sábado, 30 de abril de 2011

A questão religiosa nas culturas mesopotâmicas

Shamash (sentado), descrito como entregando os símbolos da autoridade de Hamurabi (relevo na parte superior da estela do código de leis de Hamurabi)

[Ishtar (Venus) aids in the resurrection of Shamash (Jupiter)]

Image: Ishtar (Venus) and Ea (Sumerian Enki) aid in the resurrection of Shamash (Jupiter); ca 2308 BC.

Maria Isabelle Palma Gomes Corrêa

Em geral, as sociedades antigas dispunham de uma quantidade significativa de mitos que, em diferentes graus, influenciavam a realidade cultural desses povos. Esses mitos narravam uma criação, descrevendo como algo foi produzido ou quando começou a existir. Nesse sentido, a finalidade primeira dos mitos era a atualização periódica de experiências vividas em eras primordiais, a fim de que o presente pudesse ser revigorado, rejuvenescido de tempos em tempos. Essa é, pois, a influência que os mitos exerceram nas sociedades antigas (inclusive na Mesopotâmia): a garantia de “sucesso” sobre o presente, ao se reviver o passado. Assim, para o homem antigo, os mitos não só reconstruíam um passado heróico, primordial, como também possibilitavam que o presente se manifestasse sob a forma dos tempos heróicos dos começos.

Zigurate

Na Mesopotâmia, muitos mitos revelam uma gênese que, através das tradições orais, fundamenta o nascimento constante das coisas e do mundo. Alguns desses mitos, antes de tratarem de suas especificidades próprias, iniciam-se com o esboço de uma cosmogonia – é o caso, por exemplo, das narrativas babilônicas acerca da criação do homem, as quais são precedidas pela descrição do surgimento do cosmos. Essas histórias míticas exerceram muita influência sobre as civilizações da Mesopotâmia, a ponto de se construir um amplo aparato religioso, enquanto também se estruturavam suas organizações sociais, econômicas e políticas. Dentre as formações religiosas relacionadas ao poder dos mitos mesopotâmicos, cita-se os templos e o panteão de deuses; elementos estes, privilegiados pela centralização maior que receberam, naquilo que diz respeito à vida espiritual dos povos mesopotâmicos.

Os templos, em virtude de seu número e função, conferem, em toda a história da Mesopotâmia, um alto grau de importância. Cada cidade possuía muitos deles: Lagash, por exemplo, no início do III milênio, parece ter contado com cerca de 50 edificações sagradas. O mais importante dos templos da cidade era sempre aquele construído em homenagem à divindade protetora, o que pressupõe uma certa hierarquia entre os deuses. Geralmente, este é o templo maior e bem mais ornamentado de todos. Além disso, era também o que contava com um grupo maior de sacerdotes, de pessoal de exploração e administração. A “sociedade” interna do templo parece constituir uma casta praticamente fechada, pois existiam técnicas ou atividades (ainda que aparentemente laicas) que só poderiam ser aprendidas no templo e a partir da infância. As funções exclusivamente agrícolas eram as únicas que escapavam a essa obrigatoriedade. Todas as pessoas ligadas ao templo constituíam uma grande comunidade que, vivendo a serviço dos deuses, viviam também da renda deles, isto é, do produto de seus bens e do excedente das oferendas e sacrifícios. Apesar disso, esses membros religiosos não deixavam o convívio com a vida laica, nem entregavam ao templo suas fortunas particulares. As terras do templo eram divididas em lotes, cujas funções eram bem variadas: alguns domínios eram “arrendados”, outros, diretamente postos a render, através do gado e da mão-de-obra, geralmente escrava. Da mesma forma, o templo tinha suas oficinas, seus armazéns, seus depósitos e seu tesouro. Os templos controlavam, portanto, uma parte relativamente expressiva da vida econômica do país, principalmente porque seu poder associava-se à sua força espiritual.
deusa da fertilidade Ishtar

Quanto aos deuses propriamente ditos, as cidades da Mesopotâmia compartilhavam um mesmo panteão ou assembléia (como era chamada na Babilônia), embora os nomes divinos sofressem alterações de acordo com a região. Esse panteão (ou assembléia) era formado por seres vivos imortais e de forma humana, que, apesar de invisíveis, criaram e controlavam o cosmos, de acordo com planos bem estabelecidos e leis devidamente prescritas. Supunham que cada um destes deuses tinha a seu encargo um componente particular do universo e guiava as suas atividades com regras e regulamentos. É possível que essas idéias estivessem relacionadas à estrutura da sociedade humana, entregue ao controle e à guarda de homens, sem os quais as terras e as cidades se arruinariam. Também o cosmos e todo os seus complicados fenômenos deveriam estar sendo guardados e supervisionados por seres divinos, uma vez que o universo é muito mais extenso e complexo. Por analogia com a organização política do homem, o panteão (ou assembléia) de deuses mantinha uma hierarquia, segundo um grau de importância. Esses dois aspectos da vida na Mesopotâmia, explicitam claramente o grau de vínculo existente entre os povos antigos e suas crenças míticas (de onde decorrem os sistemas religiosos). Esses sistemas religiosos, na Mesopotâmia, detinham em seu conteúdo uma visão de mundo geral, englobando aspectos da vida que, para nós, ocidentais, são diferentes: religião, política, economia, direito e ética. Com efeito, na Antigüidade, o que dividimos, aparecia integrado num todo indivisível para os homens de então.

Projeto Chronos

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