sábado, 23 de abril de 2011

Coisa mais linda...


Em oposição ao melodramático samba-canção, a contida bossa nova reinventou o amor na música brasileira.
Paulo da Costa e Silva

Tente mostrar a um jovem a gravação da música “Sistema Nervoso” no vozeirão de Orlando Correia, sucesso nas rádios em 1953. Ou faça com que ele ouça a rancorosa “Vingança”, clássico de Lupicínio Rodrigues, também dos anos 1950. O resultado não deve variar muito. Os jovens de hoje não se identificam mais com músicas de voz impostada e cheia de vibratos, com letras exageradamente dramáticas, embaladas por plangentes violinos. Não tem jeito: essas canções nos soam “antigas”.

Nada a ver com a idade da composição. Mesmo para os jovens da época, elas já chegavam datadas ao ouvido. Motivo? A recém-nascida bossa nova. Quando ela surgiu, em 1958, quase tudo o que tocava nas rádios se tornou subitamente “velho”. Chico Buarque que o diga: “Eu era um garoto que, como os outros, amava a bossa nova e o Tom Jobim. Não gostava mais das canções desesperadas. Só queria aquela música que era toda enxuta, porque derramada para dentro”.

Terminava o reinado do samba-canção, gênero que dominava, inconteste, o cenário musical brasileiro desde a segunda metade dos anos 1940. Depois de quase uma década de melodrama, os excessos haviam virado norma, o que reduzia seu efeito. Aos poucos, aquele amor sofredor e desesperado, alimentado por sua própria impossibilidade, como o de Romeu e Julieta, era deixado de lado. As dores-de-cotovelo de compositores pioneiros como Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues, assim como as de autores da fase mais sofisticada do gênero, como Antônio Maria e mesmo Dolores Duran, perderiam espaço para o amor solar e positivo de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e companhia.

Leveza e novidade – isso era tudo o que a juventude queria naquele final dos anos 1950. JK leva a capital para Brasília. O Brasil se sagra campeão mundial de futebol na Suécia. Nasce o Cinema Novo. A economia passa por um momento de euforia. As classes médias urbanas experimentam considerável crescimento. Mudam os estilos de vida: no Rio de Janeiro, os velhos bondes, vestígios idílicos da cidade antiga, cedem espaço aos novíssimos automóveis, e em Copacabana os casarões dão lugar a altos prédios de apartamentos. A cidade volta-se para o mar, e a cultura carioca vai com ela. É “a civilização de praia”, como brincava Tom Jobim.

As canções de Tom e Vinicius também falavam de amor, mas trouxeram para o sentimento romântico uma nova inflexão. Impossível imaginar um samba-canção com o suave título de “O Amor, o Sorriso e a Flor”, nome do segundo álbum de João Gilberto. Da mesma forma, seria inconcebível uma bossa nova chamada “Caixa de Ódio” ou “Judiaria” – canções de Lupicínio Rodrigues. As letras se tornam mais leves, freqüentemente marcadas por elementos visuais luminosos, como o “Dia de luz/ Festa do sol” que encontra “O Barquinho” (Roberto Menescal/ Ronaldo Bôscoli) deslizando “no macio azul do mar”.

E a ruptura ia além do conteúdo dos versos. Em suas melodias, a bossa nova também fazia jus ao nome. Ao contrário das canções de Lupicínio Rodrigues, nas quais os sentimentos passionais se expressam em abruptos deslocamentos entre notas graves e agudas e em longas durações vocálicas, a bossa nova prima pela economia de meios. Exemplo extremo desse minimalismo é o “Samba de uma Nota Só”, em que, como o nome adianta, Tom Jobim e Newton Mendonça brincam durante quase toda a música em cima de uma nota-base: o ré.

É fácil perceber as diferenças de melodia nesses gêneros. Experimente cantarolar os primeiros versos de “Nervos de Aço”, sucesso de Lupicínio: “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher?” O canto se desloca de uma nota grave para outra muito mais aguda, e se fixa nela. Agora, faça o mesmo com a frase descritiva que inicia “Corcovado” – “Um cantinho, um violão, este amor, uma canção”. A música de Tom se desenvolve passo a passo, sem grandes variações ou saltos entre as notas. Elas são curtas e próximas.

