sexta-feira, 3 de junho de 2011

O paraíso fiscal da igreja católica


EULER DE FRANÇA BELÉM
O jornalista italiano Gianluigi Nuzzi escreveu um livro, “Vaticano S.A” (Larousse, 303 páginas, tradução de Ciro Mioranza), que tende a provocar polêmica. No Brasil, ganhou um subtítulo chamativo: “O arquivo secreto que revela escândalos políticos e financeiros da maior instituição religiosa do mundo”. Trata-se, digamos assim, de “O Livro Negro do Vaticano”? Mais ou menos. O leitor desavisado pode pensar, à primeira vista, que se trata de um trabalho que tem o objetivo de demolir a Igreja Católica, em geral, ou, em particular, o (Banco do) Vaticano. Nada disso. A história é baseada no arquivo do monsenhor Renato Dardozzi, um dos homens de confiança do papa João Paulo 2º. Morto em 2003, Dardozzi deixou escrito: “Tornem públicos todos esses documentos para que todos saibam o que aconteceu”. As revelações, baseadas em mais de 4 mil documentos (alguns deles são arrolados no livro), baseia-se em elementos reunidos pela própria Santa Sé. É como se as principais autoridades do supremo poder religioso católico estivessem nos dizendo: a corrupção é dos homens, de poucos homens, mas não do Vaticano, do sistema católico. Conclui-se, pois, que Nuzzi, longe de manchar a reputação dos principais dirigentes da Igreja, contribui para limpar (parcialmente) sua imagem. Sugiro que se leia a investigação do notável repórter a partir deste comentário, e acrescento que, apesar da ressalva, a pesquisa é sensacional e mostra que o maior grupo religioso do Ocidente joga, em termos financeiros, pelas regras do mercado capitalista-liberal.

A Igreja Católica é uma grande empresa religiosa e, ao mesmo tempo, econômico-financeira. Não pode ser dirigida sem dinheiro, daí o bispo americano Paul Marcinkus, secretário do Instituto Para as Obras Religiosas (IOR), mais conhecido como Banco do Vaticano, ter dito, de modo apropriado: “Pode-se viver neste mundo sem se preocupar com o dinheiro? Não se pode dirigir a Igreja com ave-marias”. Um de seus críticos poderia ressalvar: não se pode viver pregando uma coisa e fazendo outra. Apoiado pelo papa Paulo 6º, Marcinkus desenvolve uma política financeira agressiva. Em 1960, “a Igreja controla de 2% a 5% do mercado de ações”.

Pragmático, Paulo 6º, para escapar ao cerco fiscal do governo italiano, que exige “o pagamento de todos os lucros retroativos sobre investimentos, o que supera 1 bilhão e 200 mil euros atuais”, começa a transferir recursos para o exterior, com o apoio do banqueiro siciliano Michele Sindona (que “controla o aporte de capitais da máfia”) e de Marcinkus. Sindona, dirigente do banco suíço Finbank e da Banca Privata Italiana, e Marcinkus controlam “a mais maciça das exportações de capitais jamais ocorrida aos subterrâneos do Swiss Bank, em parceria com a Santa Sé”. Ampliando a rede, Sindona e Marcinkus colocam outro banqueiro no negócio, Roberto Calvi, dono do Banco Ambrosiano.

Mas as jogadas do trio Marcinkus-Sindona-Calvi começam a falhar, sobretudo com a crise econômica de 1973, a do petróleo, e investimentos temerários. O Banco Franklin, controlado por Sindona, tem perdas de 2 bilhões de dólares, a Banca Privata perde 300 milhões e o Finbank perde 82 milhões. Para não ser preso, Sindona foge. Marcinkus afirma, em 1975, que “o Vaticano não perdeu 1 centavo”. Como o bispo não fazia milagres, a Santa Sé perdeu de 50 a 250 milhões de dólares.

Com a morte de Paulo 6º, Albino Luciani, com o nome de João Paulo 1º, assume o comando da Igreja Católica. Sua primeira providência, no campo financeiro, seria retirar Marcinkus e Donato de Bonis do Banco do Vaticano (IOR). Tomou a decisão em 28 de setembro de 1978. No dia seguinte aparece morto. O livro “Em Nome de Deus — Uma Investigação em Torno do Assassinato do Papa João Paulo 1º” (Record, 370 páginas), de David A. Yallop, sustenta que teria sido envenenado. Karol Wojtyla, com o nome de João Paulo 2º, assume e mantém Marcinkus no Banco do Vaticano. Em 1982, com o Banco Ambrosiano quebrado, Calvi aparece enforcado, sob a ponte dos Frades Negros, em Londres. Teria se apropriado de parte do dinheiro da máfia. A simulação de suicídio não enganou ninguém.

