quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Arquivos secretos revelam história alemã


Após a queda do muro de Berlim, a responsável pelos documentos do governo fala dos bastidores de tortura e medo que rondavam o país

Carina Rabelo


Defensora do lema "memórias reveladas para que não se esqueça e nunca mais aconteça", para a ex-ministra alemã Marianne Birthler, 61 anos, sociedade evoluída é aquela que conhece sua história. É no espírito de reconstrução da própria identidade que a Alemanha comemora, no dia 9, 20 anos da queda do muro de Berlim. A reunificação garantiu ao povo alemão o acesso irrestrito aos arquivos secretos da República Democrática Alemã (RDA), a antiga Alemanha Oriental. Os documentos mostram bastidores das operações da Stasi, a temida polícia secreta que espionava, prendia e torturava cidadãos. Em 1991, as violações foram reveladas em 140 quilômetros de papel, 1,3 milhões de fotos e cinco mil filmes e vídeos, 164 mil cassetes e 20 mil disquetes e fitas de áudio.
Nos anos 80, Marianne, que vivia no lado Oriental, se engajou nos grupos de oposição, foi investigada e viu muitos amigos sofrerem perseguições políticas e chantagens da polícia secreta. Considerada referência na defesa do acesso às informações, em 2000 ela assumiu a chefia do departamento dos arquivos da polícia secreta. Atualmente, ocupa cargos no Comitê Alemão do Unicef, no conselho da Transparência Internacional - coalizão global contra a corrupção - e na Grünen Akademie, rede acadêmica ligada ao Partido Verde.


Quando os arquivos da Stasi foram abertos, muitas pessoas ficaram sabendo que o parceiro, o vizinho ou um amigo era espião. Como tem sido a receptividade dos alemães a esses documentos?


MARIANNE BIRTHLER - A aceitação é grande. Não devemos esquecer que os cidadãos da antiga República Democrática Alemã (RDA) conquistaram o direito ao exame dos arquivos depois de terem ocupado entre 1989 e 1990 os escritórios do Ministério de Segurança do Estado. E, até hoje, aproximadamente 1,7 milhão de pessoas apresentaram requerimentos para exame dos documentos, além dos meios de comunicação. Reportagens sobre colaboradores extraoficiais ou os procedimentos do Ministério de Segurança do Estado mostraram às camadas mais amplas da população - também na Alemanha Ocidental - quão pérfidos foram os métodos da Stasi.


Muitas também descobriram que foram vigiadas.

MARIANNE - É óbvio que ler isso nos documentos referentes à própria pessoa também é penoso, mas é, sobretudo, uma oportunidade para recuperar o controle da própria biografia. O ministério muitas vezes interveio na vida dos cidadãos, sem que eles pudessem provar isso. Você não podia frequentar a universidade, não podia trabalhar na sua profissão, não ganhava a residência já prometida. Seus amigos de repente se afastavam, e tudo isso era manipulado pela Stasi.

Há uma equipe que trabalha na colagem dos pedaços de papel dos documentos destruídos após a queda do muro. Quantos se perderam?


MARIANNE - É muito difícil dizer quantos documentos o Ministério de Segurança do Estado conseguiu destruir. Restaram-nos documentos que equivalem a 160 km de papel, além de fitas magnéticas e fotografias. Na dissolução do ministério encontramos mais de 15 mil sacos com documentos rasgados. Esse é o material que os oficiais da Stasi queriam fazer desaparecer completamente. Já conseguimos recompor o conteúdo de 400 sacos e estamos nesse momento desenvolvendo um processo de reconstrução computadorizada. Em Leipzig, por exemplo, os colaboradores da Stasi tinham despedaçado os documentos com uma máquina gigantesca e misturado os fragmentos com água, até formar uma pasta.

Além disso, em 1990 foi destruído, com a concordância dos dirigentes políticos, quase todo o acervo do Departamento de Espionagem no Exterior da Stasi.

O filme "A Vida dos Outros" (2006) mostra como um policial protegeu um investigado por consciência. Há algum paralelo com a realidade?


MARIANNE - O enredo do filme é um conto de fadas. Não temos notícia de oficiais da Stasi que protegeram pessoas espionadas. Isso nem teria sido possível, pois os colaboradores da Stasi também eram supervisionados. Na rotina da Stasi, todas as atividades descritas no filme eram separadas e executadas por colaboradores distintos, que nada sabiam um do outro e, muitas vezes, nem conheciam a finalidade da sua tarefa.

O objetivo era impedir que uma pessoa soubesse demais ou pudesse pôr algo em movimento.


Que tipos de tortura eram praticados pela Stasi?


