quarta-feira, 11 de maio de 2011

Prostitutas - Casos de polícia

Prostitutas e cafetões do início do século XX usaram a legislação para se defender de maus clientes e do cerco da própria Justiça
Marina Maria de Lira Rocha

Helena Petro era uma prostituta grega de 26 anos que vivia na Rua da Conceição, no Centro do Rio de Janeiro. O ano é 1908, quando a circulação de notas falsas de dinheiro era comum no país. Ao tentar trocar num botequim uma cédula de 50 mil-réis que recebera por seus serviços, Helena descobriu que fora enganada por um cliente. Sem titubear, levou o culpado à delegacia para denunciá-lo por pagar com dinheiro falso.

Pode parecer estranho uma prostituta recorrer justamente à polícia – que normalmente é associada à repressão a essa atividade – para receber seu pagamento, mas o Arquivo da Justiça do Rio prova que isso aconteceu com frequência nas zonas de meretrício da cidade entre 1907 e 1917.

Geralmente tratados pelos agentes do Estado como perturbadores da ordem, os que viviam da prostituição também sabiam usar a legislação quando tinham seus direitos violados. Os cafetões, que ganhavam dinheiro explorando a prostituição, costumavam recorrer à lei para se defender quando ameaçados. Mas, enquanto as prostitutas iam à delegacia para denunciar os maus pagadores, os que viviam do lenocínio (exploração de pessoas para fins sexuais), a maioria cidadãos estrangeiros, iam atrás de advogados para ajudá-los quando eram presos. Dessa forma, a estrutura repressiva criada pela elite, representada pela polícia e pela Justiça, acabava servindo também para defender os interesses dessas “profissões” excluídas.

Nos processos do Rio, as mulheres que vendiam o corpo tinham, em geral, entre 25 e 30 anos; eram, na maioria, estrangeiras e não escondiam de onde tiravam seu sustento. Pediam pagamento adiantado e costumavam levar o cliente à polícia se desconfiassem que ele estava dando uma nota falsa.
A prostituta inglesa Clara Double é um exemplo. Após receber uma nota de 50 mil-réis do cliente português José de Almeida, perguntou a dois amigos que bebiam cerveja na Rua Senador Dantas – uma prostituta russa e um negociante português – se a cédula era verdadeira. O trio se dirigiu ao Café Avenida, onde constatou que se tratava de dinheiro falso. O passo seguinte foi levar o cliente à delegacia.
Incidentes como esse resultavam em processos de sumário-crime, instrumento aplicado nos casos de uso de moeda falsa como atentado à fé pública. A punição prevista no Código Penal de 1890 era de um a quatro anos de prisão pela fabricação de dinheiro falso e de dois a quatro por sua introdução e circulação.

No entanto, a maioria dos crimes ficava impune por falta de provas sobre a intenção do denunciado de pagar com cédula falsa. Dificilmente algum acusado confessava que sabia da falsificação. Foi o que aconteceu com o português José de Almeida. O juiz Olympio de Sá Albuquerque o absolveu argumentando que era um indivíduo ignorante e analfabeto. Sua intenção ao passar a nota falsa, a única que tinha no bolso naquele momento, seria apenas a de impressionar a prostituta pagando um valor muito superior ao acertado entre os dois.

Apesar da absolvição, histórias como essa mostram que as prostitutas não estavam totalmente sós. Elas tinham a solidariedade de pessoas que se dispunham a testemunhar a seu favor: trabalhadores e donos de casas comerciais, colegas de meretrício, costureiras, cozinheiras, manicures, garçons. A inglesa Clara teve a ajuda de outra colega e do negociante, que a acompanharam ao Café Avenida.

Já com uma lógica comercial, elas valorizavam o direito de receber por seu trabalho. Por isso, não se envergonhavam de contar a todos quando sofriam uma injustiça e de ir à polícia em busca de reparação. É o que mostra o exemplo da russa Rosa Godemberg, que em 1909, ao receber de um cliente português uma nota aparentemente falsa de 120 mil-réis por um “programa” – ou “serviço”, como se dizia na época – de 40 mil-réis, saiu gritando pela Rua da Conceição que havia sido enganada.

A necessidade de recorrer à polícia é fruto da falta de uma regulamentação específica para essa atividade – algo que persiste até hoje. A partir do sumário-crime, a polícia e a Justiça assumem a responsabilidade de mediar as relações profissionais entre as prostitutas e seus clientes, atuando em favor daquelas que não receberam devidamente por seus serviços.

Numa época em que as mulheres começavam a deixar a vida privada e a sair de casa para trabalhar fora, a polícia precisava disciplinar os costumes nas áreas de meretrício para que fosse possível o convívio, no mesmo espaço público, entre as profissionais do sexo e as mulheres ditas “honestas”.

