Apoiados pela União Soviética de Josif Stálin, os comunistas brasileiros tentaram derrubar o presidente Getúlio Vargas em 1935 mas foram fragorosamente derrotados. Entretanto, ao contrário do que podem depreender alguns leitores, a Intentona Comunista fracassou não porque foi delatada, e sim porque era de um irrealismo abissal. Era uma formiguinha maluca brigando contra um astuto exército de elefantes. A traição serviu apenas, quem sabe, para antecipar e, assim, debelar a rebelião mais cedo. A história está devidamente anotada em livros de qualidade, como “A Rebelião Vermelha” (Record, 217 páginas, 1986), do brasilianista Stanley Hilton, “Camaradas — Nos Arquivos de Moscou: A História Secreta da Revolução Brasileira de 1935” (Companhia das Letras, 416 páginas, 1993), de William Waack, “Olga” (Companhia das Letras, 259 páginas, 1984), de Fernando Morais, “Revolucionários de 1935: Sonhos e Realidade” (Companhia das Letras, 432 páginas, 1992), de Marly de Almeida Gomes Vianna, e “Uma das Coisas Esquecidas — Getúlio Vargas e Controle Social no Brasil/1930-1945” (Companhia das Letras, 341 páginas, 2001), do brasilianista R. S. Rose. Agora, 75 anos depois, sai um livro excepcional sobre um personagem misterioso, comentado apenas episodicamente nos livros citados. “Johnny — A Vida do Espião Que Delatou a Rebelião Comunista de 1935” (Record, 600 páginas), de R. S. Rose e Gordon D. Scott, é uma obra do balacobaco sobre o alemão Johann Heinrich Amadeus de Graaf, mais conhecido como Johnny. Rigorosamente documentada, a obra é vazada no estilo de romance policial. Johnny começou a espionar para os soviéticos, chegou a se encontrar com Stálin e Molotov, para citar duas eminências soviéticas, mas depois se tornou espião dos ingleses. Uma das revelações, embora não devidamente explorada, é que Urbano “Bercuó” espionou para Johnny, em 1940, no Rio de Janeiro. Espionava navios de origem alemã e, aparentemente, estava na folha de pagamento dos ingleses. O promotor de justiça e pesquisador Jales Guedes Mendonça diz que se trata do advogado e jornalista goiano Urbano Berquó. “Foi advogado de Pedro Ludovico e jornalista do ‘Correio da Manhã’.”
Ao leitor mais interessado em assuntos brasileiros,  recomendo a leitura de cinco capítulos, “Brasil um”, “Argentina”, “O  retorno a Moscou”, “Brasil dois” e “Primeiros anos da guerra”. Se quiser  entender como os espiões eram formados, e por quais motivos Johnny  desencantou-se com o comunismo soviético — o paraíso social só existia  na teoria e a repressão aos dissidentes era brutal —, é preciso ler todo  o livro do americano R. S. Rose e do canadense Gordon D. Scott (que  conheceu Johnny). A história de Johnny, de tão impressionante, às vezes  parece inventada. Não há, porém, nada de ficcional. Os estudiosos são  criteriosos e parcimoniosos no uso da documentação. Muitos documentos a  respeito de Johnny, sobretudo na Inglaterra, ainda não estão  disponíveis.
Delírio de Prestes
O papel de Johnny, espião do M4, a  Inteligência do Exército soviético, seria “cultivar, recrutar e  desenvolver células dentro e fora das forças armadas” brasileiras.  Langner garantiu que o capitão Luís Carlos Prestes, que seria o chefe da  revolução patropi, era “um líder nato”. Foram escalados para comandar a  derrubada de Vargas os comunistas Arthur Ernst Ewert (codinome Harry  Berger), Johnny de Graaf (codinome Franz Paul Gruber), o americano  Victor Allen Barron, o italiano Amleto Locatelli, o argentino Rodolfo  José Ghioldi, os soviéticos Pavel Vladimirovich Stuchevski (com o  codinome de Leon Jules Vallée, era da NKVD, a futura KGB) e Sofia  Semionova Stuchevskaya (mulher de Pavel), a alemã Olga Benario  (guarda-costas e amante de Prestes). Na primeira reunião, em Moscou,  Prestes disse que a revolução estava madura no Brasil e que 90% do  trabalho “já havia sido feito”. Realista absoluto, Johnny pensou: “Esse  homem tem a cabeça nas nuvens. Às vezes a realidade e a lógica sensata  lhe escapam”. Logo depois, Johnny informou seu contato no MI6 (serviço  secreto de inteligência inglês), o britânico Frank Foley, que  reportou-se ao major Valentine Patrick Terrel Vivian, “Vee-Vee”. O  espião Alfred Hutt, superintendente-assistente-geral da Light no Rio de  Janeiro, havia sido informado.