MARIANNE - Nos anos 50, algumas vítimas relataram que encheram o chão da sua cela com água para que elas não pudessem sentar ou dormir. Era uma forma de provocar a exaustão. Em anos posteriores recorria-se, principalmente à violência psíquica. Assim, os acusados eram pressionados sistematicamente, mediante a ameaça da imposição de penas severas, da prisão arbitrária de pessoas próximas ou da adoção forçada dos filhos. Muitas vezes, a privação do sono era obtida também por meio de interrogatórios noturnos e ininterruptos. Na maioria dos casos, a insônia já resultava das pressões advindas do isolamento na prisão e da incerteza total acerca do destino dos presos. Além disso, as lâmpadas sempre permaneciam ligadas nas celas durante a noite.

Eram muito frequentes?


MARIANNE - As torturas físicas passaram a ocorrer com frequência cada vez menor, à medida que a RDA empenhava- se em ser reconhecida no plano internacional e temia revelações sobre a forma como tratava os presos, sobretudo após a adoção da prática da libertação dos detentos e sua expulsão do país em troca de grandes quantias de dinheiro. Por isso, desde os anos 60, a violência era psíquica, sob a forma da humilhação e da tutela. Até hoje, muitos dos aproximadamente 250 mil presos políticos sofrem as consequências traumáticas das condições desumanas nas prisões.

Como ocorria a venda de pessoas do lado oriental para o ocidental?


MARIANNE - Nessas iniciativas de venda de presos a Stasi atuava em segredo. As negociações eram realizadas com a ajuda de advogados de ambos os lados. Na RDA, a cúpula do Estado influía consideravelmente. No Ocidente, essas transações eram dirigidas por órgãos governamentais. Vendiam-se, sobretudo, presos políticos. Para a RDA, esse comércio era um bom negócio: no total ela recebeu aproximadamente 1,8 bilhão de euros.

Os investigados podem obter informações sobre os torturadores e investigadores, como nome verdadeiro e endereço?


MARIANNE - Os investigados têm livre acesso às suas fichas. Isso também significa que eles podem ler nelas os nomes dos oficiais da Stasi mencionados nos documentos. Muitas vítimas procuraram entrar em contato com os autores, seus investigadores e outras pessoas. Na maioria dos casos, essas tentativas fracassaram diante da falta de disposição dos autores de se expor a tais situações.

Havia núcleos neonazistas investigados pela polícia secreta?


MARIANNE - Sim, como o caso da Divisão SS Walter Krüger, em Wolgast. Foram presos nove jovens adultos, em 1989. Grupos neonazistas na Alemanha Ocidental, como o Grupo de Esporte Defensivo Hoffmann, também eram objetos interessantes para a Stasi. Mais frequente, contudo, era a perseguição de pessoas sob o pretexto de atitudes fascistas, quando elas, na verdade, representavam apenas um estorvo para a política oficial.

A sra. chegou a ser investigada pela polícia secreta?

MARIANNE - Vivi na RDA e trabalhei, primeiro, no comércio exterior. Depois, frequentei um curso pedagógico na igreja evangélica e atuei durante muitos anos com crianças e adolescentes, uma área na qual podíamos trabalhar em relativa liberdade, embora sob fiscalização da Stasi. Em meados dos anos 80 engajei-me cada vez mais na política, na oposição. Muitos amigos, que também atuavam no movimento de base, sofriam perseguição política e eram observados. Sabíamos disso. Mas só após a queda do muro viemos a conhecer as verdadeiras dimensões da observação.

Pelos diversos casos de espionagem e traição, é de se imaginar que havia um clima de desconfiança permanente. Os resquícios desta desconfiança ainda se mantêm entre os alemães?


MARIANNE - A desconfiança é um fenômeno secundário de cada ditadura. Em quem ainda posso confiar? Eis a pergunta. Sabíamos, porém, que a Stasi queria produzir exatamente esse efeito de insegurança e tentamos nos libertar dele. A abertura dos arquivos trouxe à luz muitos casos de traição, mas eles não envenenaram a sociedade, em que pesem as suas consequências dramáticas nos casos individuais. Muito pelo contrário, existe até hoje uma discussão social importante, também muito atual depois das eleições para os parlamentos estaduais, sobre como lidar com ex-informantes e colaboradores de dedicação exclusiva. Vamos aceitar que antigos colaboradores do Ministério de Segurança do Estado ou antigos dirigentes do partido atuem na política, se tornem chefes de partidos políticos e mesmos secretários de Estado? Será que eles podem trabalhar em altos cargos no serviço policial? Essa discussão somente é possível porque os arquivos estão abertos e porque existe o direito à fiscalização. A verdade nos ajuda a reduzir a desconfiança. Mas nem sempre é fácil e confortável conviver com ela.

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