Ao mesmo tempo, a sociedade esperava que a polícia coibisse a ação dos cafetões. Eles costumavam ser encarados como os vilões do negócio da prostituição – algozes das mulheres que exploravam.

Em novembro de 1915, um russo, um francês e um brasileiro foram presos por cafetinagem. O jornal A Rua elogiou: “As primeiras prisões de cáftens (cafetões) efetuadas ontem pela polícia (...) foram uma bomba que arrebentou nos arraiais dos exploradores do lenocínio. Os cafés e bares onde habitualmente se reuniam tão nojentos indivíduos ficaram vazios. Durante toda a noite, era mais fácil encontrar libras esterlinas pelas ruas que os profissionais da infâmia (...) A polícia está fazendo o que prometeu”.

O destino da maioria dos cafetões estrangeiros presos era enfrentar um processo de expulsão do país baseado na Lei Adolfo Gordo. Criada em 1907 com o objetivo principal de reprimir operários estrangeiros que incitassem greves, ela também estabelecia o lenocínio como motivo para expulsão. A mudança no Código Penal em 1915, que intensificou a repressão ao tráfico e ao aliciamento de mulheres brancas, aumentou o número de cafetões a serem mandados para fora do país.

Quando eram presos, eles assumiam o papel de vítimas. Alegavam que sofriam perseguição pelo simples fato de serem estrangeiros. Ao serem presos, acusados de lenocínio, eles recorriam ao dispositivo jurídico do habeas corpus. Para consegui-lo, alegavam que residiam no país havia muito tempo e que aqui trabalhavam. Assim, valiam-se da própria Lei Adolfo Gordo, que negava a expulsão de quem já vivia aqui por mais de dois anos seguidos. Declaravam-se, então, cidadãos brasileiros.

Grande parte dos acusados, no fim do processo, não se encontrava mais nas prisões, o que nos faz pensar que já haviam sido expulsos do país. Foi o que aconteceu com cinco russos em 1917. Isaac Fiflick, Moyses Fiflick, Jacob Golberg, Samuel Revesck e Haimam Abraham foram presos e ameaçados de expulsão. Os acusados declararam-se residentes da Praia da Lapa e trabalhadores: dois ourives, dois comerciantes e um alfaiate. No fim do processo, o juiz declarou que eles não estavam presos.

Uma exceção foi o caso da costureira Nelli Vitte, em 1916, conhecida como Argentina, presa sob acusação de cafetinagem em sua casa, na Rua da Conceição. O advogado criminalista Evaristo de Morais assumiu sua defesa e conseguiu comprovar que ela vivia no Rio de Janeiro havia mais de dois anos, tinha uma profissão e nunca havia sido denunciada por lenocínio.

Estudioso das patologias sociais do Brasil, Evaristo de Morais se destacou, entre outras áreas, na defesa das prostitutas. Num ensaio que escreveu em 1921, vanguardista até para os padrões atuais, ele defendeu a regulamentação da profissão de meretriz. Propôs que a questão fosse tratada do ponto de vista da saúde pública e do direito do trabalhador, e não como um problema policial.

“Quem conhece as dificuldades da vida dos proletários; quem sabe até que ponto a grande indústria moderna, explorando e desmoralizando a mulher trabalhadora, tende a destruir os elos e freios familiares, que está a par dos ‘salários de fome’, em especial aplicados ao trabalho feminino, não estranhará também a afirmativa de Fiaux dizendo que a prostituição deve ser considerada (e respeitada, acrescenta ele) na constituição atual das nossas sociedades contemporâneas como um fenômeno econômico, como sendo o complemento do salário insuficiente ou a falta absoluta de salário”, dizia Evaristo.

Parece que as ideias do advogado não foram ouvidas com atenção. Quase 90 anos após a publicação do seu ensaio, a prostituição continua a ser abordada no Brasil principalmente sob o aspecto da moralidade pública, e não como uma atividade econômica ou uma questão social. Enquanto isso, persistem a repressão policial, a exploração de mulheres, homens e crianças e a pobreza entre a maioria dos profissionais do sexo.

Marina Maria de Lira Rocha é autora do artigo “Dos crimes contra fé pública aos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor: visões sobre a prostituição entre 1907 e 1917” (em conjunto com Carlos Augustus Jourand).


Saiba Mais - Bibliografia

KUSHNIR, Beatriz. Baile de Máscaras – Mulheres judias e prostituição: as polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MENEZES, Lená Medeiros. Os estrangeiros e o comércio do prazer nas ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

RIBEIRO, Miguel Angelo (org.). Território e prostituição na metrópole carioca. Rio de Janeiro: Editora Ecomuseu Fluminense, 2002.
Revista de História da Biblioteca Nacional

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