quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Uma América incógnita


Uma América incógnita


Susani Silveira Lemos França

Professora Doutora - Departamento de História - Faculdade de História, Direito e Serviço Social - UNESP - 14409-160 - Franca - SP - Brasil. E-mail: susanilemos@uol.com.br

Não foram poucos os historiadores que indagaram os relatos dos viajantes europeus em busca de destacar os elementos principais que compuseram a imagem que esses, e seus leitores, forjaram da América e de seus habitantes. Por trás dessa interrogação, estava a vontade ora de desmontar a relação entre os fatos observados e sua interpretação1, ora de levantar os referentes culturais que participaram na sua construção do mundo do ultramar2, ora de traçar o perfil daqueles que fizeram deslocamentos concretos ou registraram a experiência de outros3, ora, ainda, para ficarmos nuns poucos exemplos, de mapear os tópicos e as especificidades da imagem que estes forjaram dos lugares e gentes da América4.

Quando, porém, a interrogação parte para um gênero que se alimentou dessas narrativas para pensar esses mesmos lugares, a história-crônica, o jogo entre o passado narrado e o presente dos cronistas5,aos quais foi encomendada a tarefa de fixar um certo passado, bem como as implicações das mediações que utilizaram, demanda que se interrogue não apenas de onde falam, mas também onde se enquadra o seu discurso no longo processo de tomada de conhecimento da América pelos europeus. Na obra dos cronistas portugueses do início do século XVI, ou seja, daqueles que escreveram quando ainda eram recentes as grandes descobertas, já é possível perceber, diferentemente da obra de Zurara, escrita no século anterior, uma perspectivação de conjunto, uma visão global6 dos feitos e efeitos expansionistas, ainda que desprovida de adiantamentos sobre o significado cultural do alargamento do mundo7. Phillipe Bonnichon, a esse propósito, em Des Cannibales aux Castors. Les découvertes françaises de l'Amérique (1503-1788), considera que, embora tenham sido os ibéricos os primeiros a pisar a América, os descobrimentos só se cumprem culturalmente quando retornam à Europa. Em suas palavras, a descoberta prolonga-se para muito além do primeiro golpe, prolonga-se no espaço e na duração, porque demanda ida e vinda, feito e publicidade; demanda, em suma, que as novidades encontradas retornem às nações conquistadoras e suas vizinhas e irmãs8.

Levando em conta a importância desse retorno, interessa aqui menos pensar as conhecidas fases da concretização da expansão, como fixaram, entre outros, Pierre Chaunu9, Fréderic Mauro10 e Oliveira Marques11 - fases que contemplam desde a expansão interna européia até a externa, ou apenas à expansão portuguesa -, e mais refletir sobre as voltas tortuosas da expansão da notícia sobre os descobrimentos, nomeadamente do descobrimento da América. A pergunta específica, pois, a ser respondida nos limites deste ensaio é: como e onde se enquadra o pensamento dos cronistas portugueses que escreveram quando eram recentes as grandes viagens ultramarinas e as grandes descobertas? Questão cuja relevância está ligada ao fato de que, se a descoberta não é apenas espacial ou geográfica mas principalmente histórico-cultural, importa saber o papel que esses cronistas, da nacionalidade daqueles que desencadearam com suas viagens um processo que integraria todo o globo terrestre, tiveram na construção histórica do descobrimento da América. E tal questão emerge quando se leva em conta que, se não é questionável a anterioridade da chegada dos portugueses ao Brasil - ou dos espanhóis às Antilhas, mesmo que não sejam negligenciados possíveis antecedentes de Colombo e de Cabral12 -, não teria sido tão impactante o papel dos portugueses, ao menos dos cronistas, no processo continuado de invenção e divulgação dos lugares encontrados.