João Paulo 2º tinha apreço por Marcinkus por dois motivos. Primeiro, era um realista em tempo integral e sabia que, no mundo dos negócios, quem joga inteiramente limpo tem lucros menores, e não raro pode quebrar, dados os poderosos tentáculos fiscais do Estado. Segundo, Marcinkus usou o Banco do Vaticano para financiar, com mais de 100 milhões de dólares, o sindicato polonês Solidariedade. A derrubada do socialismo no Leste Europeu teve o dedo firme e solidário do papa. O governo e a Justiça italianos têm outra opinião sobre Marcinkus — aliás endossada pela investigação interna do Vaticano: o jogo financeiro com Calvi, no Banco Ambrosiano, resultou num débito de 1,2 bilhão de dólares para o Vaticano. Diante do descalabro, com o Banco do Vaticano operando fora de quaisquer controles, comportando-se como qualquer banco dos paraísos fiscais, inclusive com lavagem de dinheiro “sujo”, o juiz Renato Bricchetti pede, em 1987, a prisão de Marcinkus, Pellegrino de Strobel e Luigi Mennini.

Sob pressão da Justiça, e lutando para evitar a prisão dos dirigentes, o Banco do Vaticano devolve 242 milhões de dólares aos credores do Banco Ambrosiano — zerando o débito e a crise. Mesmo assim, a Justiça considera que as operações do Banco do Vaticano contribuíram para a falência fraudulenta do Ambrosiano. João Paulo 2º afasta Marcinkus e novo comando assume o IOR. Cresce a participação do monsenhor Dardozzi na vigilância do banco.

Cardeal brasileiro

Apurou-se o esquema, o papa João Paulo 2º puniu alguns dos chefes financeiros, como Marcinkus, mandando-o de volta para os Estados Unidos, mas, como demonstra o repórter Nuzzi, o buraco era muito mais fundo do que o denunciado pela Justiça italiana. Como o Vaticano é um Estado independente, o Banco do Vaticano operava, como qualquer banco “offshore” (empresa de paraíso fiscal com nomes de sócios protegidos), “fora de controle”. Por que tantos procuravam o Banco do Vaticano para “lavar” dinheiro? “O IOR garante total discrição nas operações, absoluta impunidade e autonomia operacional para quem o administra, e salvo-conduto para a clientela. (...) Os dirigentes do IOR não podem ser investigados, nem presos, nem processados na Itália” (Tratado de Latrão).

Com a saída de Marcinkus, o monsenhor Donato de Bonis assume como prelado do Banco do Vaticano. Parecia uma mudança. Não era. De Bonis faz parte do grupo do banqueiro americano. O banqueiro lombardo Angelo Caloia, com o apoio de Dardozzi, assume a presidência do Conselho de Administração do Banco do Vaticano, com a missão de pôr ordem na casa, o que significa manter a entidade funcionando como um banco lucrativo, mas infenso a escândalos. Agindo em consonância com Marcinkus, De Bonis vende 51% da participação do Banco do Vaticano no Banco de Roma Suíço, por 100 milhões de dólares, à Union de Banques Suisses.

No momento em que Marcinkus caía em desgraça, correndo o risco de ser algemado, De Bonis articula um poderoso “sistema offshore para lavagem de dinheiro dentro dos muros do Vaticano com contas criptografadas”. A primeira conta, de nº 001-3-14774-C, recebeu um depósito imediato de 494,4 milhões de liras, com taxa (alta) de juros de 9% ao ano. O depósito é feito em nome da beneficente Fundação Cardeal Francis Spellman, que, na prática, não existe. Nomes que aparecem como beneficiários da conta: o então primeiro-ministro da Itália, o democrata-cristão Giulio Andreotti (aparecia como “Omissis”) e Donato de Bonis (“Roma”). Angelo Caloia diz que a conta movimentou bilhões. “De 1987 a 1992, De Bonis introduz fisicamente no Vaticano mais de 26 bilhões de liras cash [26,4 milhões de euros] e os deposita todos na conta Fundação Spellman.” Foram depositados e retirados títulos do governo italiano no valor de 42 bilhões de liras (32,5 milhões de euros).

O dinheiro era proveniente de subornos e outros esquemas para beneficiar o corrupto Andreotti e, por extensão, De Bonis. A sociedade Fasco AG teria “doado” 200 milhões de liras para Andreotti e o dinheiro foi parar na conta da fantasma Fundação Spellman, no Banco do Vaticano. De Bonis não tinha vergonha alguma de chegar ao Banco do Vaticano com milhares de pacotes de 100 mil liras para depositar na conta do “amigo” e “sócio”. A lavagem de dinheiro unia o Banco do Vaticano às instituições financeiras suíças Union Bancaire Privée, Banco di Credito e Commercio S.A., Banco Indosuez e Banco di Lugano. Instituições bancárias de Luxemburgo foram usadas para lavar e triangular dinheiro sujo. Dezessete contas correntes foram usadas pelo esquema.

