terça-feira, 26 de abril de 2011

A religião dos bichos

Pinturas rupestres, documentos imagéticos do Período Paleolítico

Desde a Idade da Pedra, os animais são vistos como mensageiros de seres divinos
Rodrigo Elias

Não é de hoje que os animais são domesticados. Esta prática começou no período Neolítico, há cerca de 10 mil anos, e fez parte do que os historiadores e arqueólogos costumam chamar de “Revolução Neolítica”, que viu surgir a agricultura e a vida sedentária.
Mas o início da submissão de alguns animais aos homens não estava relacionado a fatores econômicos desse período: alimentação e trabalho. É provável que tenha atendido a fins sobrenaturais. A morte ritualística, comum em várias sociedades pré-históricas, requeria uma quantidade regular de animais, só possível com o seu amansamento.

Antes da domesticação, entretanto, os homens já atribuíam significados sobrenaturais aos bichos. Pinturas rupestres datadas do Paleolítico Superior (entre 300.000 e 10.000 a.C.) na Europa retratam bisões, mamutes e renas com tal perfeição que se pode especular sobre a existência de indivíduos especializados nessa tarefa. Seus autores possivelmente eram sacerdotes afastados das tarefas de caça e coleta, o que indica a importância dada pela comunidade aos homens que faziam esses desenhos com fins mágicos. Na região da atual Alemanha, há pouco mais de 10 mil anos, comunidades de caçadores que seguiam manadas de renas sacrificavam o primeiro animal que capturavam em cada temporada, atirando em um lago seu corpo amarrado a uma pedra. Portanto, matavam animais com objetivos rituais.
Várias culturas próximas a nós, modernas ou antigas, enfatizam o caráter sagrado dos não humanos. O cristianismo, dentro da tradição judaica, submete os animais ao homem desde a Criação – Adão, ainda no Éden, deu nome a cada uma das espécies feitas por Deus, sublinhando assim o controle humano sobre as bestas. O próprio filho do Criador, encarnado para os cristãos em Jesus, vem ao mundo para morrer em uma oblação, como “Cordeiro de Deus”. Aliás, o carneiro, animal domesticado há cerca de 10 mil anos no atual Iraque, tem papel importante nas culturas do Oriente Médio.

Entre as funções atribuídas aos animais, uma das mais persistentes é a de mediação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. No Egito Antigo, Anúbis, o deus da morte, era representado por um híbrido de homem e cão. O touro Ápis, um dos animais mais reverenciados entre os egípcios, era considerado um semideus, vivia em um santuário, onde era bajulado pelos sacerdotes e enfeitado com joias. Quando morria, passava por um processo de mumificação que durava cerca de 70 dias e era acompanhado por uma multidão em prantos até o seu sepultamento. No primeiro milênio a.C., as oferendas de cães, gatos, falcões e outros animais mumificados aos deuses se tornaram muito populares no Egito, como forma de comunicação com o mundo dos mortos.

Escavações e análises recentes revelam que já havia, naquela época, quem tirasse vantagem da fé alheia. Muitos sarcófagos que deveriam conter certos animais mumificados, vendidos aos fiéis para as suas oferendas, contêm um animal mais comum e, portanto, mais barato do que o previamente acertado. Em alguns casos, somente poucos ossos ou penas no lugar do bicho combinado. Nos casos mais fraudulentos, barro envolto em bandagens. No tempo dos faraós já se comprava, literalmente, gato por lebre.

O historiador Carlo Ginzburg identificou uma tradição que remonta pelo menos à Antiguidade, que perdurou durante muitos séculos em vastas extensões da Ásia e da Europa e que emprestava aos animais esta mesma função de um ser intermediário. Homens jovens saíam às ruas vestidos de cavalos, bois e outros animais no período Clássico, esmolando de casa em casa representando os mortos, que deveriam ser saciados ou homenageados.

Ao longo da Idade Média, tradições populares ligadas a este fundo de crenças foram guiadas para o que a Igreja chamou de “sabá diabólico”, ou seja, a reunião das bruxas na qual se invocava o diabo e se blasfemava. Nessas ocasiões, segundo as narrativas moldadas pelos inquisidores, as bruxas compareciam montando lebres ou gatos, além de se transformarem em animais. O diabo aparecia quase sempre sob a forma de um bode ou um híbrido de homem e animal, com os seus característicos chifres, patas e cauda. Em uma denúncia apresentada à Inquisição portuguesa em 1758, consta que uma reunião de bruxas no Piauí contava com a presença do demônio disfarçado de cavalo, cão, mas também na sua tradicional forma caprina.

