domingo, 6 de março de 2011

A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval


José Rivair Macedo
Depto. de História - UFRGS


FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval. Prefácio de Jean-Claude Schmitt. São Paulo, Edusp, 1996.

O livro A Eva Barbada, como o subtítulo indica, é uma coletânea de ensaios, reunindo artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, conferências apresentadas em simpósios, congressos científicos, encontros de historiadores e cursos de pós-graduação, trabalhos ainda não publicados ou em vias de publicação. Tais trabalhos abrangem uma década (foram escritos entre 1985 e 1994) de incessantes e bem sucedidas pesquisas de um historiador de inequívocos méritos, reconhecido tanto no Brasil quanto no exterior, como bem demonstra o prefácio elogioso de Jean-Claude Schmitt - uma das maiores autoridades entre os medievalistas contemporâneos. A coletânea ora publicada colocará o leitor brasileiro em contato com trabalhos acadêmicos destinados inicialmente a um público reduzido, cujos temas, investigações e orientações teórico-metodológicas muito deverão contribuir para os estudos da cultura medieval e/ou da cultura ocidental em nosso país.

Como o autor salienta na apresentação, a reunião de trabalhos dispersos justifica-se plenamente, uma vez que todos, de um modo ou de outro, identificam-se sob o ponto de vista temático ou conceitual, tratando de um modo geral de problemas atinentes à cultura medieval e, em particular, do problema do mito, da mitologia e das tradições folclóricas, presentes nas formas de expressão da religiosidade, nas sensibilidades, na mentalidade e no imaginário do Ocidente cristão. Nesse sentido, os trabalhos ora apresentados ao grande público aproximam o autor do que tem sido feito de melhor pelos medievalistas europeus, com os quais estabelece rico e proveitoso diálogo. As constantes referências aos trabalhos de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt levam-no algumas vezes a adotar seus postulados, outras vezes a debatê-los e confrontá-los com os resultados de suas próprias experiências de investigador. Os trabalhos de certos especialistas na questão dos mitos e ritos medievais, entre os quais Claude Gaignebet e Philippe Walter, são questionados e determinadas premissas refutadas (ensaio 2).

O livro contém doze ensaios, divididos em seis partes complementares (Mito e história, Mito e sociedade, Mito e oralidade, Mito e literatura, Mito e imagem, Mito e escatologia). Desta organização interna, destacaremos dois tipos de preocupação: uma, ligada aos problemas teórico-metodológicos e conceituais (Mito e História), e a outra, desenvolvida nas partes subseqüentes, destinada à apresentação dos trabalhos de pesquisa em que aquele instrumental de análise veio a ser aplicado.

Apesar de todos os ensaios tratarem dos mitos e sistemas simbólicos do Ocidente medieval, é possível observar, na evolução cronológica em que foram escritos, importantes inovações temáticas e um aprimoramento nos referenciais utilizados pelo pesquisador. Tomando como base os temas, as estratégias de análise que empreende, os argumentos c as subseqüentes demonstrações, percebe-se progressiva mudança no ângulo de abordagem. De assuntos consagrados, como o ciclo mílico-literário de Tristão e Isolda (ensaio 7) ou o ideário dantesco (ensaio 12), ele paulatinamente desloca-se para aspectos muito menos conhecidos e explorados pela medievalíslica, como a representação iconográfica do ciclo de Noé e da Criação nos afrescos da igreja abacial de Saint-Savin (ensaios 3 e 9), o ciclo da criação da Tapeçaria de Gerona (ensaio 5) e na escultura das igrejas ibéricas do caminho de Santiago de Compostela (ensaio 10). O deslocamento, diga-se de passagem, não se limita aos objetos de estudo, mas ao próprio espaço geográfico e cultural examinado, que das áreas centrais e nucleares da Europa (França, Inglaterra, Império Germânico, Itália), passa a ser procurado na periferia (reinos ibéricos, Inglaterra), propiciando resgate histórico original e bastante inovador.

