domingo, 20 de março de 2011

Teologia política no séc. IV d.C.: a relevância da Teurgia em Juliano, o Imperador


Daniel de Figueiredo

Sobre o autor[1]

Introdução

“Os bois brancos saúdam ao César Marco.

Se vencer de novo, estamos perdidos.”

(AMIANO, Historia, 25.4.16).

Nesta passagem de sua Res Gestae, Amiano Marcelino, considerado o maior historiador romano da Antigüidade, relata o gosto que o Imperador Juliano (361-363) nutria pelas práticas sacrificiais. Ao compará-lo ao Imperador Marco Aurélio (161-180), Amiano, de forma anedótica, sugere que se caso Juliano houvesse voltado vitorioso da batalha contras os persas, acontecimento que lhe custou a vida, faltariam bois para satisfazer a sua superstição.

Para o homem romano, manter-se fiel a sua religião era manter a sua confiança nos deuses. As classes cultas, como se verificou em ambos os imperadores-filósofos, diferenciavam-se das crenças populares através da a a a a a a a Paidéia[2], não obstante, conservavam as práticas rituais que a religião romana prescrevia. Esta religião se revelava pelo ritual do sacrifício. Não se fazia necessário dizer que se acreditava nos deuses, pois através da prática sacrificial ficava implícita a devoção neles.[3]

Os governos do Imperador Constantino e dos seus filhos, que antecederam ao principado de Juliano, foi um período marcado pelo desestímulo e até mesmo a proibição de tais rituais[4]. Quando Juliano é alçado ao posto de dirigente único do Império, uma das primeiras atitudes dele seria retomar tais práticas publicamente, visto que, segundo Amiano[5], desde criança ele se mantivera inclinado ao culto dos deuses.

A corrente filosófica neoplatônica, que juntamente com o cristianismo dominou a cena religiosa do final da Antigüidade, a qual Juliano era adepto, havia, já no século IV d.C., incorporado diversos elementos místicos orientais. Como um seguidor do filósofo Jâmblico, Juliano também era adepto dateurgia, cujas práticas postulavam, em grande medida, o uso dos ritos sacrificiais como forma de aproximação com o divino. Amiano Marcelino[6] chega mesmo a nos relatar os excessos de Juliano, cujos gastos despendidos com tais cerimônias eram enormes e nunca vistos no passado.

Assim, pretendemos através deste artigo analisar e explicar em que medida a adesão de Juliano a essa forma de concepção filosófica, o neoplatonismo associado às práticas teúrgicas, teria influenciado na maneira como ele a metamorfoseou em uma teologia política[7] em prol de balizar as suas ações como governante. Cabe ressaltar que este momento seria marcado pela apropriação de diversos elementos da Paidéia helênica pelos cristãos como forma de afirmar o seu discurso dentro do Império.

Tal perspectiva de análise se ampara na constatação da estreita relação que o poder político mantém com outros domínios da prática social[8]. O que observamos na Antigüidade Tardia romana, matéria do nosso campo de estudo, é uma interpenetração constante entre o político e o religioso, como se ações desenvolvidas nas esferas material e sensível reverberassem entre si.

Neste sentido é que buscaremos direcionar o nosso entendimento sobre as ações do imperador Juliano não como as de alguém que estivesse deslocado do seu tempo, de um primeiro renascentista, um romântico visionário ou um Dom Quixote lutando contra a “ordem natural das coisas”, maneiras como costumeiramente ele foi rotulado, mas como ações de alguém que agia em congruência com a sua realidade[9], num mundo que passava por intensas transformações em vários aspectos e que legaria grande parte das suas formulações culturais para os nossos dias.

Algumas considerações sobre o pensamento filosófico na Antigüidade Tardia.

A atuação do Imperador Juliano tem as suas raízes marcadas na sua própria formação clássica. Ela irá ocorrer dentro do fluído ambiente histórico-religioso que permeou as relações entre as correntes cristãs e não-cristãs dentro do Império romano tardio. Para entendermos a importância que o homem neoplatônico tardo-antigo dispensava aos rituais que envolviam a sua religião, buscaremos traçar uma breve análise de como o pensamento helênico se configurava no século IV d.C., a fim de demarcamos neste espaço as características apresentadas nas formulações ritualísticas presentes na teurgia.