Acerca do saber histórico desta primeira metade do século XVI, vale lembrar, de saída, que, no caso de Portugal, embora esse se desloque do compromisso direto com a legitimação da dinastia de Avis13 ou com a formação de reis e nobres para a expansão ultramarina, o empenho em pintar um passado honroso indica o peso da herança ciceroniana, que propunha fazer da escrita do passado "testemunha dos tempos", "luz da verdade" e instrutora dos tempos vindouros. Cícero entendia a história como "mestra da vida" e esse seu caráter edificante justificava as imortalizações que empreendia. Nesse sentido, a história devia constituir-se num repertório de exemplos políticos e morais, pois era a "verdade ética" que deveria estar na mira do historiador14. Idéia que se encontra na base da leitura de S. Agostinho, especialmente no que diz respeito à moralização da memória e ao entendimento dela como uma parte da "virtude da prudência", considerada pelos medievais, e ainda persistente no século XVI, como uma das virtudes maiores, ao lado da coragem, da justiça e da temperança15. João de Barros, nas suas décadas da Ásia, define a história nos seguintes termos:

[...] a historia he hum ágro & cãpo onde está semeada toda a doctrina, diuinal, moral, racional & jnstrumental: quem pastar o seu fructo, cõuertello há em forças de jntendimento & memoria, pera vso de justa & perfecta vida, cõ que apraz a Deus & aos homes.16

Caráter pedagógico igualmente corroborado por Castanheda, que destaca o louvável costume dos reis do Egito de:

terem cada dia lição das historias: não soomente de seus antecessores: mas doutros reys estrangeiros, pera que delas tomassem doctrina de como auião de gouernar seus reynos na paz, & na guerra. Costume de grande louuor, & muyto digno de ser notado: & que os reys & principes ainda agora auião de goardar, porque os que gouernão bem, ho farião de cadauez melhor, & os que mal, se enmendarião (pois nas historias se achão os melhores exemplos que podem ser pera qualquer estado de vida) & por isso deuião eles de ter cada dia lição delas, principalmente das de seus antecessores...17

Mas a atualização dessa herança, no início do século XVI, é conduzida pela expansão ultramarina: seus alvos, sua importância, suas configurações e vicissitudes, o desempenho dos homens que a empreenderam e, ainda abreviadamente, a apresentação e o mapeamento dos lugares e gentes do ultramar visitado. Desse modo, se as bases da história que elaboraram os cronistas do século XV tinham sido as histórias de outros historiadores, os documentos oficiais, os testemunhos dos grandes homens que viveram os acontecimentos narrados e, em casos mais raros, a própria observação direta18, os cronistas dos descobrimentos tiveram de alimentar-se sobretudo das narrativas de viagens. De onde a familiaridade entre os dois gêneros, pois, apesar de toda a produção escrita medieval ser caracterizada pelo compromisso de verdade assumido pelos autores dos mais diferentes gêneros, os relatos de viagem e as crônicas mais diretamente conjugam a preocupação de veracidade e de testemunho19. As crônicas, por sua função de preservação, dão ênfase à sua intenção de permitir que se alcançasse o conhecimento da verdade; como afirma o referido Castanheda: "se me eu detiue vinte tantos annos em escreuer esta historia, foy porque a fizese como auia de ser, principalm½te na verdade." Do mesmo modo, nos relatos, aparecem passagens onde o compromisso de veracidade é igualmente declarado, como no relato iniciado em 1505, Esmeraldo de Situs Orbis, em que o cosmógrafo português Duarte Pacheco Pereira declara a D. Manuel que "todas essas cousas, sereníssimo Príncipe, são verdade [...]."20