As grandes oscilações melódicas do samba-canção exigem certo esforço do intérprete. E esse tipo de canto transmite tensão, uma sensação de busca, um sentimento de falta, um desejo de completude – características bastante conhecidas do amor romântico tradicional. São idéias estranhas à contida bossa nova, na qual não cabem arroubos sentimentais. Suas melodias exigem outra forma de cantar, mais branda e intimista, próxima da fala. É a música por excelência dos elevadores e aviões, “não apenas porque é agradável, mas porque expressa perfeitamente uma ascensão sem esforço”, escreveu o musicólogo Lorenzo Mammi.

A harmonia – arranjos e interação entre os instrumentos – também soa renovada. Um acorde, por si só, já comunica um clima, uma sensação. Na obra de Jobim, a harmonia deixa de ser mero apoio à melodia. Elas se tornam complementares. Talvez seja esta a grande descoberta do maestro: uma canção pode ser feita sobre duas ou três notas apenas, sem com isso perder seu impacto emocional.

Nos sambas-canções, a melodia reina soberana, a serviço da letra. As músicas do gênero, também chamado de “samba de fossa”, quase sempre nos contam histórias, em relatos autobiográficos. “Caminhemos”, de Herivelto Martins, é exemplar: “Não, eu não posso lembrar que te amei/ Não, eu preciso esquecer que sofri”. “Exemplo”, de Lupicínio, segue a mesma linha: “Dez anos estás a meu lado/ Dez anos vivemos brigando/ Mas quando eu chego cansado/ Teus braços estão me esperando”.

É claro que a música de Jobim também tem belas melodias. Mas, no lugar da narrativa, há um investimento na sensação. As letras da bossa nova dificilmente narram histórias – preferem descrever situações, atmosferas, paisagens. São como pinturas ou fotografias: “Eu, você, nós dois/ Sozinhos neste bar à meia-luz/ E uma grande lua saiu do mar (...) / O sol já vai caindo / E o seu olhar / Parece acompanhar a cor do mar” (“Fotografia”). A bossa nova rejeita o tom confessional das narrativas românticas, com seus fantasmas do passado e suas grandes profundidades sentimentais. Ao se ater à superfície das imagens, valoriza o instante e nunca retorna ao passado.

Essas opções não eram gratuitas. Entre as décadas de 1950 e 1960, nascia no país uma nova identidade amorosa. Num tempo de revolução comportamental, um novo tipo de mulher – que estuda, trabalha, vota, milita, toma pílula anticoncepcional e pode até se divorciar – ganha feições diabólicas no samba-canção. Ela é sempre a traidora volúvel, pérfida, responsável pelo ocaso masculino. Mais afinada com essas transformações, a bossa de um Vinicius de Moraes trata de redimir a mulher, em clássicos como “Garota de Ipanema”, “A Felicidade” e “Ela é Carioca”.

As melodias de Tom, entre pequenos acidentes e deslizamentos de semitom, celebram a mobilidade e o descompromisso dos afetos. Mesmo os fracassos amorosos são perpassados por uma aura de afetividade. Ressentimentos, ódios e rancores não costumam freqüentar os corações da bossa nova. O rompimento amoroso não redunda em desespero, bebedeiras e suicídios porque traz consigo, junto com a dor, novas possibilidades. A melodia pode, agora, ser re-harmonizada infinitamente: o passado já não tem o mesmo peso. O homem abandonado não precisa perder a cabeça e maldizer a mulher. Afinal, seu amor pode até retornar: “Mas, se ela voltar/ que coisa linda/ que coisa louca”, imagina o hino “Chega de Saudade”.

Mas se não é triste como as fossas de outrora, não se pode negar que a bossa nova carrega certa melancolia. É a expressão contraditória de uma geração dividida entre a saudade do sentimento e a sedução da sensação. Suspensa entre um antigo modo de sociabilidade que ruía e uma nova ordem que se anunciava, mas que ainda não se definira com muita clareza. O amor surge como antídoto para essa insegurança, como uma identidade de resistência – e por isso mesmo jamais pode resvalar para desejos de vingança ou traição. Como prega o título da canção de Tom e Vinicius, a bossa nova deixou “o amor em paz”.

Paulo da Costa e Silva é músico e jornalista, autor da dissertação “Contra os Excessos: Contenção, Equilíbrio e Amor na Bossa Nova” (PUC-Rio, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MAMMI, Lorenzo. “João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova”. Novos Estudos (Cebrap), nº 34, nov. 1992.

NAVES, Santuza. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

TATIZ, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

Saiba Mais - Filmes:

“Vinicius” (Miguel Faria Júnior, 2005)
“Coisa mais linda: histórias e casos da bossa nova” (Paulo Thiago, 2005)
“Os desafinados” (Walter Lima Jr., 2008) Revista de História da Biblioteca Nacional

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