação de massa. Para a autora, o sincretismo está ligado “ao processo de inserção do negro na sociedade brasileira e, conseqüentemente ao da (re)construção da sua identidade”.
Reginaldo Prandi, da USP, em artigo dessa mesma coletânea, divide a história das religiões afro-brasileiras em três fases: o período inicial de sincretização; o de branqueamento, com a formação da umbanda, entre 1920-30; e o de africanização, a partir de 1960, com a transformação do candomblé em religião universal.
Considera que até 1930 “as religiões negras poderiam ser incluídas na categoria das religiões étnicas ou de preservação de patrimônios culturais dos antigos escravos negros e de seus descendentes” (Prandi, 1999, p. 93). Só recentemente, segundo o autor, elas começaram a se desligar do catolicismo. Afirma que o movimento de africanização do candomblé “procura desfazer o sincretismo com o catolicismo e recuperar elementos rituais perdidos na diáspora, além de reaprender a língua ioruba” (id., p. 97). Nos anos 60 do século XX, com o movimento da contracultura, “o candomblé, a partir do Sudeste, foi transformando-se também em religião universal, isto é, religião para todos” (id., 103).
Segundo Stewart e Shaw (2005: 7/8) sincretismo não é um termo com significado fixo, pois seus sentidos foram historicamente constituídos e reconstituídos. Identificar um ritual ou tradição como sincréticos é dizer pouco, pois todas as religiões têm origens compostas e são continuamente reconstituídas. Parece mais importante focalizar o processo da síntese religiosa.
Stewart e Shaw lembram que é importante confrontar o sincretismo com o anti-sincretismo, que se relaciona com a construção da autenticidade e com a noção de pureza e que tanto as tradições puras quanto as sincréticas podem ser autênticas.
Durante mais de um século, através de correntes teóricas diferentes, muita coisa foi escrita sobre o sincretismo entre nós. Alguns acham que se deve evitar falar em sincretismo.
Outros falam em anti-sincretismo, dessincretização, ou africanização e reafricanização, em relação às religiões de origens africanas no Brasil. Historiadores preocupados com as mentalidades e a vida cotidiana discutem esse problema, que era considerado específico da Antropologia. A trajetória desse conceito permite visualizar disputas acadêmicas e políticas, que acompanham análises da realidade social. Sincretismo, cultura, identidade, etnicidade, hibridismo, multiculturalismo e outras categorias sociais complexas, necessitam continuar a serem pensadas e repensadas, com a colaboração de diferentes ciências e correntes de pensamento. É importante lembrar que a própria definição dessas diversas categorias, como do fenômeno do sincretismo, continua constituindo um desafio para os especialistas.
Festas Populares e sincretismo
As festas populares e as manifestações folclóricas refletem de modo geral a presença do sincretismo nas religiões populares. Consideramos, entretanto que as religiões populares ultrapassam o conteúdo do folclore. Existem nas práticas religiosas afro-brasileiras componentes especificamente religiosos distintos do folclore e das festas. Podemos indicar entre outros o respeito por seres, por lugares, por objetos, aos mais velhos, cânticos e palavras sagradas, gestos, rituais e a observação de cerimônias litúrgicas minuciosas e complexas.
Identificamos elementos do sincretismo religioso nas festas religiosas populares realizadas nos terreiros de tambor de mina do Maranhão que temos estudado. No tambor de mina, nome principal das religiões afro-maranhenses, entidades religiosas africanas e de outras procedências, pedem a realização de festas da cultura popular e são homenageadas pelos devotos com festas de vários tipos.
Assim nos terreiros de mina é comum a realização de festas do Divino Espírito Santo, de tambor de crioula, de bumba-meu-boi, banquete para os cachorros, ladainhas, procissões e outros rituais que são oferecidos em homenagens e como pagamento de promessa aos santos, a caboclos, voduns, orixás e outros encantados.
A realização destas festas nos terreiros constitui uma forma de expressão da religiosidade popular e não pode ser vista como superstição ou atraso ou ridicularizado como fator obscurantista que prejudica a pureza ou a africanidade da religião. Não se pode também dizer que o sincretismo foi um fenômeno que só funcionou no passado e que se encontra em desaparecimento ou que prejudique a tradicionalidade das manifestações religiosas. O sincretismo também não foi apenas um fator de resistência à dominação cultural e religiosa. Os que herdaram a religião dos antepassados africanos – o culto aos ancestrais, aos voduns, orixás, caboclos e encantados, tiveram também que aceitar a religião imposta pela dominação colonial, ficaram com as duas religiões e cultuam ambas com devoção idêntica.
Consideramos o sincretismo, como elemento essencial de todas as formas de religião, que está muito presente na religiosidade popular, nas procissões, nas comemorações dos santos, nas diversas formas de pagamento de promessas, nas festas populares em geral, como em diversos elementos da religião oficial, por exemplo no Catolicismo. Constatamos que o sincretismo constitui uma das características centrais das festas religiosas populares. Nas religiões afrobrasileiras o sincretismo é uma forma de relacionar o africano com o brasileiro, de fazer alianças como o escravo aprendeu na senzala e nos quilombos “sem se transformar totalmente naquilo que o senhor desejava” (Reis 1996: 20), nem ficar ”presos a modelos ideológicos excludentes” (Munanga, 1996: 63).
O sincretismo nas religiões afro-brasileiras não representa assim um disfarce de entidades africanas em santos católicos, mas uma “reinvenção de significados” e uma “circularidade de culturas”. Trata-se de uma estratégia de transculturação refletindo a sabedoria que os fundadores também trouxeram da África e, eles e seus descendentes, ampliaram no Brasil. Em decorrência do sincretismo, podemos dizer que as religiões afro-brasileiras têm algo de africanas e de brasileiras sendo, porém diferentes das matrizes que as geraram.
A Festa do Divino
A festa do Divino Espírito Santo é um ritual do Catolicismo popular que, como o carnaval, o bumba-meu-boi e outras festas populares, possui características específicas em diferentes regiões6. Mais do que outras manifestações populares, a Festa do Divino é realizada por questão de promessa e de fé sendo, portanto essencialmente uma festa religiosa. Enquanto na maior parte do país esta festa é um ritual do Catolicismo popular, no Maranhão, embora vinculada ao catolicismo, o Divino possui peculiaridades que a distinguem. Primeiro, a presença marcante de mulheres que são as principais organizadoras dos terreiros de tambor de minas e das festas do Divino. São também quase que só mulheres – as caixeiras, que tocam instrumentos musicais denominados caixas do Divino. Outra diferença, que ocorre principalmente em São Luís7, é estar incluída no calendário religioso dos Terreiros de Tambor de Mina ou casas de culto afromaranhenses. Quase todos os terreiros organizam, uma vez ao ano, uma festa do Divino em homenagem à entidade importante para a comunidade religiosa.
Algumas poucas pessoas organizam a festa em sua casa. Quase sempre são pessoas relacionadas com o tambor de mina e que, por algum motivo, fazem a festa fora do local de culto, mas geralmente em homenagem e a pedido de entidades cultuadas nos terreiros.
As caixeiras constituem elemento imprescindível e típico da festa do Divino no Maranhão. São senhoras idosas com o encargo de tocar caixas8 e entoar cânticos, repetidos de cor ou improvisados, em louvor ao Divino Espírito Santo. Costumam fazer isso por promessa ao longo da vida e vinculam-se a um grupo de seis a doze ou mais, que anualmente tocam em diversas casas, sob a liderança da caixeira régia9, ajudada pela caixeira mor. Normalmente as caixeiras não recebem remuneração, mas são muito valorizadas. Recebem alimento, algum dinheiro para transporte, vestimentas iguais em algumas festas e são agradadas com presentes e mantimentos.
Além de tocar e cantar, em alguns momentos elas dançam com as bandeireiras diante do trono e do mastro. No toque das caixeiras alguns percebem a presença do ritmo marcial dos tambores e da síncope africana ou então, que os cânticos lembram litanias e salmodias do canto chão gregoriano.
Segundo Dona Celeste, caixeira régia da festa na Casa das Minas, na festa do Divino devem ocorrer cerca de nove tipos diferente de toques10, com ritmos distintos, que a caixeira régia tem que conhecer bem e saber o momento em que devem ser tocados. Antes do início de uma festa há uma longa fase preparatória que começa com a tomada de decisão de realizá-la em pagamento de promessa, por devoção ou exigência de uma entidade religiosa que também é devota do Divino. Em todas as festas, especialmente na Festa do Divino, em que se realiza uma seqüência longa e barroca de rituais, os bastidores são essenciais para que se tenha uma boa festa, funcionando antes, durante e após o seu encerramento.
Em geral, há a expectativa de que uma festa bonita e bem organizada atraia muitas pessoas que, gostando, virão outras vezes, trarão novos convidados e, com isso, a cada ano a festa irá crescendo e atraindo mais pessoas. Quando se decide organizar a festa passa a ser feita durante vários anos, enquanto a principal responsável puder fazê-lo. Temos conhecimento de pessoas que organizaram festa do Divino em São Luís durante cinqüenta anos ou mais.
Com antecedência mínima de um ano, são escolhidos os membros dos impérios 11 como um casal de imperadores, de mordomos régio, mordomos mor, os padrinhos do mastro e outros colaboradores. Um semestre antes se escolhem as cores predominantes das vestimentas, a serem usadas pelas crianças, e dos enfeites, para que os organizadores comecem a adquirir o material necessário, devendo tudo ser preparado com bastante antecedência. No Maranhão uma festa do Divino considerada boa costuma ter, no mínimo, seis mesas de doces, cada uma com duas a três dúzias de enfeites ou lembranças para serem distribuídas entre os amigos e colaboradores.
Devido à complexidade e às dificuldades de se organizar uma festa do Divino completa, algumas casas realizam somente uma salva do Divino ou apenas erguem o mastro e rezam algumas orações. Mas, apesar de todas as dificuldades, que sempre aumentam para as populações mais pobres, existe no Maranhão o costume de, a cada ano, os grupos quererem fazer uma festa mais bonita e mais rica do que a anterior, como ocorre com o bumba-meu-boi e com outras festas populares. Constatamos que a festa do Divino atualmente não se encontra em decadência, mas em expansão.
A festa do Divino é comemorada pela Igreja Católica no Domingo de Pentecostes, com data móvel celebrada 50 dias após a Páscoa. Nesse dia é lembrada a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, representado iconograficamente por uma pomba e por línguas de fogo. Esse evento é considerado um dos mistérios da religião. A idéia de mistério é também um dos componentes das religiões afro-brasileiras muito acentuado no tambor de mina, onde grande parte do conhecimento religioso é considerada um segredo, um mistério, transmitido oralmente e conhecido por poucos 12. A pomba branca e a cor vermelha13 são símbolos presentes na festa do Divino em toda parte, como a bandeira, a coroa, o cetro, o mastro e outros elementos.
Em função de pregações missionárias anteriores e a partir de comparações feitas pelo catolicismo e por outras religiões14, entre a descida do Espírito Santo em Pentecostes e o transe religioso, provavelmente os praticantes das religiões de origem africana passaram a ver na festa de Pentecostes uma analogia com a possessão mediúnica por entidades sobrenaturais, fenômeno essencial nas religiões de transe ou possessão.
A abertura da tribuna, o buscamento e o levantamento do mastro são etapas preparatórias da festa que, como vemos, é extremamente ritualizada. Segundo Dona Celeste, “o que se faz no começo tem que ser feito no encerramento”15 ou no fechamento da tribuna. Dona Celeste compara a festa do Divino com o ritual da missa católica que não pode conter nenhum erro. Em outro trabalho (Ferretti, 1995: 185), indicamos relações entre a festa do Divino e o culto de Fá ou Ifá, dos Fons e Yorubás da África Ocidental, mostrando que essa festa é vista como um oráculo do futuro, uma vez que qualquer falha nos rituais é interpretada como prenúncio de mau agouro para a comunidade e para seus organizadores.