Não se trata, como poderíamos pensar, apenas de novas opções temáticas, mas também de refinamento gradual no modo de apreender os fenômenos culturais e de modificação de interesse na eleição dos objetos de estudo. Enquanto nos ensaios redigidos em meados da década de oitenta, o autor procurava examinar os dados do sistema simbólico das tradições míticas tomando como referencial testemunhos elucidativos das representações coletivas que tiveram grande repercussão no medievo, nos trabalhos mais recentes, Hilário Franco Júnior buscou em temas ou motivos aparentemente insignificantes (a barba de Eva e o gesto derrisório de Cam em Saint-Savin, o toque da mão do Deus tricéfalo no ouvido de Adão da escultura da igreja colegiada de Santa Maria de Alquézar), elementos significativos da sensibilidade profunda da Europa feudal. A partir de pequenos indícios, de resquícios e fragmentos culturais aparentemente fortuitos, de gestos e atitudes supostamente aleatórios, o pesquisador reconstitui com sutileza e perspicácia os traços perfeitamente coerentes com os modos de ser e de pensar característicos de uma cultura codificada por complexo sistema gestual, ritual e por elevados índices de oralidade.

Chama a atenção, do mesmo modo, a diversificação no emprego das evidências documentais do período. O historiador valeu-se, para determinados ensaios, de fontes documentais provenientes da cultura letrada, porém prevalece em suas pesquisas o emprego de materiais provenientes das tradições orais céltica, cristã, judaica e até mesmo islâmica. O repertório das fontes inclui canções de gesta, lais, romances, exempla, hagiografia, sermões, a Vulgata (grande repertório, mitológico do cristianismo), os livros apócrifos da tradição judaico-cristã, os oráculos sibilinos, as tradições orais c escritas hebraicas, o Corão e, especialmente, as evidências iconográficas de afrescos, tímpanos, capitéis e tapeçaria. Testemunhos, é claro, analisados de acordo com as suas especificidades, explorados com habilidade, comparados e confrontados de modo a revelar os códigos culturais de seus autores e de seu público. Para tanto, ele recorreu a uma abordagem interdisciplinarem que, lado a lado com a história, caminham a sociologia e a antropologia, a psicologia e a lingüística.

Todos os ensaios, diferentes pelos aspectos que tratam, identificam-se em alguns pontos, que acabam por conferir grande coerência interna à coletânea e por estabelecer um eixo temático, teórico e conceitual comum. Com algumas exceções (ensaios 11 e 12), eles fazem referência aos problemas da Idade Média central, especialmente os séculos XI e XII. Em geral, colocam em discussão as. formas de expressão das tradições orais e folclóricas presentes nos sistemas simbólicos veiculados pelo mito. Podemos dizer, pois, que os trabalhos, em sua totalidade, sustentam duas teses complementares, expostas nos ensaios iniciais, que procuraremos sintetizar a seguir.

A primeira propõe que, ao contrário da impressão partilhada por muito tempo pelos historiadores, o estudo dos mitos é fundamental para eles se aproximarem das sensibilidades, da mentalidade, das representações, do imaginário dos homens da Idade Média. A segunda, decorrente da primeira, sugere para o estudo dos mitos medievais uma abordagem que os articulem num sistema de representações, não como discursos isolados e fragmentários, "sobrevivências pagas" ou"resíduos de mitologias esquecidas", mas sim na interação/intersecção dessas tradições com uma mitologia cristã (ensaio2). Assim, apesar da cultura oficial cristã ter entendido mito como um relato fabuloso herdado da Antigüidade, o próprio cristianismo não era refratário a ele. Nas palavras do próprio autor:

Entender a relação, negada pela época, entre mito e cristianismo c entender melhor o sentido profundo de ambos. É perceber que, se o cristianismo medieval era um vasto sistema de representações mentais, verbais, gestuais e imagísticas através do qual os homens de então atribuíam certa ordenação e certo sentido ao universo, era exatamente porque ele era uma mitologia (p. 53).