Já no que diz respeito à função testemunhal comum aos dois conjuntos discursivos, embora no século XVI os cronistas apelem a ela de forma mais ostensiva21, graças ao peso crescente que o conhecimento por experiência começa a ganhar na afirmação da verdade22, não se pode dizer que ela ganhe o mesmo peso que nos relatos dos viajantes na autenticação da verdade, dado que o recurso a fontes consideradas legítimas, a outras histórias, aos testemunhos de terceiros e às autoridades desempenha igual valor na fixação da verdade. Nos relatos, conquanto a mesma busca da realidade notável nas crônicas caracterize a preocupação de veracidade23, a unidade do mundo que o viajante procura restituir é fundada explicitamente na empiria, e não tanto na conjugação entre a idéia de espelho do passado, o apelo às autoridades antigas e medievais e o recurso às verdades consolidadas em outros escritos. Mesmo que também os relatos sejam alimentados pelos referentes culturais dos viajantes antecessores e, em vários casos, sejam também eles construídos sobre escritos do passado, à base da compilação, é o testemunho direto, a afirmação da busca da realidade sem intermediações que os sustenta. Isso, entretanto, não deve nos levar a cair na armadilha da função documental desses textos, nem tampouco das crônicas. Igualmente, não podemos cair na tentação oposta de desmenti-los, pois o que importa é atentar para como recorreram a classes de verdade que pareceram tão convincentes para seus contemporâneos, ao ponto de se apresentarem como espelho do mundo24. E, no caso dessas crônicas do século XVI, esse espelho do mundo é alimentado sobretudo pelas narrativas de viagens.

Tais narrativas de viagens, caracterizadas como documentos de "primeira mão", amparados na experiência pessoal25, eram, contudo, poucas no início do século XVI e, no que diz respeito à América, esquivas, já que os olhares ainda continuavam treinados para ver sobretudo o Oriente. Em sua maioria sem grande trabalho de elaboração e, à moda da época, sem grande preocupação com a originalidade, elas interessaram aos cronistas - assim como mais tarde a outros leitores - pelo quanto de informações que conseguiam reunir e por serem testemunhos sobre terras, homens e sociedades que eles próprios não puderam visitar. Era nesse testemunho direto, a propósito, que os cronistas julgavam que poderiam encontrar a aclamada autenticidade que buscavam nos seus próprios relatos históricos.

Se, porém, os cronistas quinhentistas26 procuraram, nessas dispersas reportagens do passado, um melhor conhecimento de gentes e terras desconhecidas, no que diz respeito à América, que tanto veio a interessar seus sucessores, apenas colaboraram para manter o vazio na divulgação das imagens do lugar nos primeiros tempos de descobertas geográficas e históricas. O passado que fixaram sobre a América, como se verá, parece não ser nem aquele dos humanistas curiosos com a novidade, nem muito menos o daqueles homens movidos pelo interesse filosófico ou científico, como foi o dos homens do século das Luzes. Nesses textos históricos portugueses do século XVI, portanto, a América apresentada é uma América que está longe de interessar por si mesma; por um lado, porque o que importava eram os feitos dos grandes homens da expansão; por outro, porque, como têm notado vários historiadores, ela era ainda, neste momento, lugar de passagem para uma conquista mais promissora: as Índias Orientais.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, é possível notar que João de Barros27, em sua Ásia, além de incluir um subtítulo que denuncia a tendência marcante da sua história, "os feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente", apresenta como ponto de partida de seu projeto de registro do passado - em décadas, à moda dos antigos - os feitos militares portugueses nos quatro continentes, um ponto de partida que, porém, acabou por não ter continuidade, pois Barros não pôde realizar a proposta de compor uma parte geográfica e uma parte dedicada às relações e aos produtos comerciais28. Restringiu-se, assim, o historiador a pensar os feitos pelo mérito daqueles que o empreenderam. Talvez por isso louve, no prólogo da Segunda Década, os quatro príncipes que, em momentos diferentes, alicerçaram os descobrimentos: D. Henrique, que lançou as "pedras rústicas" da conquista da Guiné, D. Afonso V e D. João II, porque acrescentaram ao que aquele tinha começado, e D. Manuel, porque, na visão do cronista, deu a conhecer à Europa o descobrimento da Índia e despertou interesse por ela29. O cronista, pois, no seu compromisso de "encomendar as cousas à custódia das letras" e preencher o vazio que seus antecessores e contemporâneos portugueses deixaram acerca dos descobrimentos, só se refere à parte oriental das descobertas e não contempla que, no que diz respeito à parte ocidental, ele próprio ampliará o vazio -30 talvez porque a sua fonte principal tenha sido a Relação do Piloto Anônimo. As matérias tratadas por Barros voltam-se também sobretudo para o oriente. Da ação e das peripécias do Infante D. Henrique e seus servidores - Gil Eanes, Gonçalo de Sintra, Nuno Tristão, Gomes Pires, Diogo Gil e outros - às iniciativas exitosas de D. Manuel, levadas adiante pelos famigerados Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque, Francisco de Albuquerque, Francisco de Sá, Henrique de Meneses, Pêro Mascarenhas, e outros, passando pelo arrendamento a Fernão Gomes por D. Afonso V e pelo impulso dado às conquistas por D. João II.

