terça-feira, 8 de março de 2011

Gibis retratam o conflito entre EUA e URSS

Túlio Vilela*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Reprodução

O Quarteto Fantástico enfrenta o Doutor Destino

A Guerra Fria foi uma disputa travada durante quase cinco décadas pelas duas superpotências vencedoras da Segunda Guerra Mundial: os Estados Unidos e a União Soviética. Foi um período marcado por muita espionagem e propaganda política, tanto do lado norte-americano quanto do soviético. Não bastasse tudo isso,armas atômicas seriam usadas caso as duas superpotências partissem para o conflito militar direto.

Foi durante a Guerra Fria que uma nova onda desuper-heróis surgiu nos gibis norte-americanos, especialmente nos da Marvel Comics (hoje a maior editora de quadrinhos do mundo). Você certamente já ouviu falar dessas personagens, pois várias foram adaptadas para o cinema nos últimos anos, com grande sucesso de bilheteria. Dentre essas personagens, podemos destacar o Homem-Aranha, os X-Men, o Hulk e o Quarteto Fantástico.

Aqui, falaremos da relação delas com a Guerra Fria. Afinal, embora sejam fictícias e tenham sido criadas apenas para entretenimento, seus criadores se inspiraram na época que viviam. Começaremos pelo Quarteto Fantástico, o primeiro gibi da Marvel em que o escritor-editor Stan Lee fez parceria com o desenhista Jack Kirby.

O Quarteto Fantástico

O primeiro gibi do Quarteto Fantástico foi publicado em novembro de 1961 -ou seja, poucos meses depois de o cosmonauta soviético Yuri Gagarin ter-se tornado o primeiro ser humano a viajar para o espaço, realizando um vôo orbital (12 de abril de 1961), e quase uma década antes de o astronauta norte-americano Neil Armstrong ter sido o primeiro homem a pisar na Lua (20 de julho de 1969). Assim, o Quarteto Fantástico foi lançado na mesma época em que os EUA e a URSS disputavam a corrida espacial.

O próprio surgimento desse grupo de heróis faz alusão à Guerra Fria: no início da história, pouco antes de os quatro futuros heróis viajarem para o espaço, a narração menciona que os EUA estão numa "corrida espacial" com "uma potência estrangeira". Claro que a tal "potência estrangeira" era a URSS, mas, diferentemente do que tinha acontecido durante a Segunda Guerra Mundial, os autores dos gibis da Guerra Fria preferiam não dar nome aos bois quando se referiam aos "inimigos da América".

No gibi, o Quarteto Fantástico tem origem um pouquinho diferente daquela contada no filme de 2005: quatro amigos - o cientista Reed Richards; sua noiva, Sue Storm; o irmão adolescente dela, Johnny Storm; e o piloto de foguetes Ben Grimm - embarcam num foguete experimental, voam para o espaço e são bombardeados por raios cósmicos. Ao voltarem para a Terra, descobrem que os raios cósmicos os afetaram, dando-lhes superpoderes.

Richards consegue esticar partes de seu corpo e assume o codinome Senhor Fantástico (qualquer semelhança com outro super-herói, o Homem-Borracha, não é mera coincidência); Sue se torna a Garota Invisível (anos depois, mudará o nome para Mulher Invisível, pois em nossos tempos "politicamente corretos" é considerado machismo chamar de "garota" uma mulher adulta); Johnny vira o Tocha Humana; e Ben, o monstruoso Coisa. Os raios cósmicos existem mesmo, mas na vida real eles matam, como seu professor ou professora de ciências poderá lhe explicar.

A corrida espacial não é a única alusão à Guerra Fria que encontramos nos primeiros gibis do Quarteto Fantástico. O principal inimigo do Quarteto era o Doutor Destino, que governava literalmente com mãos de ferro um pequeno país do Leste Europeu, bem na região onde se concentravam os países do bloco socialista.