Para disfarçar, De Bonis e Andreotti liberavam algum dinheiro para obras beneficentes, mas ficavam com o grosso do capital. Integrantes da Democracia Cristã recebiam polpudas doações. O cardeal brasileiro Lucas Moreira Neves, prefeito da Congregação dos Bispos (até 2000), recebeu 1 milhão de dólares. Para quê, o livro não esclarece. Outros religiosos e diplomatas receberam quantias generosas. O Banco do Vaticano também faturava, é claro.

A estratégia de De Bonis, até surgirem desconfianças de que a movimentação financeira via Banco Vaticano era produto de uma lavanderia gigante, não havia sido criticada, ao menos não no sentido de impedi-la. Porque o IOR estava lucrando e, assim, repassando o dinheiro necessário para o governo de João Paulo 2º. O Banco do Vaticano é controlado diretamente pelo papa. Em 1992, o engenheiro Mario Chiesa é preso pelas operação Mãos Limpas. Políticos foram presos e a Justiça italiana passa a examinar as ligações do Banco do Vaticano com políticos italianos.

O presidente do Banco do Vaticano, Angelo Caloia, percebendo o risco, proíbe que funcionários do banco se tornem gestores de contas alheias. O objetivo é controlar a dupla contabilidade, ou seja, De Bonis. Relatório top secret conclui que “o IOF e o Vaticano correm o risco de estar envolvidos em um escândalo por terem administrado tanto o dinheiro dos líderes políticos” — ligados a Andreotti e outros — “como os misteriosos Cct e as bilionárias arrecadações de dinheiro em moeda corrente de De Bonis”. A comissão dirigida por Caloia descobre o que já se sabia: o Banco do Vaticano operava contas ilícitas, negócios de bilhões de liras, como se estivesse administrando contas de instituições de caridade.

A comissão descobriu que o sistema montado por De Bonis não se alimentava apenas de subornos. O esquema offshore de De Bonis se alimentava “também do dinheiro deixado pelos fiéis para as santas missas em memória dos defuntos”.

Embora sob cerco de Angelo Caloia, De Bonis continua agindo, nas sombras e, às vezes, abertamente. Caloia busca apoio no secretário de Estado do Vaticano, Angelo Sodano, braço direito de João Paulo 2º, mas sabe que, ao contrário de De Bonis, não é um homem da Igreja. As investigações continuam. Caloia e Dardozzi tentam mas não conseguem controlar de imediato o sistema montado por De Bonis. “O sistema offshore continua crescendo, gozando de uma espécie de ‘clandestinidade financeira’ que o torna imune a tudo.” De Bonis cria um banco dentro do banco. “Uma ‘lavanderia’ que opera no centro de Roma em regime extraterritorial, imune a qualquer cataclismo judicial.” A investigação do próprio Vaticano descobre que “De Bonis criou um verdadeiro e próprio ‘paraíso fiscal’. Com disponibilidades enormes e com uma gestão privada das heranças: as somas deixadas como beneficência por ricos católicos são, por vezes, depositadas em contas pessoais”, anota Nuzzi.

De 1989 a 1993, as 17 contas geridas por De Bonis movimentam 275,2 milhões de euros — parte em moeda corrente e parte em títulos de Estado. A movimentação pode ser maior, diz Nuzzi. A conta 001-3-15924-C, da Fundação Mamma de Bonis, pela luta contra leucemia, e a conta da Louis Augustus Jonas Foundation, todas fantasmas, foram usadas para lavar grandes propinas para políticos e empresários. Teoricamente, o dinheiro seria utilizado em instituições de caridade, como o centro psiquiátrico Don Uva, dirigido pela Congregação das Servas da Divina Providência. No entanto, registra Nuzzi, seus “pacientes vivem em condições desumanas”. O dinheiro nunca chega para a instituição.

Prelado lava dinheiro da superpropina italiana

Em 1989, opera-se na Itália um dos maiores negócios da história do país: a Ente Nazionale Idrocarburi (ENI), multinacional do petróleo, e a Montedison, do grupo Ferruzzi, gigante dos cereais, criam a Enimont. O executivo Raul Gardini sonha, em tese, com a criação do polo petroquímico nacional único — união entre o setor privado (Montedison) e público (ENI). Gardini trabalha para elevar as ações da Enimont, mas o projeto não funciona. A ENI acaba por comprar a parte, inflacionada para 2,1 bilhões de euros, da Montedison. Entretanto, sem a autorização dos políticos, como o primeiro-ministro Giulio Andreotti, o acordo não seria fechado. Resultado: cria-se o maior propinoduto da história do país. Os primeiros a receber dinheiro foram Arnaldo Forlani e Severino Citaristi, da Democracia Cristã. Mas como pagar? Entra no caso o Banco do Vaticano, com o indefectível prelado Donato de Bonis.