Há pessoas que organizam mais de uma festa do Divino por ano em diferentes locais, como dona Celeste responsável pela festa na Casa das Minas há cerca de 40 anos. Alguns pais-desanto que não gostam ou não freqüentam de bom grado o catolicismo, não deixam de organizar esta festa em seu terreiro, com receio de não cumprir corretamente as obrigações para suas entidades espirituais, pois esta festa não pode deixar de ser realizada nos terreiros que as organizam. Até bem pouco tempo, em São Luís a Festa do Divino era organizada quase que exclusivamente em Terreiros de Tambor de Mina, e muitos a organizavam. Nos últimos anos alguns Terreiros de Umbanda estão organizando também festas do Divino, principalmente em função do apoio de órgãos governamentais.
A Festa do Divino é uma tradição do Catolicismo e da cultura popular, muito encontrada em várias regiões do país, com características próprias em cada lugar. Em São Luís, é organizada principalmente por afro-descendentes, em Terreiros de Tambor de Mina, e nela se destacam os toques das caixeiras. É uma festa com organização minuciosa e complexa, com uma seqüência barroca de rituais, que não podem deixar de ser executados.
Considerações finais
A festa do Divino se caracteriza pela seriedade e devoção. Há pais ou mães-de-santo que não a organizam em seus terreiros pois dizem que implica em muitas obrigações. A festa é permeada por ambiente de fé e de devoção sincera por uma graça alcançada por intervenção do Espírito Santo. Embora a beleza da festa atualmente atraia o interesse das autoridades e dos turistas, não é um ritual vazio com falsa imitação, feito para o turista ver.
Apesar de momentos de descontração, de brincadeiras, de danças, é organizada com grande seriedade. Com os recursos arrecadados pelas doações ou jóias, deve-se distribuir a todos, alimentos e dar esmolas aos pobres, o que constitui uma das obrigações da festa. Na Casa das Minas antigamente, após a festa as crianças do império iam levar carroças com alimentos para serem distribuídos no leprosário. Hoje, ao regressar da Missa da coroação o império distribui na porta da Casa, alimentos e esmolas aos pobres e reza-se pedindo fartura de alimentos para todos e para que tudo corra bem durante o próximo ano.
A festa do Divino constitui-se um dos principais elementos que evidenciam a presença do sincretismo religioso nas religiões afro-maranhenses. O ritualismo barroco e minucioso, evidenciado nos cânticos lentos e demorados das caixeiras e nas longas cerimônias da festa do Divino nos terreiros é, encontrado em outros rituais do Tambor de Mina, lembrando o Te Deum e as Missas Solenes da Igreja Católica. O exagero barroco de rituais em contraste com a sóbria discrição dos participantes é, também, uma característica desta e de outras festas populares no Maranhão.
Como foi dito em outro trabalho (Ferretti, S. 1995 b: 187), o sincretismo da festa do Divino nos Terreiros de Mina pode ser visto como paralelismo entre religiosidade e rituais de origem africana e do catolicismo popular, como se fossem duas retas que se encontram no infinito. Paralelismo de idéias e valores que estão próximos, mas não se misturam nem se confundem.
A festa do Divino reflete aspirações de abundância e de glórias do passado que estão presentes nas classes populares. É uma festa comunitária que ritualiza a colaboração e a fartura conseguida através da organização e da criatividade popular. É uma festa solene e muito ritualizada que se destaca mais pelo cumprimento do dever e da obrigação, do que pelos elementos de brincadeira, que, entretanto, estão presentes em certos momentos. No passado a festa do Divino nos terreiros era considerada como uma heresia pelos setores mais conservadores da Igreja Católica. Hoje a o catolicismo oficial a encara com maior condescendência, considerando-a como um fenômeno cultural das classes populares, mas com raras exceções, o clero católico em geral não entende muito bem o significado profundo desta festa.
Alguns preferem utilizar o termo hibridismo (Burke: 2003) ao termo mais antigo sincretismo, que consideram de maior conotação religiosa. No caso da Festa do Divino no Tambor de Mina do Maranhão, trata-se eminentemente de um fenômeno religioso, incluído na convergência do catolicismo popular com as religiões afro-brasileiras. Muitos não gostam de utilizar o termo sincretismo por considerá-lo demasiadamente vinculado à dominação religiosa do período colonial. Não temos preconceito em utilizar o conceito de sincretismo. A nosso ver, o sincretismo imposto pelo colonizador foi assimilado junto com crenças de outras procedências e está presente na festa do Divino dos terreiros de tambor de mina como um fato evidente que não pode deixar de ser constatado.