Na tradução feita no Brasil, o nome dado ao país do Doutor Destino era "Latvéria", o que poderia levar a concluir que se tratava de uma terra imaginária. Mas, no original, o nome era "Latvia" - cuja tradução correta para o português é Letônia, na época uma das repúblicas que compunham a URSS. O próprio visual do vilão, com sua armadura de ferro, pode ser referência à "Cortina de Ferro", a expressão popularizada pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill para se referir aos países da Europa oriental que ficaram sob influência da URSS após a Segunda Guerra Mundial.

O Incrível Hulk

O Incrível Hulk, segunda criação da parceria Stan Lee-Jack Kirby, também refletia o contexto da Guerra Fria. No primeiro número do gibi, lançado em maio de 1962, ficamos sabendo como o cientista Bruce Banner se tornou o Hulk: ele tenta salvar um adolescente que invadiu o local onde se testará pela primeira vez a "bomba gama" (projetada pelo próprio Banner) e fica exposto aos raios gama quando a bomba é detonada propositalmente por seu assistente, um espião iugoslavo disfarçado.

Banner, em vez de morrer de leucemia ou queimaduras radiativas (que é o que aconteceria na vida real), descobre que os raios gama alteraram a química de seu corpo. Agora, sempre que se enfurece, é humilhado ou entra em pânico, ele se transforma no Hulk, um brutamontes capaz de levantar toneladas. Curiosamente, o Hulk era para ser cinzento, mas falhas de impressão no primeiro número do gibi fizeram que ele aparecesse esverdeado em alguns quadrinhos. Assim, o verde se tornou sua cor definitiva.


reprodução
Capa do n. 1 de O Incrível Hulk


Até o fato de Banner ser físico nuclear tinha relação com a Guerra Fria. Desde o Projeto Manhattan (o qual desenvolveu as bombas atômicas que foram lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki), os físicos nucleares tinham "importância estratégica" para o governo dos EUA. Vale recordar que, segundo alguns historiadores, as bombas atômicas usadas contra o Japão marcaram não apenas o fim da Segunda Guerra Mundial, mas o começo da Guerra Fria.

Segundo tal interpretação, o ataque a Hiroshima e Nagasaki teria sido a forma que os EUA encontraram de mandar o seguinte recado à URSS: "Cuidado conosco! Nós temos a bomba!" Depois disso, a procura por carreiras científicas, sobretudo em física nuclear, aumentou consideravelmente nas universidades norte-americanas. Bruce Banner, assim como os físicos do Projeto Manhattan, trabalha para os militares; e a "bomba gama" explode no deserto do Novo México, região dos EUA onde foram mesmo realizados os primeiros testes atômicos.

Outro elemento da Guerra Fria presente na saga do Hulk é o espião iugoslavo. Naquela época, histórias de espionagem eram comuns tanto na ficção quanto na realidade. Além disso, a Iugoslávia era um dos países do Leste Europeu onde os comunistas haviam chegado ao poder. (No entanto, os iugoslavos eram um caso à parte: o então governante do país, o marechal Tito, principal líder da resistência contra os invasores alemães durante a Segunda Guerra Mundial, não seguia todos os ditames da União Soviética; por isso, o modelo socialista adotado na Iugoslávia era um pouco diferente daquele que predominava nos outros países do Leste.)

Em suas primeiras aventuras, o Hulk enfrentou vários vilões comunistas, mas havia igualmente críticas aos EUA. Em primeiro lugar, porque o principal inimigo do Hulk era o general Ross, também pai da namorada de Banner. Ou seja, em muitas histórias do Hulk, o inimigo era o próprio Exército norte-americano, sempre perseguindo o gigante verde. E não se deve esquecer que o Hulk era um monstro criado pelo horror atômico. Ao conceberem a história, Stan Lee e Jack Kirby pretenderam transmitir uma lição de moral: Banner é vítima de uma arma que ele mesmo projetou, e o cientista sente remorsos por isso.
Túlio Vilela, formado em história pela USP, é professor da rede pública do Estado de São Paulo e um dos autores de "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula" (Editora Contexto).

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