Na década de 1930, depois de, um  pouco antes, ter acusado a social-democracia de “social-fascismo”, o  Comintern (Internacional Comunista) mudou de tática e passou a  incentivar a política de construção de frentes políticas com a  participação de comunistas e democratas. “A intenção era radicalizar aos  poucos cada Frente”, ressaltam Scott e Rose. No Brasil, o Partido  Comunista do Brasil (erroneamente, apontado como Partido Comunista  Brasileiro; esta nomenclatura só vai ser empregada décadas adiante)  aderiu à Aliança Nacional Libertadora (ANL). Numa reunião, no Rio de  Janeiro, Johnny ficou estupefato com o superficialismo político e tático  de Prestes, que acreditava, era fé mesmo, que o Brasil estava “pronto”  para a revolução. Quando Johnny duvidou, Prestes vociferou: “Sim,  estamos!” Johnny contestou-o e ficou impressionado com o fato de que o  PCB estava afastado do centro das decisões. Mas o líder personalista não  desistiu. Avaliava que era possível construir uma revolução sem as  mínimas condições objetivas, numa leitura simplista das ideias  leninistas.
Afastado do centro das decisões, por ser cético  quanto ao poder de fogo do grupo de Prestes, Johnny passou a ser  informado dos assuntos da cúpula por sua mulher, Helena Krüger, que  atuava como motorista do líder revolucionário. As informações eram  repassadas aos ingleses, que as transmitiam ao governo de Vargas. Mesmo  sabendo que a revolução estava fadada ao fracasso, porque era uma mera  “revolta militar”, Johnny treinou alguns recrutas, totalmente  despreparados, e deu orientações a Prestes, que as recusou.
Com  ou sem preparação, a rebelião estourou em Natal, em novembro de 1935, e  em Recife. Os rebeldes assumiram o controle da capital do Rio Grande do  Norte, mas por pouco tempo. No Rio de Janeiro, a revolta também  explodiu. O presidente Getúlio Vargas, no lugar de inquirir sua polícia,  ligou para Hutt e perguntou se os comunistas tinham chance de vencer.  Johnny disse a Hutt que deveria tranquilizar o presidente, pois “não  havia a menor chance” de a revolta ser bem-sucedida. Era uma quartelada.  “A Revolução Social, ou Intentona Comunista, estava encerrada em um  fiasco de quatro dias.” Johnny a delatara, é verdade, mas o fracasso se  deu muito mais por causa da orientação inconsistente de Prestes. Os  militares de esquerda e os comunistas não estavam preparados para tomar o  poder, mas confundiram desejo com realidade.
O governo de  Vargas reprimiu ferozmente a rebelião, prendeu (a estatística varia de 7  mil a 35 mil pessoas) e torturou centenas. Um alemão da Gestapo, da  equipe do diretor da polícia Filinto Müller, torturou Arthur Ewert logo  depois de sua prisão. Quebrou um dos polegares de Ewert com um  quebra-nozes e ficou irritado porque o comunista não gemeu. Brutalmente  espancado, Ewert enlouqueceu. Sua mulher, Elise (Sabo), foi enviada para  um campo de concentração, onde morreu em 1941. Olga Benario morreu, “em  uma câmara de gás em Bernburg, em março de 1942”. Delatado por Rodolfo  Ghioldi, o americano Victor Allen Barron foi morto sob tortura.
Moscou  desconfiou de Johnny, procedeu a uma grande investigação, mas, usando a  velha dialética leninista, o espião conseguiu convencer os veteranos  stalinistas — a feroz “inquisidora” búlgara Stella Blagoeva continuou  duvidando de sua integridade — que o fracasso da revolução brasileira  tinha a ver unicamente com o voluntarismo de Prestes.
Depois de  um período na geladeira, Johnny voltou ao Brasil, agora com a missão de  espionar os nazistas para os soviéticos e, claro, para os britânicos.  Era eficientíssimo. Montou uma rede de espiões, pagos pelos ingleses, e  começou a repassar informações confiáveis sobre negócios dos alemães com  os brasileiros. Chegou a ser preso e torturado pela polícia de Filinto  Müller, que era simpático aos nazistas, e só foi liberado por conta de  pressões inglesas. Com o fim da guerra, foi dado como morto por seus  chefes soviéticos e mudou-se para a Inglaterra, onde adotou outro nome e  continuou a espionar, especialmente no Canadá. Quem era Johnny? “Não  era um comunista de carreira, tentando agradar superiores na órbita  stalinista, mas alguém que estava do lado de fora olhando para dentro”,  sintetizam seus biógrafos. Johnny morreu em 1980, aos 86 anos, no  Canadá, com o nome de John Henry de Graff (ligeira alteração de seu  sobrenome).
Revista Bula
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