A festa do Divino no Maranhão é uma festa barroca, como é também considerado o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro (Cavalcanti, 2006: 178) e muitas outras festas brasileiras. A ornamentação das tribunas e das mesas de doces das festas no Maranhão reflete a ornamentação rica que decora o interior da maioria das igrejas coloniais, onde se observam misturas de colunas douradas com pássaros, anjos, frutas e flores, num equilíbrio artístico bonito de ser apreciado. O excesso dos interiores das igrejas barrocas brasileiras, geralmente, contrasta com a singeleza das formas exteriores daqueles templos. Da mesma forma, o excesso e o luxo da festa do Divino muitas vezes contrasta vivamente com a pobreza do ambiente onde se realizam essas festas.
Consideramos que a Festa do Divino pode ser vista como uma continuidade das festas barrocas no Brasil, identificando nela características simbólicas de ritual de inversão, segundo Victor Turner (1969), através de um catolicismo popular que domina triunfante e caminha paralelo à religiosidade africana que resiste com vigor, utilizando, estrategicamente, a impressão de se mostrar dominado e subalterno. A ambigüidade dessas relações contraditórias faz com que o observador apressado enxergue nessa festa apenas uma das suas dimensões manifestas - o triunfo do catolicismo se sobrepondo à dominação da religião africana. Uma análise mais profunda e detalhada mostra, entretanto, a força do tambor de mina, que traz o catolicismo popular para dentro do terreiro e o conduz com autonomia, oferecendo a festa a uma entidade sobrenatural (vodum16 , orixá ou caboclo), que, como os devotos da festa, tem também devoção ao Divino Espírito Santo, fato que passa despercebido aos observadores externos menos atentos. É um exemplo de hibridismo religioso e cultural (Burke: 2003) que está tão presente na realidade brasileira, com a convergência de símbolos, valores e idéias de diversas procedências.
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1
Comunicação originalmente apresentada em mesa redonda no Encontro Internacional sobre o Divino, organizado pelo SESC em S.Luís de 16 a 20/05/2007.
2
Na resenha em que noticia a publicação, em 1900, no Brasil, de L’Animisme Fétichiste des nègres de Bahia, Marcel Mauss (1901, p. 224-225) elogia as descrições e observações, que considera muito científicas, de Nina Rodrigues, constatando, entretanto, que aqui certas crenças apresentam características de um sincretismo mais profundo, com a fusão de elementos cristão, muçulmanos e africanos.
3
Como lembra Renato Ortiz (1978, p. 10), o fenômeno dos contatos culturais é denominado pelos franceses de “interpenetração de civilizações”.
4
Herskovits, um dos maiores conhecedores das religiões africanas e afro-americanas de sua época, realizou pesquisas no Benin, no Suriname, no Haiti, em Trinidad, nos USA e, durante a Segunda Grande Guerra, passou cerca de um ano em viagens de estudos e conferências pelo Brasil. Foi dos mais brilhantes expoentes do culturalismo norte-americano, tendo orientado, nessa perspectiva, teses de três pesquisadores brasileiros: o paulista Octávio da Costa Eduardo, único dos três que está vivo e que, em 1944, pesquisou no Maranhão; o também paulista Ruy Coelho, que realizou estudos no Caribe; e o médico pernambucano René Ribeiro, que estudou cultos afros em Recife.
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Tendência no campo afro-brasileiro a se supervalorizar certos grupos religiosos, principalmente os nagôs, considerados como mais tradicionais, “puros” ou não sincréticos, que seriam continuadores de tradições africanas e que acabaram sendo mais pesquisados pelos antropólogos.
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No mundo português, conforme diversos autores, essa festa se difundiu a partir dos Açores, levada, sobretudo pelos franciscanos. Sabemos que no início dos tempos coloniais, Portugal mandou casais açorianos para povoar o Brasil, sobretudo nas regiões próximas aos limites do Tratado de Tordesilhas, que passava, ao Norte, perto Belém do Pará e, ao sul, em Laguna, no atual estado de Santa Catarina. Talvez por isso, nessas regiões, como no interior do país, em Goiás essa festa até hoje continue muito importante, embora seja realizada também em outros estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Na literatura específica constata-se sua ausência em vários estados, sobretudo no Nordeste, na região que vai de Sergipe ao Piauí, talvez em função do tipo de ação missionária aí desenvolvida no passado.