Também Castanheda atenta mais para a dominação dos portugueses na Índia - "seus feitos notáveis", suas "façanhas" - do que propriamente para os costumes dos reis e povos do Oriente ou para as características dos lugares; uns e outros descritos acima de tudo com a finalidade de compor melhor a grandeza dos feitos portugueses31. E mesmo Gaspar Correia, que se distinguiu de Damião de Góis por não tomar o rei D. Manuel como figura central de sua narrativa, declara que não escreveria "nada das terras, gente, e trato", mas apenas se ocuparia dos "nobres feitos" daqueles portugueses atuantes nas partes da Índia32.

Se, pois, o alvo de engrandecimento dos portugueses que militaram no ultramar se sobrepunha à descrição dos lugares da Índia, no que diz respeito à futura América, a ausência de nuances sobre os lugares e gentes é ainda mais notável. Segundo Mollat33, os navegadores dos tempos de Colombo procuravam Catai e encontraram a América, portanto, levou tempo para que a consideração da América por ela mesma viesse a se efetivar, pois o objetivo permanecia Catai. Desse modo, nas primeiras décadas do século XVI, o extremo ocidente descoberto, além de surgir nos escritos como reminiscência do extremo oriente34, aparece como interposto. Não é, pois, de admirar que aquele que foi o cronista português mais traduzido, Fernão Lopes de Castanheda35, quando sintetiza os grandes feitos dos portugueses, abrindo mares e mundos, ressalte apenas a África, o Cabo da Boa Esperança, a Etiópia, a Arábia, a Pérsia, a China e as ilhas Molucas36.

No que diz respeito às terras americanas como lugar de passagem, a propósito, os cronistas-historiadores portugueses, cujas obras foram publicadas a partir de 1550 e que, como foi referido, escreveram quando eram recentes as grandes viagens ultramarinas e as grandes descobertas, reafirmam o caráter de interposto da América, tal como os documentos que utilizaram. O interesse do que disseram, contudo, está, à partida, em terem ultrapassado o campo dos relatos diretos e baseados apenas na experiência rumo à elaboração de relatos históricos, estes organizados em torno de um propósito, movidos pela busca de conferir um sentido único a eventos díspares e elaborados com algum distanciamento e reflexão37. Barros, como vimos, não abre mão da dimensão ética da história, ao defini-la como um instrumento doutrinal, com finalidade religiosa, moral, racional e prática38. Inclusive as coisas de além-mar, portanto, deveriam estar incluídas nesse direcionamento geral, ou seja, deveriam compor o "paradigma da ação virtuosa", que ele acreditava ser a história39. Já Castanheda, ainda que faça da história o testemunho de uma experiência vivida, leva, segundo sua própria declaração, vinte anos para fazer a sua história "em sua verdade" e com idéias concatenadas em torno de um direcionamento geral, como Barros. E não destoaram muito de Barros nem Gaspar Correia (1495-1561), nem Antônio Galvão (1490?-1557), nem Jerônimo Osório (1506-1580), nem muito menos Damião de Góis (1502-1574). O primeiro declara não ter deixado de lado nem os "nobres feitos" nem as "duvidosas porfias" - duplicidade que aparece mais de uma vez nas suas Lendas da Índia -, porque quis fazer de sua história uma espécie de alerta aos pecadores que, ao tornarem públicos seus males na Índia, impuseram sua presença numa narrativa projetada inicialmente para lembrar "ilustres feitos" levados a cabo pelos portugueses40. O segundo, voltado para o objetivo de informar sobre todas as viagens oceânicas portuguesas, reúne, no seu tratado histórico-geográfico, narrativas da Ásia, da África e da América. Osório e Góis, por fim, são conduzidos pelo objetivo de pensar a expansão a partir do papel do rei D. Manuel na sua efetivação e ampliação ou de, como anuncia Góis, tentar responder, trinta anos passados da morte desse rei, ao "merecimento" dos seus feitos - que interessavam a ele na medida em que podiam propagar as glórias nacionais no mundo europeu.