O registro de Gianluigi Nuzzi: “Aqui aparece a provisão inicial proveniente de fundos extraorçamento. Ali aparecem as transferências bancárias, as somas lavadas e recicladas com triangulações em contas de fachada e sociedades-fantasmas. Aí está sobretudo o IOR de De Bonis, um banco fora da Itália, escolhido para lavar e fazer transitar grande parte das somas e destiná-las aos ‘laranjas’ dos líderes da primeira República. A provisão de fundos ilegais para pagar os políticos é constituída graças à ajuda do agente imobiliário romano Domenico Bonifaci, que põe à disposição da Montedison 152,8 bilhões de liras em dinheiro vivo e em títulos. O montante é distribuído a partidos políticos e líderes do governo, políticos, membros do Conselho de Administração da ENI, pagos seja para vender, seja para comprar, até os intermediários. Os encarregados disso são o consultor Sergio Cusani e Carlo Sama, administrador-delegado da Montedison”. Luigi Bisignani, ex-jornalista da Ansa, é um dos agentes do negócio.

Bisignani, ligado a De Bonis, movimenta a conta 001-3-16764, em nome de Louis Augustus Jonas Foundation. Em tese, a conta é para reunir dinheiro para ajudar crianças pobres. Na prática, destina-se a movimentar dinheiro de propinas. Em 1991, De Bonis transforma 5 bilhões de liras em moeda corrente e deposita 2,7 bilhões na conta Jonas Foundation e 2,2 bilhões na conta Cardeal Francis Spellman. “Para triangular e dispersar os vestígios do dinheiro, o prelado do banco do papa se movimenta como um financista astuto: o dinheiro permanece apenas alguns minutos na conta Spellman. Só o tempo necessário para organizar uma transferência de 2,5 bilhões de liras da conta Spellman para a conta FF 2927 do Trade Development Bank de Genebra, por meio do Banco di Lugano. Na prática, o prelado acrescenta à soma apenas recebida 300 milhões de liras, retirados precisamente da conta Spellman para efetuar o depósito na Suíça. Esse dinheiro não vai para as ‘crianças pobres’ nem para a fundação da Pensilvânia. Assume, no entanto, um significativo valor simbólico: constitui a primeira parcela do repasse da Enimont, ‘a mãe de todas as propinas’. A primeira lavanderia está sendo montada”, revela Nuzzi.

A segunda parcela da superpropina é depositada no Banco do Vaticano por De Bonis, no valor de 9,8 bilhões de liras, para a Società di Banca Svizzera. A conta leva a Mauro Giallombardo, “homem de confiança das contas secretas do PSI e de Bettino Craxi. Depois, De Bonis transfere 44,8 bilhões para bancos suíços”.

A operação, de grande monta, assusta o Vaticano. De Bonis é afastado do Banco do Vaticano e cai para o alto: é promovido a bispo. Bisignani, farejando o desastre, começa a retirar dinheiro do IOR. Como era muito dinheiro, 1 bilhão e 687 milhões de liras, teve de fazer duas viagens. Investigado pela operação Mãos Limpas, foge. Outros envolvidos na superpropina brigam publicamente. Gabriele Cagliari e Raul Giardini se matam. Angelo Caloia acusa De Bonis de ser responsável pelo sumiço da documentação sobre o sistema offshore. Mesmo afastado, De Bonis continua com um pé no Banco do Vaticano. O cardeal venezuelano Castillo Lara, influente no Vaticano, é apresentado como uma espécie de cérebro por trás de De Bonis. Mas Nuzzi não é, em geral, categórico, sem contar que suas fontes são adversárias de Castillo Lara.

Diante do descalabro, o Vaticano monta uma grande operação e salva seu bom nome, acusando alguns prelados e executivos. De Bonis não é preso, nem pressionado o suficiente, talvez porque fosse um arquivo vivo e perigoso. Ele tentou movimentar suas contas, dinheiro privado, que teria desviado dos “amigos” e do próprio Banco do Vaticano, mas Angelo Caloia vetou. O livro apresenta outros escândalos, inclusive envolvimento do Banco do Vaticano com a máfia siciliana de Salvatore Riina e Bernardo Provenzano, e venda de títulos brasileiros.

Marcinkus, De Bonis e Castillo Lara agiram sem a anuência das chefias? Aqui e ali, sim. Mas, no geral, não. Quem acredita em autonomia total no Vaticano também crê em Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve. O jornalista Nuzzi, com habilidade, tenta aliviar a barra de alguns religiosos, como o papa João Paulo 2º. Não consegue. Os fatos falam por si — contra todos. Enfim, um livro imperdível.
Revista Bula

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