Admitindo a existência de uma mitologia medieval, o locus privilegiado no qual a mesma subsistia encontrava-se no complexo de tradições folclóricas, que englobava tanto elementos das tradições orais provenientes do fundo céltico, judaico ou islâmico, quanto elementos míticos cristãos perpetuados pela vida do sincretismo. Tais tradições, nem sempre refratárias entre si, encontravam-se conjugadas nos códigos escritos e visuais do período, nas manifestações comuns aos clérigos e leigos, definidas pelo autor como"cultura intermediária" (ensaio 1). Esta seria o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos de uma dada sociedade, ponto de convergência dos dados da cultura clerical letrada e da cultura popular - nem sempre opostas e impermeáveis naquele período.

Mito, mitologia e cultura, por outro lado, não são tratados como fenômenos restritos ao plano das representações. Nada aqui faz lembrar as ressalvas dos críticos da História das Mentalidades quanto a uma abordagem do mental desvinculado dos contextos sociais. Trabalhando com categorias simbólicas de longuíssima duração, apreendidas em sua totalidade sistêmica, o autor procurou confrontá-las com dados de média ou curta duração, esperando compreender os motivos pelos quais os elementos míticos foram reapropriados em determinados momentos e em determinadas circunstâncias, em buscada"realidade vivida" dos homens do século XII, para os quais aquelas imagens, gestos e atitudes, hoje destituídos de sentido, eram dotados de amplo significado dentro dos códigos culturais partilhados coletivamente.

Assim, os problemas sociais da nobreza francesa no século da Reforma Gregoriana, em que a Igreja procura disciplinar seja o estrato clerical, seja o estrato laico, podem ser vislumbrados nas representações iconográficas de Saint-Savin, no mito de Tristão e Isolda e no fundo feérico e utópico do Lai de Guingamor (ensaios 3, 6, 7, 9); os projetos imperiais de Frederico Barba-Ruiva, bem como os anseios da Igreja, encontravam no Estado utópico de Preste João um modelo alternativo suficientemente atraente, capaz de justificar a popularidade do mito em diferentes setores da Cristandade (ensaio 4); a perspectiva escatológica vigente nos séculos XI-XIII definiria o caráter dos heróis míticos como Rolando (ensaio 8), ou dos heróis divinos os santos - verdadeiros instrumentos da ira apocalíptica de Deus (ensaio 11); a presença significativa de comunidades judaicas no Poitou francês e de Mudejares no reino de Aragão depois da Reconquista, fez com que elementos culturais orientais penetrassem nas representações cristãs (ensaios 9, 10).

Como podemos ver, as investigações, bem como as reflexões apresentadas pelo autor de A Eva Barbada, remetem para uma importante mudança de orientação na abordagem dos fenômenos culturais da Idade Média, levando-nos a distinguir no cristianismo o seu papel como ideologia oficial do feudalismo e o seu papel como religião. Se, enquanto ideologia, os representantes da cultura clerical letrada sempre procuraram apropriar-se dos dados das tradições populares de caráter folclórico para descaracterizá-los ou reorganizá-los segundo seus sistemas de valor, enquanto religião, cristianismo e folclore confundiam-se, fazendo parte de um mesmo conjunto de concepções e sentimentos, existindo entre ambos identificação inconsciente e profunda. Constatação fundamental, que nos permite relativizar concepções binárias extremamente maniqueístas e ao mesmo tempo ver a Idade Média em toda sua humanidade, complexidade e, antes de tudo, em sua dinâmica cultural própria e original.

Trata-se, portanto, de livro instigante e, em vários sentidos, pioneiro. O autor, demonstrando rara habilidade, soube conjugar na composição, erudição, estilo elegante e impecável, argumentos inteligentes e bem construídos, escrita clara e fluente. Ao longo dos textos, acompanham dez ilustrações e, no final, índice de datas, eventos e objetos, índice geográfico e índice de personagens. Por todas estas razões, o público brasileiro será beneficiado com sua leitura. Certamente, em pouco tempo A Eva barbada ocupará lugar de destaque na historiografia nacional, tornando-se referencial obrigatório para quem desejar discutir os problemas complexos e fascinantes da religiosidade e da cultura popular do Ocidente Medieval.

Revista de História - Universidade de São Paulo

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