Mas a construção da América, mais especificamente do Brasil, como interposto, aparece mais claramente na diluição do evento no conjunto das explorações e conquistas portuguesas do que nessa atenção aos feitos dos portugueses em detrimento do valor, interesse e característica dos lugares visitados. Na História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos portugueses, a narrativa, depois de contemplar desde a determinação de D. Manuel para que Pedro Álvares Cabral partisse com uma armada para Calicute, bem como de descrever os rituais de partida, passa a tratar da terra firme do além-mar - já no tempo de Castanheda chamada de Brasil. Sobre ela, embora afirme ser "bem sabida" no seu tempo, parece reproduzir a mesma impressão difusa das narrativas de viagem, incluindo certa dose de maravilhoso, como aparece na sua descrição de um estranho peixe visto nas margens da terra. Mais não diz a não ser sobre esse peixe e sobre a viçosidade dos arvoredos, a frescura das águas, a fartura de mantimentos e de algodão. Sua descrição - apesar de ser alimentada por uma documentação mais vasta que a de outros cronistas -41 volta-se rapidamente para a navegação e percalços encontrados pelos capitães: naufrágios, mar contrário, tormentas42, enfim, mais o que dizia respeito ao valor dos navegantes do que à terra firme daquelas partes ocidentais.

João de Barros, nessa mesma linha, fazendo jus à sua convicção de que as descobertas eram a efetivação da vontade de Deus de "abrir as pórtas doutro nóuo mudo de jnfieés, onde o seu nome podia ser conhecido e louuádo [...]"43, não se distingue muito do seu contemporâneo. Depois de dar a conhecer o impacto do retorno de Vasco da Gama, bem como de louvar D. Manuel pelos acrescentamentos feitos à Coroa do reino e pelo seu empenho em dar continuidade à empresa ultramarina, descreve a despedida de Pedro Álvares e sua armada, os rituais, a reação dos que ficaram, os capitães que embarcaram, as gentes da tripulação - fossem homens de armas ou aptos a cuidar das coisas do espírito - e as indicações do regimento a ser seguido por Cabral. No que tange à terra firme de Santa Cruz, mais detalhes surgem das gentes que ali se viu: a surpresa dos homens de Cabral por sua dessemelhança em relação a outros que já tinham sido encontrados - cor baça, cabelo comprido e corredio, um formato de rosto peculiar e uma língua ainda desconhecida -, todavia, a promessa44, depois não cumprida, de vir a falar mais do lugar e da gente desvia a atenção do cronista para a primeira missa celebrada em ação de graças à principal determinação do regimento que trazia o capitão: levar o Evangelho às terras "bárbaras" encontradas. A prioridade do cronista-historiador fica assim restrita à trajetória desse povo cristão aventureiro, que quis dedicar a Deus e tirar do domínio do "demônio" as terras encontradas - esforço que, como também ressaltou Castanheda, é todo ele marcado pelos contratempos e infortúnios dos navegantes45.

