quarta-feira, 9 de março de 2011

O samba que faz carnaval

Série de fotos de Maureen Bisilliat ilustra os personagens clássicos do samba e da folia

Cartola posa para Maureen Bisilliat em imagem que integra o acervo do Instituto Moreira Salles
Celebração da alegria coletiva, folia organizada e desordeira, caricatura da seriedade dominante. No rótulo carnaval cabe mais de uma farra. É um tipo de festa, mas não só. É um tipo muito específico de alegria. E algo mais. Não apenas uma libertação de hábitos temporária. Nem exclusividade brasileira.

Talvez já se tenha passado o tempo em que o samba era a linguagem musical predominante na sociedade brasileira e gênero maior do carnaval. Hoje, o samba não representa o universo das camadas populares como nas décadas de 30 e 40, nem detém a hegemonia sonora dos carnavais do país. Mas se alojou no imaginário popular como a nossa Grécia musical, aquilo que gostamos de acreditar ser a nossa identidade comum.

A fotógrafa inglesa Maureen Bisilliat passou parte do fim dos anos 60 retratando a arquitetura do Rio de Janeiro antigo, subindo o morro da Mangueira e conhecendo os personagens que marcaram a elite do samba consagrado no período. É material de primeira linha, com nomes como Donga, Pixinguinha e Cartola em poses e cenas de expressiva dignidade. Um dos resultados foi o ensaio "A batucada dos bambas", que ilustrava um texto escrito por Sérgio Cabral, publicado em agosto de 1969 numa edição especial de Turismo, da revista Quatro Rodas (editora Abril). As imagens hoje são parte integrante do acervo de Maureen lotado no Instituto Moreira Salles.

"Venha, me dê sua mão
porque sou seu irmão
na vida e na poesia.
Deixe a reserva de lado,
eu não estou interessado
em sua guerra fria.
Nós ainda havemos de ver
uma aurora nascer
num mundo em harmonia.
Onde é que está sua fé?
Com amor é melhor,
ora se é!"
Pixinguinha

Desde o ensaio de Maureen, o carnaval do samba aprimorou sua indústria. Maureen mostra, no entanto, que mesmo a folia programada não abafa a realidade popular que a comemora, misto de alegria e sofrimento que define sua linguagem. Captar esse cruzamento paradoxal entre nobreza e miséria, festa famélica e exuberância sem tostão, é o que até hoje dá força e atualidade às imagens flagradas por Maureen, reproduzidas nestas páginas, com textos originais do livro Fotografias (IMS), que condensa sua obra.

Confusão
O colorido e a dignidade de suas imagens dão outro significado à farra carnavalesca tal como encarnada no Rio de Janeiro do fim dos anos 60, início dos 70. Uma época em que fazer um carnaval em torno de algo era sinônimo de promover estardalhaço, exagerar a dose, fantasiar os efeitos e as causas, e fazer uma bagunça festiva. Carnavalizar é ainda contagiar-se por um rompante de alegria. Mas pular o carnaval é também participar de um acontecimento de mercado, uma farra com prazo de validade, desfiles e blocos, restrita a um quarteto de dias anteriores à quarta-feira de cinzas. Essa briga de identidades, entre um estado de espírito e uma festa de mercado, contamina o sentido dado pela palavra "carnaval" ao longo do tempo.

"Ai, ai, ai dança o samba
Com calor, meu amor
Ai, ai, ai
Pois quem dança
Não tem dor nem calor
O chefe da polícia
Com toda carícia
Mandou-nos avisá
Que de rendez-vuzes
Todos façam cruzes
Pelo carnavá!"
Donga

Em O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro (Ediouro), Felipe Ferreira acredita que a hesitação entre os dois significados do termo (festa e espírito) causa muita confusão em torno das origens do termo. Há quem considere os dois sentidos como a mesma coisa - e por isso a festa carnavalesca remontaria a milênios, ao Egito, à Roma antiga. Até as comemorações de colheitas anteriores à era cristã caberiam ao termo, seriam carnavais.

Não é por acaso que a presença, nas festas e procissões pagãs que teriam originado a tradição carnavalesca em muitos países, de charretes em formas de navios gerou o mito de que a palavra carnaval viria de carrus navalis (carro em forma de navio).

É velha a ideia de que qualquer brincadeira ou inversão de valores deve ser considerada antepassado do carnaval. Os bispos dos primeiros séculos de domínio católico eram indiferentes às distinções entre festas pagãs, e havia muitas em vários países, em meses distintos. Até o século 18, tantos as saturnais, os ritos de inversão, as festas de loucos e os carnavais recebiam o estigma de "carnaval", comemorações demoníacas.

Teria sido a Igreja que, para melhor estigmatizar o paganismo, consolidou a primeira noção de carnaval, como uma festa de inversões, exageros, caricatura e humor.

Quaresma
A história da palavra carnaval é ela mesma alegórica. No ano de 604, o papa Gregório I decretou que os fiéis deveriam abandonar sua rotina para, num período predefinido de 40 dias, dedicarem-se à comunhão com o espírito. A quaresma era a imitação do exemplo de Jesus, que por 40 dias viveu entre o jejum e as tentações de satã.