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Em municípios próximos à capital como Alcântara e Paço do Lumiar, esta festa não tem relações com terreiros.
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As caixas do Divino são tambores semelhantes aos usados pelos soldados nas paradas militares. São instrumentos membranofônicos confeccionados em metal cilíndrico, com cerca de 70 cm de altura por 50 de diâmetro e couro nas duas bocas, afinados por cordas laterais. São tocadas com duas varetas de madeira. São pintadas de vermelho e branco ou de azul e branco. Nos deslocamentos, ficam suspensas ao ombro da caixeiras por tiras de pano. São batizadas, possuem padrinhos e recebem nomes especiais. Em São Luís, diferentemente do que constatamos em outros lugares, os tambores ou caixas do Divino são tocados quase exclusivamente pelas caixeiras, que em alguns momentos executam dança complexa diante do mastro e do império, acompanhadas por meninas que seguram bandeiras, as bandeireiras.
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A caixeira régia, que chefia as outras caixeiras, é personagem de grande importância na festa do Divino e precisa conhecer bem todos os cânticos e detalhes dos rituais.
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São eles: (1) Toque do Espírito Santo Dobrado; (2) Toque do Espírito Santo Singelo; (3) Toque de Senhora Santana; (4) Toque do levantamento e da derrubada do mastro – (de Nossa Senhora da Guia); (5) Toque do hino da Missa; (6) Toque da Alvorada, que continua com o da Alvoradinha; (7) Toque da dança das caixeiras; (8) Toques de rezas e de ladainha nas caixas; (9) Toque do fechamento da tribuna, com o Bendito de Hortelã. A Festa do Divino e principalmente as caixeiras, têm despertado o interesse de estudiosos que redigem monografias, dissertações, artigos e trabalhos de pesquisa sobre o tema (Barbosa, 2002; Gouveia, 2000, 2001).
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Na festa do Divino em São Luís o império é representado por cinco a dez ou mais crianças, na faixa etária entre 4 a 14 anos, vestidas com roupas de época, usando trajes da corte de imperadores e mordomos, com seus respectivos símbolos, como coroa, tiaras, cetro e outros. São saudados como nobres e sentam-se em tronos ou tribunas.
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Palavras relativas ao mistério de Pentecostes e sobre os seus símbolos costumam ser acentuadas pelo padre que prega o sermão na Missa desse dia, assistida pelos participantes da festa.
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Em algumas festas, o azul também é cor importante, sobretudo, nas vestimentas, na decoração do altar e das mesas de doces. Na Casa das Minas se diz que quando a festa é realizada em junho predomina o vermelho que é a cor dos santos comemorados com fogueiras nesse mês, e quando a festa cai em maio, mês de Maria, predomina o azul, que representa a cor do seu manto.
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O pentecostalismo protestante e o movimento carismático católico hoje muito difundidos em toda parte, também comemoram a descida do Espírito Santo, desenvolvendo práticas como o êxtase ou transe, o dom de curas e a glossolália, ou fala em línguas estranhas, considerados símbolos do Espírito Santo, a partir de elementos inspirados em narrativas bíblicas. Esses movimentos, que costumam incentivar o êxtase pelo Espírito Santo, vêem o transe nas religiões afrobrasileiras como possessão demoníaca.
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Há ritos que possuem simbolismo e eficácia específica e não podem deixar de ser realizados. Na festa do Divino, seguese um ritualismo minucioso, não podendo ocorrer erros que representam um mau agouro.
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Na Casa das Minas a festa do Divino é uma devoção da vodum nochê Sepazim, que é uma princesa da família real de Davice (Ferretti: 1996).
Por favor colocar o crédito da foto como Sabrina Gledhill. A foto original é de minha autoria, publicada no livro Botanica Los Angeles: Latino Popular Religious Art in the City of Angels, de Patrick Polk. Los Angeles: University of California Los Angeles, Fowler, 2005.
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