Até o período helenístico e o princípio da conquista romana do mundo grego, as instituições filosóficas concentravam-se em sua maioria em Atenas. Como resultado do processo de expansão imperialista, primeiramente no período helenístico e posteriormente, a partir do séc. I a.C. com as conquistas romanas, o que se verifica é uma dispersão do ensino filosófico para diferentes cidades desses Impérios. As tendências doutrinais, neste momento, vinculavam-se a quatro grandes escolas: o platonismo, o aristotelismo, o estoicismo e o epicurismo. O ápice desse movimento irá se consagrar quando, em 176 d.C., o imperador Marco Aurélio funda quatro cátedras imperiais, nas quais seriam ministradas essas disciplinas. À parte isso, muitas escolas também seriam patrocinadas por professores particulares de filosofia em diversas cidades do Império.

Mais adiante, o que irá se verificar a partir dos séculos III e IV d.C. é um acentuado declínio dessas duas últimas correntes e o aparecimento do neoplatonismo que, de certa forma, correspondeu a uma conjugação de princípios aristotélicos e platônicos. A prática filosófica estava atrelada a um modo de vida, e o modo de vida que essa nova escola viria a adotar, cujos representantes maiores seriam Plotino e seu discípulo Porfírio, consistia nas máximas “viver segundo o espírito”, como na escola de Aristóteles, e “quem contempla deve se tornar semelhante ao que contempla”[10], conforme Platão. Também neste contexto assinalou-se o renascimento da tradição pitagórica, cujo gênero de vida prescrevia interditos alimentares, tabus, conselhos morais, definições teóricas e práticas rituais.[11]

Em síntese, esses princípios estavam dispostos em tratados como as Enéadas, de Plotino e Da abstinência, de Porfírio, que incorporando elementos dos pensamentos de Platão, Pitágoras e Aristóteles propuseram uma doutrina que prescrevia que a vida contemplativa implicava em uma vida ascética. Podemos constatar através de algumas passagens das Enéadas[12] que a união mística para Plotino é atingida não por meio de ritual ou de ações prescritas, mas através da disciplina interna da mente. Já seu discípulo Porfírio, embora se mantivesse fiel aos ensinamentos do seu mestre, possuía certa inclinação pela consulta aos oráculos. Foi através dele que os Oráculos caldaicos seriam retirados do ostracismo. Ele faria, também, algumas concessões ao uso da teurgia, mas advertindo que tal prática era perigosa e passível de bons e maus usos, negando, inclusive, que ela pudesse realizar um retorno da alma ao divino[13].

Quando analisado sob a ótica da longa duração, consideramos que a descentralização das escolas filosóficas rumo ao Oriente, aliado ao progressivo processo de abandono das doutrinas helenísticas de cunho racionalistas pelos filósofos da Antigüidade Tardia, como fatores que contribuíram para a adoção de elementos irracionais pelo neoplatonismo. Podemos observar, de forma geral, que as interferências diretas de agentes espirituais na vida dos indivíduos propiciou a mudança na concepção grega segundo a qual o exercício da razão seria capaz de penetrar na essência das coisas[14]. Dentre outras causas que propiciaram tais transformações, algumas correntes historiográficas das últimas décadas do século passado atribuem como relevantes as incertezas produzidas nos indivíduos pela crise econômica, política e social que o Império se vira mergulhado no século III d. C. Hidalgo de la Vega[15] conclui que esse fenômeno progressivo do pensamento filosófico e religioso aliado ao desenvolvimento social no período é que teria levado ao triunfo do monoteísmo cristão sobre o politeísmo pagão. No que pese a relevância de tais interpretações para entendimento do período, somos levados a crer que a preponderância do discurso cristão se deveu pela apropriação de elementos da retórica helênica[16], tendo em vista a estreita aproximação entre as formas de pensar do homem tardo-antigo.

Nesta conjuntura é que irá ocorrer a transformação dos filósofos neoplatônicos, a partir de Jâmblico, em seres divinos com poderes taumatúrgicos propiciados pela prática da teurgia, que lhes permitia deixar este mundo para ascender ao Uno. Embora achemos de difícil precisão, o criador da teurgia, segundo afirma Eric R. Dodds[17], teria sido um mago que viveu nos tempos do Imperador Marco Aurélio, de nome Juliano, filho de um filósofo caldeu de mesmo nome e autor de uma obra sobre daemons[18]. Segundo sugere esse autor, Juliano, o filho, teria erigido suas doutrinas a partir dos Oráculos Caldeus, que foram escritos, provavelmente, e apresentados como uma revelação no século II d.C. Os neoplatônicos do período pós-plotiniano iriam considerar esses escritos como uma Escritura sagrada.

Para os neoplatônicos, o discurso filosófico estaria estreitamente ligado a práticas concretas e a um modo de vida. Mas, para Plotino, a vida segundo o espírito consistia em uma vida filosófica, isto é, na ascese e na experiência moral e mística. Para os neoplatônicos posteriores isso se torna muito diferente. Eles conservavam, sem dúvida, a prática filosófica da ascese e da virtude, mas consideravam igualmente importante ou mesmo, aparentemente no caso de Jâmblico mais importante ainda, o que eles denominaram prática teúrgica.

A palavra teurgia que aparece apenas no século II d.C.; parece ter sido criada pelo autor ou pelos autores dos Oráculos Caldeus, para designar ritos capazes de purificar a alma e seu “veículo imediato”, o corpo astral, a fim de permitir-lhes contemplar os deuses. Esses ritos comportavam abluções, sacrifícios e invocações que utilizavam palavras rituais freqüentemente incompreensíveis.

Aqueles autores acreditavam que o que diferenciava a teurgia da magia é que aquela não pretendia forçar os deuses, mas, ao contrário, submeter-se à vontade deles, efetuando ritos que supostamente eles próprios haviam fixados. Eram os deuses que tomavam a iniciativa e escolhiam os signos materiais necessários para atraí-los, permitindo, assim, o contato com o divino e a visão das suas formas. Pode-se explicar essa atitude pela representação que os neoplatônicos posteriores faziam do papel do homem em relação ao divino. Enquanto Plotino considerava que a alma humana estaria sempre em contato inconsciente com o Intelecto e o mundo espiritual, os neoplatônicos posteriores consideravam que a alma por ter-se encarnado no corpo humano teria a necessidade de passar por ritos materiais e sensíveis para poder voltar ao divino. Aqui podemos vislumbrar um traço análogo ao do cristianismo, segundo o qual é necessário ao homem, corrompido pelo pecado original, a mediação do Lógosencarnado e dos signos sensíveis, os sacramentos, para poder entrar em contato com Deus. Para os dois movimentos espirituais que dominaram a Antigüidade Tardia e que aparentemente opunham-se um ao outro, o neoplatonismo e o cristianismo, o homem não pode salvar-se por suas próprias forças. Ele tem necessidade da iniciativa divina[19].

As crenças e práticas comumente agrupadas como magia, feitiçaria, bruxaria, sortilégios são fenômenos universais na medida em que expressam a vontade humana de transcender o espaço da experiência cotidiana a fim de alcançar outras dimensões através de recursos sobrenaturais. Trata-se de instituições enraizadas na vida das sociedades humanas, não constituindo nada de excepcional. Segundo Marcel Mauss[20], “as noções religiosas, por serem objeto de crenças, existem; existem objetivamente, como fatos sociais”. Observa-se que tais práticas, através de palavras e gestos, permitem aos seus portadores intervir diretamente no curso dos acontecimentos ou antecipá-los mediante atos premonitórios[21].

Jâmblico, como discípulo de Plotino, postula uma explicação científica do universo tipicamente platônica. Tratava-se de uma teoria mística do ser supremo e das suas emanações. Ele enfatizaria a fato de que o teurgista pode, em seu grau mais elevado, ascender para a ordem dos anjos através da graça de deus, podendo, inclusive, participar do eterno processo de criação do cosmos. Contudo ele nunca poderia ser considerado acima e além do status dos deuses por natureza. Nisso resulta a insistente necessidade de Jâmblico de recorrer aos milagres e ao supernatural.[22]

Em seu tratado De mysteriis, Jâmblico afirmaria que apenas a atividade intelectual por ela própria seria insuficiente para o devoto estabelecer a união com o divino. Para ele, a fonte dessa união com os deuses é um esforço intelectual não humano e o culto ritual seria essencial até para o filósofo. Aceitava, por exemplo, que diferentes espécies de sacrifícios seriam apropriados a diferentes graus de divindades. Rejeitava, também, a noção de que os sacrifícios materiais, especialmente os de sangue, estariam destinados apenas a rebaixar os deuses[23]. Assim ele se expressa:

Conhecimento intelectual não conecta teurgistas com os deuses [...] ao invés disso, ele é a perfeita realização dos atos inefáveis, religiosamente realizados e, além de todo entendimento, ele é o poder dos símbolos inefáveis compreendidos apenas pelos deuses que estabelecem a união teúrgica [...] De fato, até se nós não estamos pensando, os símbolos, por si mesmos, pela sua própria vontade, realizam seu próprio trabalho; e o poder inefável dos deuses, para quem esses símbolos elevam-nos, reconhece por eles próprios suas imagens. E não são despertados, por isso, pelo nosso pensamento. (IAMBLICHUS, De mysteriis, II, 11).

Ao nosso critério, julgamos essas considerações relevantes por estarem presentes no pensamento do Juliano. Podemos perceber a forma efetiva como ele iria imprimir a sua marca e a influência do pensamento de Jâmblico na condução política do Império. Em resumo, para o helenismo, de Sócrates a Jâmblico, a verdade está no homem; se ele a esqueceu, pode reencontrá-la pelas suas próprias forças e conseguir identificar-se com ela ao contemplá-la[24]. Esse processo, em seu conjunto, estará expresso nos valores que o Imperador Juliano é representante do patrimônio antigo clássico aliado aos pensamentos de Plotino e seus seguidores.

As finalidades da prática teúrgica em Juliano.

Porém, no entanto, entre todos os príncipes não faltou um, sendo eu criança, segundo recordo, caudilho valente na guerra, bom legislador, fortíssimo por sua palavra e por seu poder, amante da pátria, porém despreocupado em relação à verdadeira religião; devoto de trezentos mil deuses, pérfido para com Deus, benemérito para com a cidade. (Prudêncio, Lib. Apotheosis, 449-454)[25]

A citação acima, em referência a Juliano, é de autoria do escritor cristão hispânico Prudêncio, nascido no ano de 344. Conquanto reprove as atitudes do Imperador como homem religioso, não deixa de destacar as suas virtudes como homem de governo. Mas a memória que ficaria mais comumente registrada de Juliano seria aquela construída pelos polemistas cristãos empenhados que estavam na construção de uma hierarquia religiosa que em certa medida, viesse a servir de suporte político para o Império romano. Historiadores eclesiásticos da Antigüidade Tardia como Sócrates, Sozomeno, Filostórgio e Teodoreto seriam hostis a Juliano. Mas dentre aqueles lhe desferiria ataques mais contundentes destacamos Gregório de Nazianzo, que além de outros adjetivos assim o qualificava:

“[...] o dragão, o apóstata, o espírito altivo, o Assírio, o adversário comum e o inimigo de todos, aquele que encheu a terra com sua fúria e ameaças, que proferiu e cometeu contra o Altíssimo inumeráveis iniqüidades.” (GREGORY OF NAZIANZUS, Against Julian, 4, 1).

Essa seria a imagem que seria colada à personalidade do príncipe que perpassou pela história, com raras exceções, identificando-o como “o apóstata”, anacrônico, ursupador e perseguidor dos cristãos. Tal êxito dessa construção pode ser atestado até os dias atuais, onde, não raras vezes, nos deparamos com historiados a qualificar a sua personalidade de forma muito contraditória: confuso, fanático, visionário, raivoso, anormal, falante, isolado, ambicioso, dissimulado, usurpador, astuto, ingênuo, ingrato, calculista, simples, austero e pragmático[26]. Glen W. Bowersock chega a compará-lo a ativistas da atualidade como Lênin e Mao-Tsé-Tung, bem como nos leva a perceber Juliano como um puritano e maniqueísta.

Contudo, estudos mais recentes acerca das atitudes políticas e religiosas de Juliano têm sido conduzidos de forma a ressaltar a sua atuação como governante de um Império que passava por intensas transformações políticas, sociais, econômicas e culturais. Constatamos que a carga negativa construída pelos opositores de Juliano recai sobre a sua memória em vista do real perigo que ele teria representado para a afirmação do discurso cristão dentro do Império romano. É certo que ele nutria uma grande aversão pela estrutura da Igreja que se formava no seu tempo. Além de Juliano considerar a filosofia cristã carente de atrativos, a Igreja nascente estava repleta de controvérsias e discussões dogmáticas intermináveis, lutas fatricidas que, em vista dos nobres ensinamentos do Evangelho, talvez só se justificavam pela busca por poder temporal. Como Amiano Marcelino[27] sugeriria, tais divergências seriam habilmente manipuladas por Juliano a favor da sua causa de promover o helenismo. Exemplo disso é o indulto oferecido pelo Imperador aos cristãos ortodoxos desterrados por Constâncio II, seu antecessor.

Nosso propósito aqui é analisar como Juliano aliou o seu senso político e a sua filosofia numa teologia política em prol da administração de um Estado imerso em grandes transformações. Desta forma, entendemos que desqualificar as concepções filosóficas e religiosas de Juliano na Antigüidade fazia parte do jogo político em curso. Na atualidade, tal atitude denotaria um desconhecimento do seu contexto histórico e de que “o homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, [...] [ele] acredita sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se manifesta, santificando-o e tornando-o real”.[28]

Desta forma, não entendemos suas atitudes como contraditórias ou eivadas de anacronismo. Como um todo orgânico, o seu pensamento seria colocado em prática na condução do seu governo em consonância com a forma de pensar de um homem do seu tempo repleto de idéias, ora conservadoras ora revolucionárias. Devemos destacar que a imissão do sagrado nas formas de conduzir as questões do Estado não foi um atributo específico do breve principado de Juliano (dezembro de 361 a junho de 363). Em larga medida a esfera transcendental foi empregada na formulação do conceito de realeza na Antigüidade (Basiléia), tendo, por exemplo, o Imperador cristão ariano Constâncio II, primo e antecessor de Juliano, usado desse expediente para legitimar a sua autoridade frente as freqüentes usurpações de poder que tiveram curso no Império romano a partir do século III d.C.[29]

O neoplatonismo de Juliano, como destacamos anteriormente, já havia passado por grandes alterações a partir de Jâmblico, a quem ele iguala ao gênio de Platão: “posterior no tempo, porém não em gênio, [...] mestre na verdade divina, o primeiro depois de Pitágoras e Platão”.[30] Influenciado pelos cultos orientais e tendências místicas, ele buscaria uma explicação científica do universo tipicamente platônica e agregada de elementos sobrenaturais. Expressando-se nos seguintes termos: “a verdade é una e una é a filosofia,”[31] Juliano buscava estabelecer uma relação harmônica entre cultura religiosa e cultura filosófica.[32]

Percebemos na obra de Juliano, notadamente em seus discursosHino a Hélios rei e Sobre a mãe dos deuses, uma forma literária marcada pelo gosto da alegoria e pelos símbolos que representavam o mito. Através da reflexão neoplatônica e dos seus sentimentos religiosos, ele via na explicação do mito uma forma de aproximar-se dos desígnios das divindades. Por isso, ele constrói o seu projeto político como uma predestinação divina. Assim, ele irá incentivar os cultos tradicionais pagãos, provavelmente um tanto quanto esmaecidos pela proibição dos imperadores cristãos, e as práticas teúrgicas caldéias como forma de atuação política, ou seja, constituindo uma teologia política que sustentaria as suas ações como governante. Com esse propósito, Juliano buscava legitimar-se perante os deuses e as classes cultas e ricas da sociedade.

Nos anos de sua juventude, numa passagem pela cidade de Pérgamo, conforme nos relata Eunápio[33], Juliano teria ouvido de Eusébio, um discípulo de Edésio da Capadócia, que por sua vez teria sido um dos mais ilustres seguidores de Jâmblico, uma demonstração da sua prática teúrgica. Ele havia assistido ao teúrgo Máximo de Éfeso fazer uma estátua da deusa Hécate sorrir. Eusébio aconselharia Juliano a não se maravilhar com nada dessas coisas, visto que o mais importante, para ele, seria a purificação por meio da razão. No entanto, Juliano ao ouvir este conselho teria respondido a Eusébio nos seguintes termos: “Adeus, e tu fique com os teus livros, porque a mim me há revelado o que andava buscando”.

Após esse fantástico acontecimento, Juliano manteria um estreito relacionamento com Máximo. Ele esteve com o César durante a sua permanência na Gália e posteriormente integraria a corte de Juliano quando feito Augusto. Tal era a afinidade entre ambos que Máximo, juntamente com Oribásio, médico e amigo de Juliano, estaria presente na ocasião que o Imperador fora ferido de morte na batalha contra os persas. Muitos atribuem a Máximo o gosto de Juliano pelo misticismo e pela prática da teurgia que englobava rituais de sacrifícios variados. Para Juliano, a filosofia enriquecida pela teurgia seria o veículo para se chegar a conhecer o mito, pois no sentido oculto deles, dado a conhecer apenas aos iniciados, é que estaria a verdade dos deuses. Ao promover essa união entre a religião e a filosofia ele entendia que os mitos seriam tão necessários para a revelação dos deuses como o emprego dos ritos mágicos seriam para o processo de iniciação.

Juliano irá elaborar uma concepção de realeza teocrática como produto da síntese de sua experiência pessoal místico-religiosa e da reflexão neoplatônica. Ele possuía a convicção que o seu Imperium[34] havia sido decretado pelos deuses, em especial Hélios-Mitra, com a finalidade de recompor os erros dos seus antepassados. Sua missão seria a de reorganizar e revitalizar os valores próprios do helenismo. Sendo seu projeto político predestinado por eleição divina, os sonhos e sinais que ele recebia dos deuses através do mito tinham por finalidade orientá-lo na sua missão de governar o mundo para salvar a humanidade[35].

Segundo Hidalgo de la Vega[36], Juliano justifica a sua ascensão ao poder como instigado pelos deuses a sair da vida contemplativa e exercer o poder político. A sua teoria política se expressa numa cosmogonia que coloca ao Império romano não só um conceito político, mas também religioso, ou seja, uma réplica da organização do céu, reafirmando o caráter divino do seu governante (basileus). O soberano deveria legislar e governar segundo a parte divina do seu ser.

Dessa maneira é que devemos procurar analisar a importância que Juliano dava às práticas teúrgicas como forma de aproximação dos deuses no sentido de guiar a sua conduta pela razão numa legalidade que é requerida e sancionada por eles. Se os deuses expressavam a sua verdade pelos intrincáveis caminhos do mito, as práticas teúrgicas serviriam como suporte para o conhecimento dessa verdade a ser colocada em prática na condução dos destinos do Império.

Como argumentos similares aos de Jâmblico, Juliano acreditava que os deuses haviam depositado traços ou símbolos que eles próprios criaram no mito, nos objetos materiais e no sacrifício animal. Inclusive compartilhava a visão de que diferentes espécies de sacrifícios são apropriadas a diferentes graus de divindade.[37] Jâmblico também afirmava que as “preces sem sacrifício são apenas palavras, enquanto que preces com sacrifícios são palavras animadas, a palavra dando força para a vida e a vida animando para a palavra”.[38]

A excessiva superstição e a paixão pelos sacrifícios por parte de Juliano seriam alvos de crítica até do seu admirador Amiano Marcelino: “Ele [Juliano] foi também chamado por muitos de açougueiro ao invéz de alto sacerdote, em alusão as suas muitas oferendas”. [39] Particularmente condenada pelos cristãos, os rituais de sacrifício de Juliano seriam constantemente satirizados e depreciado pelos historiadores da Igreja:

Com efeito, primeiro ele [Juliano] começa por contaminar com sacrifícios impuros as fontes da cidade de Daphne, para que cada um, ao desfrutar do líquido, participasse da impureza [...] E logo encheu também de impurezas o que estava exposto na agora, pois se regaram em volta os pães, as carnes, as frutas, as verduras e todos os alimentos (Theodoret of Cyrrhus, Church History, 3.11).

Agora Juliano era um constante visitante de Daphne, suas mãos cheias de oferendas e acompanhado por uma multidão de vítimas sacrificiais: e depois de tê-las sacrificado num horrível banho de sangue ele importunaria o deus [Apolo] exigindo respostas dos oráculos para os problemas que iam na sua mente. (JOHN CHRYSOSTOM, Homily on St. Babylas).

Em seu breve reinado, Juliano dedicaria grandes esforços para reconstruir os altares e os templos pagãos que foram destruídos ou absorvidos pela estrutura da Igreja em formação. Tal investimento era acrescido da ânsia por reviver antigas cerimônias e até mesmo inovar quando se tratava de fazer frente ao avanço do cristianismo. Mas acreditamos que, perspicazmente, ele teria também focado os sacrifícios de sangue no seu intento de privilegiar os cultos da sua religião, não apenas por uma questão de piedade para com os deuses. Concordamos com Bradbury[40] que também motivações políticas conduziram as atitudes de Juliano. Para este autor, no ambiente religioso do quarto século, sacrifício de sangue era uma confrontação. Tratava-se de um elemento dos cultos tradicionais que absolutamente os cristãos não poderiam suportar. Parece que tais práticas relembravam-nos das perseguições outrora infligidas a seus antepassados:

No que [...] nem Diocleciano [...] nem [...] Maximiano planejaram jamais, nem Maximiano [...] isso o pensou aquele [Juliano] [...] havia de privar aos cristãos de toda liberdade da palavra, apartando-os dos recrutamentos, das assembléias e celebrações políticas e dos tribunais; com efeito, não se podia utilizar quem não sacrificasse nos altares diante das vítimas [...] E o sábio raciocínio desse príncipe assassino e legislador ilegal [...] era que “é próprio da nossa lei não participar [os cristãos] nem no combate, nem nos juízos, nem possuir nenhuma magistratura, nem considerar nada como próprio, senão viver em outro lugar, e largar as coisas daqui como se não existissem. (GREGORY OF NAZIANZUS, Against Julian, Or. 4, 96-97).

Sobre isso, vejamos a opinião do retórico neoplatônico Libânio, que em carta enviada a Juliano, quando este ainda era César na Gália compartilhava das suas mesmas opiniões. Isso demonstra que Juliano agia em consonância com a forma de pensar da elite pagã da sua época:

Sabendo, pois, com razão que é necessário que cada soldado adore aqueles deuses de que necessitam ao combater, que isto é o fundamental do equipamento e não o escudo, nem a armadura, nem a lança, e no diálogo com os deuses, que tu [Juliano] hás conseguido, armaste tuas tropas com a compreensão dos seres superiores, e voluntariamente correram até os altares competindo nas oferendas de incenso (LIBANIUS, Or. XII, 90).

Juliano absteve-se de infligir a coerção física aos cristãos, como fizera o seu antecessor Maximino Daia[41], ou mesmo exigido deles a prática dos sacrifícios de sangue. Mas, em consonância com a sua teologia política, interpôs barreiras ao acesso à administração e aos serviços do Estado daqueles que não provassem, através dos rituais que a religião romana prescrevia, estarem aptos a comungar com os deuses o seu ideal de bom governo. Esta postura está em consonância àquela lei em que ele proibia os professores cristãos de lecionar os textos clássicos, pois entendia que não se devia ensinar aquilo em que não se acredita.

Contudo, a sua constante presença nos altares, o seu hábito de presidir audiências em santuários e a devoção ao culto das estátuas seria tomado pelos cristãos como uma politização dos assuntos religiosos. Essa clara audácia foi tomada como um desafio por eles. A batalha travada no campo da retórica, que habilmente ambas as partes souberam manipular foi desfavorável a Juliano, pela sua morte prematura. Desses fatos, podemos apreender o ódio recorrente que os historiadores da Igreja se dedicaram a construir uma imagem de Juliano, que para muitos ainda perdura até os nossos dias, como “o Apóstata perseguidor de cristãos”.

Conclusão

Os sacrifícios de sangue constituíam um ritual central para a maioria das religiões pré-cristãs do Mediterrâneo, e o seu desaparecimento é um dos mais significantes desenvolvimentos da religião na Antigüidade Tardia[42]. Theodosius I (379-395) ao declarar o cristianismo como religião de Estado, prescreveria o uso das práticas teúrgicas[43]. Contudo, elas permaneceriam enraizadas entre a população não cristã, como mostra a preocupação do imperador Justiniano em proibi-las durante o seu governo.

A difusão dos cultos orientais e das religiões dos mistérios no Império romano, e o sincretismo religioso que daí resultou, favoreceu o conhecimento das religiões exóticas e as investigações sobre as antiguidades religiosas. O Ocidente cristianizado integraria ao seu cristianismo uma grande parte de sua herança religiosa pré-cristã, de uma antiguidade imemorial.[44] Dessa forma, transformado e como que sublimado, o sacrifício conservou-se na teologia cristã. Hoje, os sacerdotes católicos buscam, pelo mesmo procedimento ritual, os efeitos buscados pelos mais remotos antepassados: o ritmo alternado da expiação e da comunhão.[45]

A própria memória do Imperador Juliano seria sacrificada pelos historiadores da Igreja. Em larga medida e em diversos períodos da história ele seria o “bode expiatório” que serviria para justificar e legitimar posições políticas das classes dominantes do momento.

Podemos afirmar que na história do mundo Ocidental mal terá havido algum período que haja legado aos séculos seguintes instituições tão perduráveis como os Códigos do Direito Romano, a estrutura hierárquica da Igreja Católica e o monaquismo. Nesse período, o pensamento político clássico seria remodelado e adaptado por novas concepções ideológicas relacionadas ao cristianismo.

Buscamos delimitar esse período, não como o fim do mundo clássico, e sim como uma época de transição, onde uma imensa diversidade cultural foi amalgamada gerando novas formas de sociabilidade. Podemos observar, neste período, que tanto as continuidades quanto as rupturas variaram de acordo com o ambientes e temporalidades distintas.

Verificamos que a polaridade das opiniões acerca de Juliano ainda continua a dividir os historiadores, da mesma maneira como dividiu os seus contemporâneos. Naquela época, certamente, pelos interesses políticos que estavam em jogo, hoje, provavelmente, devido a herança de uma documentação rica, mas também contraditória em relação as suas ações. Juliano nos mostra, e isso ficou registrado pelos relatos que dispomos, a figura de um inovador. Suas ações administrativas para o Império, sua noção de realeza e seu apego à lei são prova disso. Ao mesmo tempo, ele travou uma árdua luta para manter as tradições gregas e romanas, o que parece caracterizá-lo como um homem dividido entre dois mundos. Seu amor ao helenismo fazia-o convicto de que os deuses estavam ao seu lado para perpetuar a glória do Império Romano.

Mas o mundo que Juliano almejava manter passava por intensas transformações. O seu curto reinado talvez seja a fonte do fascínio despertado por ele nos dias atuais. Tudo nos leva a crer que se as medidas tomadas por ele tivessem tido tempo de ser implementadas, em vista do seu diagnóstico dos problemas que afligiam o Império, um grande entrave teria se interposto à afirmação do discurso cristão. Juliano estava pleno das dimensões existenciais do homem religioso das sociedades antigas, por isso torna-se fácil compreender a sua profunda vontade de ser, de tomar parte da realidade e revestir-se de poder.

Agradecimentos:

Agradeço à Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho, do Departamento de História da FHDSS-UNESP/Franca, pela orientação na produção deste artigo.

Bibliografia

Fontes

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[1] Graduado em História (Bacharelado e Licenciatura) pela FHDSS/UNESP – Campus Franca (SP)

[2] Paidéia: Para Werner Jaeger (2003, p. 1), Paidéia seria um conceito difícil de definir, assim como outros de grande amplitude, como filosofia e cultura. O seu significado só se revelaria plenamente através da leitura da sua história. Na tentativa de definir esse termo grego antigo, não se pode evitar o uso de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação. Contudo, nenhum desses conceitos pode ser empregado de forma isolada para definir algo que inclui todos eles ao mesmo tempo.

[3] VEYNE, 2009, p. 221-225.

[4] BRADBURY, 1995, p. 331.

[5]AMIANO, , 22.5.1.

[6] AMIANO, Historia, 22.12.7.

[7] Julgamos adequada a utilização do termo “teologia política” visto que, em seus discursos, Juliano desenvolve uma cosmogonia em que será racionalizada como fundamento da sua teoria política de realeza (Basiléia).

[8] COUTROT, 2003, p. 357.

[9] ELIAS, 1994, p.13.

[10] Timeu, 90 a.

[11] HADOT, 2004, p. 213-247.

[12] PLOTINO, Eneadas, I, 6-9).

[13] DODDS, 1947, p. 57-60.

[14] SILVA, 2003, p. 20.

[15] HIDALGO DE LA VEGA, 1995, p. 224-225.

[16] CAMERON, 1991, p. 121-123.

[17] DODDS, 1947, p. 56.

[18] Daemôn pode ser traduzido de diversas maneiras: gênio, espírito, espírito celeste, demônio. Nesta última acepção não deve ser confundido com o termodaimónion traduzido do grego na Bíblia, que tem significado oposto àquele da tradição platônica e neoplatônica.

[19] HADOT, 2004, p. 243-247.

[20] MAUSS; HUBERT, 2005, p. 107.

[21] SILVA, 2003, p. 161.

[22] CLARKE, 2006, p. 35.

[23] BRADBURY, 1995, p. 339.

[24] BRUN, 1991, p. 109.

[25] Apud ARCE, Javier. Los versos de Prudêncio sobre el emperador Juliano, Emer. XLIV, fasc. 1º., 1976, p. 129-141, apud GARCIA-BLANCO, 2002.

[26] BOWERSOCK, 1997, p. 14-15, 20 e 101.

[27] AMIANO, Historia 22.5.4.

[28] ELIADE, 2008, p. 164.

[29] CARVALHO, 2008, p. 221-226.

[30] JULIANO, Hino a Hélios rei, 146 A e B, 150 D, 157 C e D.

[31] JULIANO. Contra los cínicos incultos, 185 C.

[32] HIDALGO DE LA VEGA, 1990, p. 181.

[33] EUNAPIUS, Live of the Sophists, 474-475.

[34] Impérium: concepção romana de poder (VEYNE, 2009, p. 14).

[35] JULIANO, Letter to the Athenians, 284 A-C.

[36] HIDALGO DE LA VEGA, 1995, p. 236.

[37] BRADBURY, 1995, p. 339-341.

[38] IAMBLICHUS, De mysteriis, 4.3; 5.26.

[39] AMIANO, Historia, 22.14.1.

[40] BRADBURY, 1995, p. 346.

[41] EUSÉBIO DE CESARÉIA, VIII, 14.

[42] BRADBURY, 1995, p. 355.

[43] CLARKE, 2006, p. xxvii.

[44] ELIADE, 2008, p. 134.

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