"Eu digo e afirmo que
a felicidade aqui mora
E as outras escolas
Até choram invejando
A tua posição

Minha mangueira
essa sala de recepção
Aqui se abraça o inimigo
Como se fosse um irmão"
Cartola

No ano 1091, o papa Urbano II convocou o Sínodo de Benevento, que estabeleceu a data oficial para a quaresma, o primeiro dia batizado de Quarta-feira de Cinzas (dado o hábito de marcar a testa dos fiéis com uma cruz feita de cinzas, em sinal de penitência). O dia marca o começo das privações de prazeres, a proibição de comer carne e a abdicação de bens materiais. Com o tempo, consagrou-se o hábito de antecipar a quaresma com um período extraordinário com tudo o que a quaresma negava aos fiéis - fartura, caricatura da autoridade e das questões do espírito, exagero e farra, o prenúncio do que chamamos hoje de carnaval.

Mais que uma festa, lembra Ferreira, o carnaval é uma data. Por isso, não há uma forma de brincar o carnaval, há muitas. Daí uma flutua­ção em torno da origem do nome. Os últimos dias de fartura antes da quaresma começaram a ser chamados de "adeus à carne" (em italianocarnevale, afirma Ferreira).

O período de adeus à carne recebeu vários nomes entre os séculos 12 e 13, período em que tomam forma as diferentes manifestações que derivariam no carnaval de hoje: carnelevariumem 1097, caramentran, carnisprivium ou carnelevare em 1130, carnelevamem em 1195.

O carnaval não se esgota numa palavra. Tampouco numa festa. Mas nas diferentes formas que assumir - um conceito, um estado de espírito, uma indústria (como a dos desfiles cariocas e a dos trios elétricos de Salvador) - será sinônimo da vitalidade popular de reinventar-se e divertir-se até muito além do próximo carnaval. As imagens de Maureen Bisilliat o comprovam.

O contraste entre a nobreza plástica dos passistas e suas condições de vida, em flagrantes de Maureen Bisilliat feitos durante a preparação para os desfiles cariocas de 1969. A história conta que nos tempos do entrudo, o precursor do Carnaval, já havia fantasias e sinais de alegria carnavalesca meses antes dos três dias fundamentais. Mais tarde, há não muito tempo, viam-se na rua fantasias esparsas desde novembro, enquanto se ouviam marchinhas compostas especialmente para a grande festa. O Carnaval começava nas ruas muito antes, sem o confinamento a que está submetido agora, em salões e em áreas previamente demarcadas, com tempo certo para os desfiles.
Braguinha (abaixo esq.), Clementina de Jesus (acima), João da Baiana e Blecaute (abaixo dir.): sambistas de todas as décadas, estirpes e estilos produziram expressões, palavras e gírias usadas nas quadras de escolas de samba e nas rodas de bar. O universo do samba é rico em jargões incorporados ao idioma.
Personagens do samba dos anos 70, como Pixinguinha (abaixo esq.) e Donga (acima), consolidaram seus apelidos na elite do carnaval brasileiro, no ambiente dos bares do morro. A pesquisadora Rachel Valença tipificou a riqueza vocabular do samba na formação de nomes próprios e apelidos, em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense, Palavras de Purpurina. Segundo ela, há apelidos de sambistas criados a partir de qualificativos (Hélio Turco; Alexandre Alegria, Pixinguinha), de traços físicos (Gaguinho; Evandro Bocão), de instrumentos musicais (Ary do Cavaco; Paulinho da Viola), da profissão (Tuninho Professor e Jair Sapateiro) e até da escola de samba a que se está associado (Noca da Portela e Neguinho da Beija-Flor).
Pai da Mangueira, Cartola (à esq.)inscreveu seu nome na nata do carnaval, numa época em que fazer samba já representava um caldo cultural de reverência aos mestres do passado. Apesar da fama e do respeito, compositores viviam as condições de vida típicas das comunidades que tornavam vivo o carnaval.

Vocabulário dos sambistas

  • Batucada - samba que acontece antes e depois dos desfiles ou ensaios.

  • Batucada de mil graus - bateria muito afinada.

  • Baticum - Bater palma numa roda de samba para acompanhar o ritmo da música.

  • Bamba - Um bom sambista.

  • Boi com abóbora - Samba-enredo muito ruim.

  • Botar a cobra pra fumar - Colocar a escola na avenida.

  • Dizer no pé ou riscar no tapete - sambar.

  • Levantar a avenida - contagiar o público.

  • Mumunha - artimanha ou truque.

  • Nega veia - maneira como alguns sambistas do passado se referiam à própria mulher.

  • No gogó - cantar o samba sem o auxílio de instrumentos.

  • Ovo de cobra não gora - tudo vai dar certo.

  • Rasgação de seda - elogios mútuos entre as pessoas.

  • Reduto do samba - sede da escola de samba.

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