Nos capítulos dedicados à tal viagem de Pedro Álvares Cabral que resultou na descoberta do Brasil, Gaspar Correia, outro cronista da primeira metade do século XVI e que levou três décadas na preparação de sua história46, distancia-se um pouco dos supracitados historiadores, ao conferir um espaço notável para os preparativos da viagem de Cabral. Embora toque em questões semelhantes àqueles, como o nome do Brasil ou o soçobramento das quatro naus, acrescenta um pouco mais no que diz respeito aos conselhos prévios à viagem, aos acertos de pagamento à tripulação e às cartas de D. Manuel enviadas aos reis do oriente. No que se refere à "terra nova que descobriu do Brasil", mesmo que suas descrições sejam compostas de impressões vagas, essas interessam por serem um índice do pouco espaço conferido à América, e do pouco conhecimento sobre ela, na cronística contemporânea ou próxima aos eventos de exploração das novas terras. Nessas descrições, a gente descoberta é descrita como "branca bestial", "rostos largos", "narizes largos e baixos como de jaus", e mais, "sem nenhum cobrimento de suas vergonhas", "mansa" e quase desarmada, não fossem os arcos que traziam - à semelhança dos ingleses - e as "flechas de cana"47. E acrescenta outras breves informações sobre o pouco que tinham em suas casas, sobre o arvoredo, sobre as aves coloridas e os muitos portos e rios do lugar. Apesar dessa maior riqueza de detalhes, que fazem lembrar a carta de Caminha, o lugar que surge como nova descoberta ainda fica na promessa, pois, como sugere o cronista, em respeito à ordem cronológica da exploração, as muitas outras coisas achadas teriam de ficar para outra narrativa.

Lacuna que, conquanto as descobertas já tivessem feito trinta ou mais anos - se for considerado que Barros escreve a partir de 1545, Castanheda pela mesma época, Correia, um pouco antes, a partir de 1529, Góis nas proximidades da metade do século e Osório pela mesma altura -, ainda foi mantida até pelo menos a metade do século XVI. Góis e Osório seguem na mesma linha dos anteriores, ressaltando a simpleza das gentes, a estupefação diante da missa, a fertilidade e agradabilidade da terra. Todavia, a riqueza de pormenores da Crónica do felicíssimo rei D. Manuel, de Góis, e a própria trajetória do cronista, integrado aos círculos intelectuais da Europa, sugerem que usou mais do que os relatos dos cronistas que o antecederam, apoiando-se também em relatos de viajantes não portugueses - como Hans Staden e André Thevet48. Na sua crônica, é possível notar já um interesse que ultrapassa a mera exaltação da trajetória dos portugueses, um interesse talvez estimulado por seus contatos europeus, pela riqueza e diversidade do lugar: ervas medicinais, hábitos e costumes das gentes, habilidades de flecheiros, alimentos, superstições, casamentos entre parentes - exceto entre pai e filha e irmão e irmã -, tipos de habitação, desapego da gente pelas riquezas, motivações para a guerra, tratamento aos cativos, celebrações e festas, linguagem descontinuada, costume antropofágico de alguns e tantas coisas mais49. Essas descrições minuciosas de uma gente marcada pela simpleza surgem também compiladas por Correia - que não oculta a importância do seu antecessor, Góis - e permitem, se não demarcar um deslocamento nas prioridades dos cronistas, ao menos apontar algum anúncio de que a história portuguesa, na divulgação da notícia sobre as descobertas, já se empenhava em ir além da exaltação dos feitos dos portugueses, da explicitação dos móbeis elevados dos governantes portugueses e da descrição das penúrias sofridas pelos viajantes - descrição com finalidade igualmente engrandecedora.

Mas, mesmo que alguma mudança possa ser notada, na segunda metade do século XVI, na trajetória da divulgação da notícia sobre a expansão pelos cronistas portugueses - cuja narrativa é marcada pelo distanciamento temporal50 e pela visão intermediada -, o traço geral da sua construção histórica ainda parece ser o caráter de desígnio divino dos descobrimentos e, conseqüentemente, de graça aos portugueses. A futura América ainda se mostra muito pouco anunciada no passado por eles divulgado; ela é, até aí, feita de bens naturais e gentes simples, sem maiores interesses comerciais ou até mesmo espirituais, dada a sua "bestialidade".

NOTAS

Revista de História - UNESP

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