Na Inglaterra do século XVI, as feiticeiras se transformavam regularmente em gatos e corujas, considerados demoníacos, segundo a historiadora Laura de Mello e Souza. Essas transformações não eram gratuitas: serviam para disfarçar a verdadeira identidade dessas malfeitoras. Camponeses contavam histórias de animais que causavam prejuízos, como roubo de galinhas e ovos. Um gato ladrão, ferido por alguém ao ser surpreendido, se transformava, no dia seguinte, em uma velha manca.

Era comum a presença dos chamados “demônios familiares” entre as mulheres acusadas de bruxaria. Estes seres assumiam a forma de cães, gatos, ratos e até mesmo de moscas, que se alimentavam do sangue das bruxas com as quais conviviam. Em 1583, a inglesa Margerey Barnes, acusada de ser feiticeira, possuía três desses demônios: um tinha a aparência de cão, chamado Dunsott; outro, parecido com gato, chamado Russoll; e o terceiro, igual a um rato, chamado de Pygine. Nos séculos XVI e XVII, ter afeição por um animalzinho doméstico podia custar muito caro na Inglaterra.

Cães e gatos ocupavam lugar central no imaginário cristão pelo menos até o final do século XVIII. Animal maligno por excelência para o europeu medieval e moderno, o felino doméstico era considerado poderosíssimo, além de companheiro das bruxas e do próprio Belzebu. Esta crença justificava a crueldade contra os bichanos – cortar a cauda ou as orelhas, queimar o pelo ou aleijar um gato poderia atenuar seu poder malévolo. Na Bretanha, relata o historiador Robert Darnton, uma pessoa podia se tornar invisível se comesse o cérebro de um desses felinos logo depois de mortos, desde que a sinistra iguaria ainda estivesse quente.

O cão também não era muito bem-visto na tradição cristã oficial até o século XVIII. O Apocalipse considera esses animais impuros, o que reitera uma antiga visão oriental que os tomava como devoradores de carniça, conforme relata o historiador Keith Thomas. Expressões comuns na Época Moderna, como “vida de cão” e “ganancioso como um cão”, revelam esta profunda camada de significados negativos atribuídos a este que acompanha o homem há pelo menos 15 mil anos. Ser chamado de “cão” ainda hoje não é um elogio.

A situação do atual “melhor amigo do homem” se modificou muito lentamente no Ocidente cristão. A população europeia, à revelia dos ensinamentos religiosos, utilizava os cães em diversas funções, mas também convivia com eles no ambiente doméstico sem fins utilitários, ou seja, por estimação. Virtudes como coragem, gratidão e, sobretudo, fidelidade, foram definitivamente associadas a esses caninos ainda no século XVII. Na iconografia da época, o cachorro aparece em cenas familiares simbolizando a fidelidade ao seu dono. A valorização do animal acabou por se manifestar em tradições religiosas. Companheiros inseparáveis de São Lázaro e São Roque, os cães recebem um jantar em estados do Norte e do Nordeste do Brasil, segundo o folclorista Câmara Cascudo. Quando um destes santos atende às súplicas dos fiéis, curando feridas ou qualquer tipo de dermatose, são os cachorros que recebem o pagamento da promessa.

No Brasil, verdadeira encruzilhada cultural, houve convergência de tradições diversas. Às vertentes europeias combinaram-se outras, africanas e ameríndias, igualmente ricas em significados sobrenaturais atribuídos aos animais. Entre os tupis da época do Descobrimento, por exemplo, a carne da onça-pintada era consumida de modo ritual, porque acreditavam que qualidades como força e coragem poderiam ser transmitidas ao homem. As divindades iorubanas, por sua vez, são alimentadas com sangue de animais, atribuindo-se maior valor aos quadrúpedes do que aos bípedes. A carne que resulta do sacrifício é consumida pelos devotos.

Ontem e hoje, no Ocidente e no Oriente, os não humanos que nos são mais próximos foram sistematicamente valorizados ou desprezados. Seja por conta de um inexplicável poder sobre o mundo onde vivemos, das suas supostas qualidades morais ou da facilidade com que se comunicam com o além, os bichos continuam a exercer uma força estranha sobre os homens.

Rodrigo Elias é professor das Faculdades Integradas Simonsen, autor da dissertação As letras da tradição (UFF, 2004) e o humano dos cães Obelix e Eowen.


Saiba Mais - Bibliografia

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
GINZBURG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SOUZA, Laura de Mello e. A feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1987.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário