quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Semânticas da violência - guerra, território e poder na África mandinga


Angelo Turco

Professor do Departamento de Culturas Comparadas da Universidade de L'Aquila Facoltà di Lettere e Filosofia]p.zza S. Margherita 2, 67 100 L'Aquilaturco@cc.univaq.it

Complexo e ainda pouco estudado, o grande tema da guerra na África básica apresenta articulações múltiplas. Quero aqui referir-me a uma tradição da África ocidental que tenho podido estudar repetidamente no curso de muitos anos,2 aquela mandê, raciocinando sobre os modos de constituição do significado da violência organizada, e em especial da guerra justa, com particular atenção às configurações do poder em relação à territorialidade. Na tradição mandê o tema da guerra, estreitamente entrelaçado com a política e daí ao perfil civil do homem mandingo, é bastante presente e sutilmente elaborado. O fato bélico é declinado nas suas muitas lapidações e por isso se desenvolve não só como discurso sobre a "arte da guerra" e a tipologia dos conflitos com as relativas técnicas defensivas e ofensivas,3 mas propõe ainda o mais amplo quadro da função social da atividade guerreira4e dos relacionamentos entre kelè e hera, a guerra e a paz. Um relevo particular assume, nesta rica perspectiva, o horizonte ideológico da autoridade, niyamokoya: niyamoko é aquele - moko, a pessoa - que vem antes, que está diante. Esse se repercute em cheio sobre as problemáticas polemológicas e, a partir da reflexão sobre "espírito guerreiro", constrói um verdadeiro e próprio "discurso sobre a guerra" que se coloca frente ao cerne da natureza do conflito armado e explora as condições de possibilidades da sua legitimação.

1. A tradição mandê

"Tradição mandê" significa neste estudo o conjunto dos traços culturais, materiais e simbólicos, relativos ao povo mandingo, espalhados sobre uma vasta área da África ocidental estendida sobre as bacias da Gâmbia, do Alto Senegal, do Alto e Médio Níger (fig. 1). Os critérios de definições de tal tradição são necessariamente fluidos. Sem dúvida se podem assinalar os dois resumos mais recentes realizados por J. Jansen,5 quer dizer a língua6 e uma produção narrativa (oral) concernente à Sundiata e a sua epopéia. A estes critérios se acrescenta aqui um outro, referente à territorialidade mandê, e mais precisamente as lógicas que inspiraram e sustentaram a transformação material, simbólica e organizativa do território hoje habitado pelos mandingas. A formação de uma territorialidade mandê repousa sobre princípios e práticas bastante complexas, mas fazem distinção entre si - e são neste local de importância central - os processos de construção política do espaço, que indicamos com o termo resumido de mansaya (da mansa, soberano). O espaço político mandingo tem o seu modelo auroral no reino de Sundiata (Mandê, Manden, Manding) que as fontes árabes medievais indicam como Mall, Mali, Melli, 7 do qual origina a denominação de "Império do Mali". É já no seio daquele que as tradições indicam como duguba, a grande (ba) casa de todos os mandingas,8 que venham articular-se os canais institucionais voltados à assegurar a circulação legítima do poder, ordenáveis em duas grandes famílias (Tab. 1). A primeira, regida por princípios hierárquicos, diz respeito ao conjunto dos dispositivos que atribuem à autoridade um valor decrescente de um vértice a uma base. As principais instituições hierárquicas do Mandê dizem respeito à esfera familiar (fasiya), com a esfera política (mansaya), com a esfera escravista (jonya) e por fim com a esfera de casta (nyamakalaya). Sobre as três primeiras temos meios de retornar a seguir; quanto à nyamalakaya, ela codifica o ordenamento da sociedade de castas, marcadas por graus de distinção, especialização profissional, endogamia.9

A homologia indica por sua vez o conjunto dos dispositivos que organizam a sociedade a partir da de instâncias de igualitarismo. A ordem homológica, que se exprime em diversas instituições sociais, tem as funções essenciais de amenizar as tendências particularistas e, por tabela, as lenticularizações territoriais, que a ordem hierárquica impulsiona ao contrário de afirmar. Nas diversas formas que pode assumir, o particularismo ressalta a prevalência dos interesses econômicos, políticos, ideológicos de um grupo ou de uma instituição sobre outras. Tudo isso traz consigo o perigo grave de uma explosão do Mandê que, traído nos valores comunitários que lhe há proporcionado a gênese e inspirado o desenvolvimento, 10 vem confiado às forças destrutivas da violência e da guerra, e deixa por fim de existir como duguba, quer dizer como construção geográfica unitária.

Ao modelo auroral do Mandê malinês, conectam-se experiências hist óricas multiformes que estão a testemunhar em síntese dois eixos de desenvolvimento do pensamento e da prática política mandê, caracterizadas de uma forte tensão dialética.

i. O primeiro eixo coloca em jogo a dupla fasiya/mansaya, o que quer dizer a legitimação das práticas concretas de governo através de princípios de caráter exclusivamente político (mansaya) ou por meio do exercício de uma autoridade do tipo familiar (fa, pai). O percurso de legitimação fasiya visa a disciplinar a aprovação e o uso da terra (e por extensão, de todos os recursos naturais: contudo, não só agrícolas, mas também pastorais, cinegéticas, haliêuticas, florestais). Trata-se de uma instância reguladora voltada a afirmar um direito originário sobre o espaço natural, entendido este como superfície que contém, de forma efetiva ou potencial, os meios destinados a garantir a subsistência e a reprodução física e social da coletividade estabelecida. É um direito originário, no sentido que ele não depende de nenhum outro direito precedente ou superior, mas se fundamenta pura e simplesmente sobre a ocupação primitiva do espaço o qual, todavia, deve fazer imperativamente em seguida a uma prática qualquer de transformação, seja ela material ou simbólica.11 Enquanto originário, portanto, o direito fasiya é imprescritível e exclusivo, isto é, não usurpável; além disso, ele passa a fazer parte integrante dos mecanismos de controle social, que obrigam a conservação do bem fundiário em benefício da coletividade - familiar ou também de cada aldeia (tabanca em crioulo bissau-guineense); so (em malinkê) ou tabanc reticular (sokun) - excluindo a norma livre. O percurso de legitimação mansaya, visa por seu lado a dotar o território de qualidade política e a garantir-lhe a organização. Este percurso não ignora os valores da fasiya, ao contrário os atrai: além disso, reconhece-lhes o estatuto de corpus regulativo pré-existente e, de algum modo, eminente, como acabamos de ver. Contudo, a mansaya exige uma sua autonomia própria que realiza, parece, em virtude de dois procedimentos fundamentais. O primeiro diz respeito com a criação ex novo de um direito que tem por objeto qualquer coisa que antes não existia: é a fundação do lugar político, o mara propriamente dito, em virtude da guerra - como a miúdo na experiência mandingo - ou por outra via (aliança, submissão, protetorado). Afirma-se assim uma espécie de correspondência funcional entre dois atos originários: um concerne à apropriação da terra em um espaço natural, substancialmente anecumênico, como veremos no parágrafo sucessivo; o outro diz respeito à instauração da territorialidade política a partir de uma geografia substancialmente pré-política.12 O segundo procedimento, consecutivo ao primeiro, consiste no entender e no praticar a autonomia não já como desunião, renegamento, oposição e de qualquer modo competição com a fasiya, porém como proclamação de independência e de intangibilidade das duas esferas de legitimidade. Nestas condições, a fasiya vem não só respeitada, mas verdadeiramente garantida nas suas exigências da nova ordem institucional: não por acaso, em uma tradição proveniente diretamente do mandê malinês, o novo mansaya presta uma homenagem simbólica aodugukolotigi, o "senhor da terra", para marcar a diferença dos papéis.13 De fato, a coexistência destes dois percursos de legitimação fundase sobre o mútuo reconhecimento de âmbitos de regulação que não possam reciprocamente insidiar-se porque os campos sociais ao qual se aplicam são constitutivamente diferentes e, por assim dizer, não comparáveis.14

ii. O segundo eixo de desenvolvimento coloca em jogo a dupla farinya/ faamaya, o que significa um exercício do poder político baseado sobre a sabedoria (fa, padre) ou então sobre a força (fanga).15 Com efeito, a autoridade do mansaya, com o seu poder específico exercitado pelo mansa, instaura por excelência a dimensão política na vida social: é a prerrogativa real, plena e autônoma, que consagra o Senhor (ma, como senhor) no entrecruzamento de evocações legitimadoras ambivalentes, cujo alvo é em direção ao conjunto das qualidades que a pessoa deve reunir para poder aspirar ao altíssimo cargo (ma, como homem), e por outro em direção à referência suprema das responsabilidades e dos poderes, ou seja Deus (make, o Ser Supremo). E, todavia, a autoridade mansaya pode sofrer derivações ao longo da evolução da história, como repetidamente dito, e assumir conotações controversas.16 Aquela farin descende dos ancestrais (fa, pai) e o código que a identifica é a sabedoria, própria dos avós. A autoridade faama, ao contrário, associando-se à força (contração de fangama, aquele que é dotado de força) fia-se mais na eficácia do despotismo do que na virtude do consenso, fruto de uma persuasão gerada do agir de acordo com a justiça.

A dissolução do Mali (século XVII) contribuiu para criar um período de graves perturbações na África Ocidental, vinculado, sobretudo, ao progressivo sucesso do tráfico de escravos de matriz européia e ao conseq üente deslocamento dos fluxos mercantis que abandonam os circuitos meridianos e se organizam geograficamente no sentido dos paralelos. 17 No extremo Oeste do Mandê, digamos entre os contrafortes setentrionais do Fouta Djalon e as bacias dos rios Casamance e Gâmbia, a nova situação leva à consolidação do Gabu,18 um reino que parece reunir e defender a hereditariedade da cultura mansal produzida e custodiada pelo Mali, preservando-a o quanto possível de vestígio oposto, quer dizer, do tipo faamaya e do tipo farinya.19 (Fig.2)

No restante do Mandê, ao contrário, observa-se uma regressão em direção a situações de tipo decididamentefaamaya, como a Segu à qual retornaremos, ou então, no oposto, em direção a formas pré-políticas de organização social e territorial. Esta tendência ao retorno na direção da fasiya não coloca porém de tudo fora do jogo as dinâmicas de tipo mansaya: de fato, emergem apesar disso estruturações mais francamente políticas ainda que de modesto valor, seja em termos de população, que de superfície (confederações de aldeias,chefferies). Neste contesto de reorganização econômico-mercantil em escala sub-continental, na qual a violência organizada si afirma como forma privilegiada da produção de escravos para o tráfico, nasce e se difunde o kafo, quer dizer a estrutura política mais característica do Mandê pós malinês.20 A opinião de Y. Person sobre a natureza do kafo é motivada e convincente: trata-se de um verdadeiro Estado.21 Esta estrutura territorial, todavia, tanto no plano interno quanto no externo, apresenta aspectos equivocados. No plano interno, sobretudo, seja o nascimento seja o funcionamento realizam-se no rastro de um indeslindável emaranhadofasiya/mansaya.22 O kafo surge sobre base familiar, da hegemonia de uma linhagem ou de um clã sobre outros. Neste sentido, ele é um jamana.23 De fato, na percepção e na expressão comum os dois termos terminam por serem usados indiferentemente. Basta pensar, pelo que diz respeito ao Alto Níger, que todos os jamana especificados na nossa pesquisa de campo,24 figuram na lista do capitão M.E.Peroz quais kafo existentes na época do primeiro império de Samory, digamos na assinatura do tratado de Bisandugu entre a França e o Almami (1887). De resto, a emergência da função política no kafo comporta necessariamente a passagem do sistema regulador fasiya àquele mansaya. Este último, todavia, é freqüentemente muito frágil para reivindicar uma completa autonomia, motivo pelo qual é condenado a conviver, de formas variáveis, com o primeiro. Só quando, de vez em quando, um líder, um kelétigi particularmente valoroso, arrojado e às vezes visionário, como no caso do Samory (Fig.3), reafirma com a guerra e a conquista territorial os valores da política e as suas instâncias de funcionamento, mansaya e fasiya reassumem os papéis distintos que são próprios deles.25

2. Estatutos ambíguos da violência organizada: a donsoya

No Mandê a violência organizada atinge a sua importância social e o seu perfil cultural na marca geral da ambigüidade. Esta pode ser enxergada como pistas de uma mimese, um jogo tenaz de refração entre o exercício brutal e o exercício disciplinado da força. Como primeiro exemplo, citarei sem dúvida aquele do donso, figura social estratégica do Mandê que condensa uma ambivalência entre o mais arcaico, historicamente persistentes e espacialmente difusos. O donso é o caçador, um ícone universal e elevado da prática social e também do imaginário coletivo mandingo, sem dúvida pré-existente ao duguba e, aliás, essencial protagonista da sua constituição. Ele apresenta alguns traços caracter ísticos: é forte, é corajoso, sabe manejar as armas, é um personagem consciente das suas habilidades e da sua força que, todavia - ou talvez próprio por isto - não as pratica gratuitamente, dir-se-ia, mas as endere ça à obtenção de um resultado. A força e a habilidade não se exprimem em uma violência cega e destrutiva, mas se conjugam para dar curso a operações reflexivas e por princípio moral realizar qualquer coisa de benéfico. Parece isto o nervo de uma construção axial da cultura mandê, com uma faceta dupla. A primeira diz respeito à consciência que existe qualquer coisa que se pode chamar "mal absoluto" - encarnado, por exemplo, por criaturas não humanas, pré-humanas ou sobrenaturais - e que este mal absoluto se exprime freqüentemente como violência cega, como subjugação injustificada, como castigo excessivo, desproporcional à culpa. A segunda faceta, por seu lado, entrelaça-se com a primeira e apresenta um conteúdo eminentemente geográfico. O mal absoluto, de fato, em seguida o exercício irrefletido da força que configura a violência bruta, reina sobre um mundo que é anecumênico, sobre o espaço selvagem. É esta uma das conotações do wula, designador bastante complexo que encerra no seu horizonte semântico a idéia central que se trata da superfície terrestre ainda não marcada pela ação humana, ainda fora da atividade domesticadora do homem e por isso em definitivo ainda não investida do processo de territorialização. Na realidade wula é sim um espaço natural, mas o seu estatuto conceitual e jurídico varia em função da localização. Integrado no dugu (o assentamento), wula é apropriado: pertence ao so, à aldeia, é submetido a um controle simbólico serrado (é reconhecido, denominado), é investido de práticas de uso também mais intensas, ainda que debilmente reificadoras. Pensa-se a wula como o espaço que circunda a aldeia onde são localizados os locais dos rituais (floresta sagrada, por exemplo), aonde se vai à caça e a pesca, onde se procura as ervas medicinas, onde se vai colher os frutos da mata e da submata, onde se leva os animais para pastar, enfim onde se vai buscar a lenha, sem a qual a vida do so não seria nem mesmo concebível. Em suma, wula como parte do nodu26 é um território para todos os efeitos, que constitui, entre outros, essencial garantia para a estabilidade do so enquanto superfície de reserva para o crescimento demográfico e as expansões agrárias. Contudo, se ao contrário está localizado fora do nodu, Wula acaba sendo simples espaço, pura extensão natural. É necessário distinguir ainda aqui dois significados semânticos do designador. O primeiro propõe wula como espaço limítrofe de indeterminada jurisdição, que poderia ser por isso integrado no nodu ou então apropriado no quadro da criação de um novo dugue, pó fim, da criação de um sokun. O segundo evoca wula como grande extensão vazia, como natureza hostil, impenetrável: é o espaço verdadeiramente selvagem, sentido como longínquo, sombrio, temível.27

No momento em que o homem se achega ao wula para transformá-lo através de operações de tipo simbólico, material ou então organizativo, a violência muda seus traços, sofre o mesmo efeito do processo civilizatório pelo qual o espaço se transforma em território, e se torna um fator da metamorfose de wula em dugu (lugar habitado, assentamento, e, por extensão, território). Neste contexto, a habilidade e a força do caçador resultam perfeitamente inseridas no projeto de domesticação do mundo selvagem do qual o homem mandinga se sente investido. E mais: o donso representa a parte mais consistente daquele processo civilizatório do mundo que é o destino histórico do povo mandinga e que Sudiata exprimirá ao seu nível máximo com a criação do Império. É ao caçador, de fato, que nas pegadas do Mansa Ba, cabe explorar os novos espaços, impelir-se nas temíveis profundidades do wula, entrar corajosamente em contato com as forças obscuras que levam o mal (incompreensível e injustificável) e tornar-se sabiamente forte, com o fito de não deixar-se derrotar por ele e, pelo contrário, distanciá-lo, construindo uma espécie de "terra sem mal" onde a violência vem dominada e onde, em seguida, a disciplina da força vem através do seu emprego justificado.28

Nota-se um ulterior complexo de valores que conota o caçador. Este, de fato, não é só exímio no uso das armas, não só pratica a arte da guerra, mas encarna também o espírito dela. O donso na verdade é o depositário da antiga e nobre arte cinegética: um donko, um saber fazer, uma técnica. Mas ele é ainda o depositário de um valiosíssimo donni, o conhecimento profundo, que se conecta novamente enquanto tal às formas codificadas da palavra malinesa, a lada, e talvez ainda mais àquelas esotéricas da kuma koro ba, a grande palavra (kuma) antiga. Estas formas de conhecimento não são evidentemente dizíveis e aparecem ligadas a dois aspectos do comportamento e da vida mesma do donso. O primeiro diz respeito, ainda uma vez com a territorialidade, da qual o caçador é um artífice. Ele conhece wula, o perscruta, o percorre, apropria-se dos seus segredos, o organiza em localidades que cadastra nas características deles e consigna a uma denominação completa, ou seja, que nomeia o campo referencial, simbólico e performativo. A atividade cognitiva na verdade começa com o fixar as referências que consentem o mapeamento mental do wula, e portanto os discurso sobre o wula, e os deslocamentos no seu interior. No domínio simbólico, ademais, ela recolhe os segredos das entidades sobrenaturais que habitam o wula e preserva o inventário dos lugares de culto. Enfim, a apropriação intelectual do espaço produz as informações práticas necessárias à caça. Em suma, retirando-o do estado selvagem, o donso consegue integrar wula não só no universo dos cultos, mas igualmente nas atividades produtivas e nos circuitos da reprodução social. É assim que se desenha uma verdadeira geografia cinegética na qual os lugares entrelaçam a trama dos movimentos dos homens e dos animais, associados a técnicas e instrumentos caso a caso apropriados:29 balé, às margens dos rios e em geral os locais de bebedouros dos animais; binyoro e fuá, clareiras com relvas mais ou menos cerradas (bowé em pular) onde os animais caçados vão se refugiar; tu, a floresta densa; kotu, a floresta com túneis formados pelas árvores ao longo dos cursos de água e nas depressões úmidas; yeren, o manto florestal ralo. Graças ao donso, o território conquista um novo significado semântico, torna-se um "operador social", e a geografia codifica a si mesma não só denotativamente, como fundo e suporte da atividade humana, mas também conotativamente como dispositivo capaz de mudar "a natureza da natureza" e em seguida, por isso mesmo, de mudar a natureza da violência.30

O segundo aspecto diz respeito a dimensão cooperativa da atividade cinegética pela qual, além do valor individual, é a estabilidade institucional e a duração no tempo que contam. E é aqui que se insere a função daton. Em vias de princípio no Mandê a ton é um "corpo regulamentado", para usar a expressão de Delafosse,31estranho à parentela, que age sobre a competência. Esta pode ser de tipo mágico-sagrado e dar corpo a verdadeiras e próprias sociedades secretas.32 Ela pode ser também de um tipo que por apresentar conteúdos iniciáticos, poder-se-ia dizer profissional. Neste caso o saber fazer não se conquista por direito de nascimento, como no sistema nyamakala evocado mais acima, mas nele ingressa através do livre aprendizado ao qual todos, em linha geral, possam participar, desde que dotados das necessárias qualidades. Instituição universal do Mandê, a donsoton apresenta características localmente diferenciadas. No Alto Níger guineano, por exemplo, ela é organizada ao nível de dugu, mas às vezes também ao nível de sokun, e contém aspectos iniciáticos que justificam de qualquer modo o termo com o qual vem usualmente indicada em língua francesa: confrérie(confraria). Tornam-se caçadores depois de um período de aprendizado, durante o qual o aprendiz, donso karandé, não pode caçar só, mas acompanhado do seu mestre, o caçador experimentado donso karamo. A aprendizagem pode durar um longo tempo e é encerrada a critério do mestre. Os donso karamo escolhem entre os seu pares o donso kun, o chefe da ton, caçador particularmente hábil, generoso, capaz de evitar os conflitos de interesses, imparcial e, sobretudo, dotado de um poder místico que ele exercita sobre o wula para propiciar a caça e afastar os perigos do espaço anecumênico. O donso kun fica na função enquanto a assembléia dos donso karamo reconhecer-lhe as qualidades pelas quais foi originariamente escolhido. Ele exercita as suas prerrogativas de vários modos: aconselha, concede permissão para sair à caça, assegura com a sua oração e os seus poderes sobrenaturais a prosperidade para a ton e para cada um de seus membros. Em roca, tem direito ao respeito dosdonso e a uma parte da caça, em geral o pescoço do animal. O donso kun, enfim, guia a cerimônia anual de abertura da caça, da qual só podem participar os membros da ton. A cerimônia é dedicada ao irmão de Sundiata, Manden Bori, o primeiro e mais eminente dos donso, a quem se pede ajuda e proteção.33 Uma ulterior figura dodonsoton alto-nigerino é o donso kemo, representante da confraria junto à aldeia e seu portavoz nas reuniões que concernem ao wula. Finalmente, alguns donsoton possuem o seu séréwa, que pode ser ou não caçador, encarregado de narrar as crônicas da ton e os feitos de cada um dos caçadores, de cantar os louvores dadonsaya, de animar as vigílias fúnebres em honra de um donso karamo.

Através da iniciação aos mistérios da caça, à aprendizagem das técnicas, à participação na vida da ton, ao compartilhamento dos valores da donsaya34 e, naturalmente, à concreta prática cinegenética, o donso conquista consciência do seu status social, cujas raízes aprofundam-se seja na tradição mítica, seja na histórica. Os grandes do Manden, a começar pelo Bori, são heróis de caça: Sundiata pode exaltar entre os seus muitos títulos, aquele prestigioso de simbon, grande caçador, sem dúvida, pertecente à ordem instituída por seu avô, Mamadi-Kani; Tiramanghan, o mítico fundador do Gabu, é um Traoré, o clã dos caçadores, um dos dezesseis que dão origem ao Mandê malinês; Biton Kulibaly, o fundador do mais tardio reino de Segu, é por sua vez um donso, destinado a tornar-se ma fa donso, caçador de homens e, isto é, guerreiro.35 Mas o donso não tem somente um ponto de referência mítico. Ele tem sido o elemento mais eficaz e incisivo dos exércitos mandê, elite guerreira forjada através da fidelidade incondicional ao mansa, não menos que através da honra no combate, valores que o consideram toti, homem livre, valente e leal, incomparavelmente superior ao sofa, ainda que fiel e destemido soldado, porém, escravo.

3. Estatutos ambíguos da violência organizada: dunya-mara, uma cosmopolismandinga?

A metamorfose da violência acompanha, portanto, a transformação do espaço em território e a passagem de Wulapara dugu. Mas antes ainda, ela parece um fator constitutivo de dunya - o mundo terrestre como tal36 - o elemento que acompanha o seu nascimento, a parteira que permite a individualização de wula, o mundo dos homens, de qualquer coisa que o precedeu e que era evidentemente um universo pré- humano.37

Em sua pesquisa sobre kumaba mandinga, S. Camara enfrenta o tema da gênesi deste mundo que não é certamente humano, mas que é, no entanto, disposto para acolher o homem secundando-o e, aliás, exigindo dele ação. No seu último livro,38 referente aos percursos iniciatórios do mandê senegalês-guineense, o nascimento do mundo é visto não tanto como uma "criação",39 mas antes como um parto: as forças presentes são difíceis de definir-se, nem se sabe em realidade porque nunca as dinâmicas da mudança se ativam para unir-se às formações do mundo humano sub specie de dunya, cujas entranhas tocará depois de proceder à individualização dos vários espaços: wula, dugu, mara. Mas aquilo que a cosmogonia descrita por Camara relata é justamente um sofrimento que acompanha o parto do mundo, no qual parecem entrela-çar-se os percursos instituidores da ordem de uma parte através da palavra e de outra exatamente através da violência.

Se é verdade que o campo da vida (balokena) vem inseminado da palavra, ele, todavia, produz atos (p.35 e s.). É assim que, no arcano depósito das possibilidades que precedem o mundo, um movimento gerado pela capacidade de sentimento (a compaixão, o amor sincero...) enquanto abre a extensão na sua vacuidade primordial, coloca a distinção crucial entre o universo dos "símbolos", que traz consigo a luz, e aquele das "coisas", marcado pela opacidade e, portanto, falso. No formar-se da extensão - um termo geográfico primordial40 - acompanham as primeiras articulações entre a vila celeste (santosu), a vila terrestre (dugumasu) e a vila de meio (talanteemasu). Mas é a denominação, a enunciação dos dugurentogolu, os nomes verdadeiros e secretos, que "irrigam o lugar vago das existências que virão" e preparam balokena.

A palavra é, portanto, o não giratório princípio ordenador da extensão que se dispõe a tornar-se dunya e, portanto, wula. Permanece, no entanto, neste percurso, o inaudito sofrimento do parto do mundo que será humano, a enfrentar-se desditoso das pulsões, a angustiante, a incessante refração dos estados emotivos nos quais se materializa (a compaixão, o amor, a luz, a água...). De qualquer maneira, a violência da gênese prefigura aquela que acompanhará os eventos que ocorrerão no novo mundo e as configurações que ele virá a assumir - ou seja, a história e a geografia do homem - já que elas serão, em última instância, os resultados de uma ingente "luta dos desejos", destinada a subverter incessantemente cada poder mundano.

A tradição apenas evocada sugere que a violência é uma necessidade cosmogônica, inerente ao nascimento do mundo terrestre. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer, ela acompanha cada nascimento e, particularmente, cada determinação geográfica destinada a articular dunya e a refletir e manter o agir humano, a ação social. O problema apresenta-se com particular acuidade quando se trata de instaurar a mansaya e, com ela, o que a reflete e lhe dá substância, ou seja mara, o lugar político. Reapresenta-se aqui o problema que já foi dos estóicos, de realizar cosmospolis, estabelecendo uma conexão entre a ordem do universo (cosmos) e aquela dapolis, ou seja, o espaço político.41 Tentarei indicar como dunya-mara esta cosmópole mande, convocando ainda a violência como instrumento deste novo disciplinamento geográfico do mundo. É de novo a epopéia de Sundiataque oferece a chave de leitura mais côngrua a respeito do raciocínio que estamos aqui desenvolvendo. E é a belíssima tradição de Wa Kamisoko, traduzida e apresentada por Y.T. Cissé, que explica a necessidade da política, como observa perspicazmente C. Maillassoux.42 Sundiata enfrenta o problema da segurança do Mandê pré-malinês, onde portanto vigoram os procedimentos legitimadores da ação pública de tipo fasiya. A questão é espinhosíssima a partir do momento que se trata de um lado de preservar a liberdade do Mandê das perseguições de Somaoro Kanté, soberano dos Sosso, de outro de extirpar o flagelo do banditismo. Este último se direciona não tanto à açambarcagem de bens, mas de preferência à captura de pessoas para venderem como escravas no quadro do tráfico transaariano. O fato é que, conforme um processo registrado pelo Sudão desde o século X,43 o rapto e a venda de prisioneiros é feito não contra "estrangeiros", mas mesmo no interior do Mandê e também, anonimamente, entre habitantes da mesma aldeia e membros da mesma família. Sundiata realiza uma aliança entre todas as dugutigiya mandingas (confederação de aldeias, chefferies pré-mansais) - tradicionalmente especificadas em trinta - e dá combate a Samaoro, destroçando-lhe os exércitos na batalha de Kirina (1235). O Mandê mansal, ou seja, a constituição política do espaço mandinga nasce de um ato de violência organizada, e está aí o sentido da expressão "Kelé lê ka Mandé lo" : é sobre a guerra que se edificou o Mandê. as, como já na domesticação de wula, trata-se não de uma viol ência cega, mas sim de um uso refletido da força para fins positivos: Sundiata é o líder de uma horoya kelé, de uma guerra defensiva e por isso justa. É em seguida à se-nko(a vitória) contra Somaoro, precisamente, que Sundiata pede aos seus pares de elege-lo soberano de uma federação estável de dugutigiya, com a finalidade de garantir a paz e de eliminar o banditismo escravista, ou seja a forma mais odiosa de siakelé (a guerra étnica, a guerra civil), de dugulenkelé (a guerra entre coletividades estabelecidas, entre aldeias), ou até mesmo de fadenkelé (a guerra intestina).44 "Você afastou a guerra de nossas casas, por isto renunciamos ao nosso poder e te proclamamos niyamoko": assim Kamisoko (p.42) narra os propósitos dos dugutigi. É o ato de nascimento do Mandê mansal e, com ele, do mara. Mara é in primis uma forma de poder. Ele evoca não somente uma capacidade, mas também um direito e um compromisso responsável, intimamente ligado à educação, quanto um poder de comando consciente das suas prerrogativas e dos seus limites. No pensamento político mandinga mara exprime a idéia de poder certo mais complexa, tanto mais que o termo não só evoca uma qualidade pessoal ou institucional, mas torna-se um designador geográfico no momento no qual indica um território político: mais especificamente, o território político de Sundiata e, por extensão, do mansa. Mara, portanto, é o poder político na sua expressão institucional mais alta, cujas condições de exercício são por isso mesma aquelas mais disciplinadoras. Ao mesmo tempo, ele identifica-se com o âmbito espacial do seu próprio exercício, o que produz dois efeitos importantes. O primeiro consiste no afirmar uma qualidade especificamente política do território independentemente da existência de outros poderes que eventualmente se exerçam sobre o mesmo: é a essência mesma da dialética fasiya/mansaya da qual falamos no primeiro parágrafo. A segunda diz respeito àquilo que com uma expressão ratzeliana chamarei o Raumsinn, o senso do espaço mandê. Este confia-se de boa vontade na sua expressão pré-imperial (e, portanto, de muitas maneiras pré-política), a uma figurativização por pontos (os so, as aldeias), mais ou menos nitidamente ligados por linhas que conduzem as relações mais variadas (confederações, alianças, trocas), mas privado de extensão superficial: de início, como disse Wa Kamisoko, o reino de Sundiata vai "do rio Woyo-Wayan-Ko, ao pé do fromager di Kouroussa" (p.281-3). Configura-se pura e simplesmente como um espaço vetorializado, percorrido por uma linha de força que o representa e o descreve: do curso d.água à arvore. Com a criação do império o espaço deixa de ser puramente linear e conquista a área de sua consistência. Por um lado, trata-se de uma área isótropa, investida na sua integridade do poder mansal. Por outro lado, assume o aspecto de uma extensão delimitada por toda parte - ao Norte, ao Sul, a Leste e a Oeste, ressalta ainda Kamisoko - denominado, organizado em estruturas que têm status diferentes e diferentes funcionalidades: domínios da coroa, províncias, estados vassalos. Permanece intacta a alta função do rio Níger como fator simbólico de estruturação do Mandê: il Mansa Ba não é somente ummatigi, senhor dos homens, mas é também um jitigi, senhor da água.45

A mansaya concretizando-se no mara exprime o poder na sua plenitude política: ele é hereditário e distingue-se por sua moderação, a sua sensibilidade às tradições e a sua preocupação pela justiça. O Mansa Ba, respeitoso da legitimidade fasiya e das prerrogativas a ela associadas impregna-se do Mandê e confere-lhe o status de mara, um território superdotado, de algum modo, uma vez que não sofre mas usufrui da autoridade do soberano. De fato, o mara é um espaço de paz e de securança, mas também a substância de uma geografia próspera, um lugar onde o tráfico de escravos que afligia a sociedade pré-malinês não existe mais ( e isto é considerado como um elemento decisivo de civilização), onde os circuitos comerciais foram reativados e estabilizados, e onde, enfim, pode-se dedicar àquela que é por excelência a atividade mandê, ou seja, o cultivo da terra. É assim que Sundiata, que reina do alto de seu trono sobre um império rico e forte, sabe escutar a humilde exortação de um velho sábio que lhe diz: "Mande derrubar as árvores, transforme a floresta em campos cultivados, e só então tornar-se-á um verdadeiro rei".46 É a essência mesma da passagem do estado de natureza ao artificial humano, em virtude do qual um rei torna-se autêntico rei porque derrota a precariedade, cria as condições de estabilidade para o seu povo e pode instituir derrota a os ordenamentos que acompanharão o desenvolvimento civil. Sobre esta que representa a mais importante forma de reificação na geografia subsaariana, se fecha a fisionomia conceitual do mara. A restauração das práticas culturais é o sinal definitivo de uma grandeza que pode ser somente de quem reina sobre o espaço político:47 aquele que afasta a carência, o desastre da fome, colocandose como um construtor de perenidade. Se o Mandê é eterno, é porque il maratigi faz-se seu guardião.

4. Segou: da tègereya à kelètigya

À luz de tudo isso que foi dito, se pode avaliar plenamente o significado cultural, histórico e geográfico do reino de Segu (fig. 4). Digamos que, já a partir do século XVII e, além disso, em medida crescente no curso do século XVIII, a demanda praticamente inexaurível por escravos para o comércio atlântico cria em toda a África ocidental uma regressão da vida política e, em especial, uma degradação do espaço político com o afirmar-se da violência organizada, seguida da guerra real, como instrumento central da produção escravagista para o tráfico.48 No Mandê pós malinês, composto no vale central do Níger por aldeias isoladas (so) e por pequenas dugutigiya, o tráfico escravista europeu criou uma condição geral de instabilidade e de insegurança para os mandigas, em singular correspondência com o que ocorria no Mandê pré-mansal com o tráfico transaariano de matriz árabe-islâmica. Tanto em um como no outro caso, os fins da captura de seres humanos para vender, desencadeiam o banditismo (tègereya)49 nas suas duas formas de jodoya e de soboli.50 A primeira diz respeito ao pequeno banditismo, individual ou de grupos isolados que se formam por uma ação e depois se dissolvem. A segunda, ao contrário, é obra de uma ton, como se designa a Segu, um bando consistente (algumas dezenas) de bandidos às ordens de um chefe (tontigi) que exercitam permanentemente a atividade predatória. Maamari Kulibali, apelidadoBiton, uma vez solitário donso, trona-se exatamente um tontigi que, graças ao sucesso das suas ações violentas e à astúcia das quais dá prova,51 vê crescer a sua força (trata-se de fanga, a força bruta, a mera capacidade de coerção) e acaba estabelecendo um poder estatal (fanga ke): Biton assume o título de faama e estabelece a sua residência em Segukoro (a velha Segu). Nasce assim, em torno de 1720, o reino de Segu, do qual Mungo Park descreverá alguns traços característicos por volta do fim do Setecentos.52 Um século depois, a fase expansiva se detém: os exércitos de Segu são batidos por Peul do Maasina, que sprimem o reino dos seus territórios orientais. Uma nova dinastia, com o chefe Ngolo Jará, assume o poder e o manterá até a chegada das armadas jihadistastuculeur de Omar, em 1861.53

A afirmação da faamaya de Biton, conquanto "regulamenta" o problema da tègereya - e veremos de que modo especialíssimo - não faz mais que afastar para o exterior a atividade predatória, instaurando uma condição bélica contínua, uma kelé permanente que justifica para Segu, segundo J. Bazin a denominação de "Estado guerreiro".54A famaya de Segu é qualquer coisa de bastante diverso da mansaya de Sundiata. No entanto, como observa Meillassoux, Biton - e depois dele Ngolo - chegam à cena pública do nada, não têm uma afiliação de clã que os nobilitem ou ao menos que os legitimem de alguma forma às pretensões de comando. Ser sem passado condena, de qualquer maneira, a ser sem futuro: como observa S. Bagayogo,55 se a mansaya é hereditária (recebe-se e pode-se transmitir), a faamaya é conquistada: isto faz com que as dinastias de Segu tenham débeis fontes de legitimação, porque na morte de cada faama o pretendente à sucessão deve demonstrar a própria sebbaya(potência).

Além disso, este vir do nada representa de per si uma ruptura da tradição, uma derrota a princípio socialmente forte da ancianidade. O primado de moba (ancião, sábio) vem substituído por novos valores: aquele da força física e do ardor no combate, que não são certamente os velhos a possuírem, mas os kamalen, os jovens reunidos na ton.

Biton, de outra parte, não combate o banditismo, mas o pratica. Se o elimina não o faz da maneira de Sundiata, decreta-o pura e simplesmente ilegal, mas obtendo dos so e das dugutigiya que desejem ser protegidas das incursões dos seus tonden (os pertencentes do seu bando) um direito de compensação, nisongo. É o medo da ação predatória que compele, portanto, as coletividades mandingas a reconhecerem a autoridade do faama; e este medo será jogado contra eles, uma vez que a ameaça de um ato predatório sempre possível serve para impedir cada veleidade de insubordinação. Com o passar do tempo, os tributos pagos às dinastias de Segu a título de nisongo tornam-se sempre menos consistente. Em compensação, aumentam outros tipos de obrigações, entre estas o envio de efetivos em caso de guerra. E é aqui que se insere a questão crucial dos jon, e do peso que no todo a jonya assume no reino. A passagem, se assim se pode dizer, do banditismo interno ao banditismo internacional, comporta a institucionalização da kelé como fundamento de um específico modo de produção estatal em Segu. A guerra é feita para fazer prisioneiros a se transformar em escravos. Segundo a reconstrução de J. Bazin, cada kelètigya (expedição guerreira) "produz" certa (importante) quantidade de escravos:56 Estes vão ao faama em um número variável de dois terços (2/3) à metade, enquanto o restante permanece com aqueles que participaram da expedição bélica. Os jon que vão abastecer o tesouro real tomam por sua volta três destinações principais: i) a venda, efetuada diretamente pelo faama a mercadores de passagem (Jula, Mauri, os habitantes da Mauritânia), ou então nas aldeias maraka, que funcionam como centros mercadores,57 ou então enviam através de rios grupos em direção às grandes praças comerciais como Bamako, Kangaba e Kankan; ii) a redistribuição, que segue canais diversos (o grupo familiar, a rede clientelista - sobretudo jali, conselheiros, mori, ou seja sábios islâmicos encarregados de cuidar da baraka do soberano) - enfim, a unidade encarregada de assegurar a produção agrícola destinada a satisfazer as exigências das cortes e, máxime, dos foroba-jon, os escravos públicos, ou seja aqueles a serviço das coroa; iii) por fim, os escravos atribuídos exatamente ao foroba-jon. Destinados a reforçar os exércitos reais, eles constituem na realidade a verdadeira força do faama, tornado assim a nova ton, a ton-jon que substitui a originária ton bandida. Entre os foroba-jon vêem afinal escolhidos os temíveis sofa, o corpo especial encarregado da guarda do palácio.

O Estado guerreiro e o modo de produção que o substancia, projetam-se no solo com uma específica organização territorial. No entanto, as fronteiras do reino são indeterminadas e móveis, em relação à força da qual o faama pode dispor para assegurar o seu poder. No interior do reino então, mais que uma estruturação de tipo administrativo, afirma-se um ordenamento funcional das aldeias. Se o coração da bamanaya (a sociedade bambara) é o faama, o eixo geográfico do sistema é obviamente Segu, a sede do soberano. Em redor da capital encontram-se aldeias onde são aquarteladas as guarnições dos escravos, e por isso, chamadas ton-jon. Cada um destas aldeias ton-jon é circundada de pequenas aldeias de cultura (cikédugu), habitadas da horon e da jon(incluindo as mulheres, jonmuso), encarregados dos aprovisionamentos. Vêem também as aldeias maraka, já mencionadas, algumas das quais, particularmente importantes como Sansanding, têm marakadugu como satélites (Togu, Busen) e têm também os seus específicos cikédugu. Aldeias mais destacadamente políticas, além disso, e disseminadas em todo o coração do reino, são os dendugu (literalmente: aldeias dos filhos) onde são estabelecidos os princípios da linhagem real. Lembramos enfim as aldeias cujos chefes são especificamente designados pelo faama como seus representantes e que exercem assim certo poder sobre assentamentos circundantes.

A importância crescente dos jon no âmbito da bamanaya, o aperfeiçoamento da kelé como máquina produtiva que pode contar com dispositivos territoriais sempre mais funcionais, não fazem senão aumentar o mal-estar coletivo e a desagregação das instituições mandingas. Em um reino no qual a guerra é "o destino de cada cèfarin", de cada homem corajoso, livre ou escravo que seja, o soberano torna-se Kelè Mansa, um polemarco;58 o espaço político declina no âmbito da exibição e de exercício de um poder exclusivamente fanga. A legitimação fasiya, frente a qual até mesmo Samory mostrará respeito, vem colocada de fato fora do jogo da faamaya bambara que negligenciando o mútuo reconhecimento das fontes de legitimação, esvazia o código mansal do núcleo mais resistente que por séculos garantiu a força e a durabilidade da política.

5. Entre guerra e poder: a territorialidade como instância moral

No horizonte cultural mandê, o discurso sobre a guerra impacta-se com uma força e uma complexidade realmente notável. É no signo da violência, ainda que disciplinada, que se produz os grandes eventos e particularmente aqueles destinados a criar os quadros territoriais nos quais o homem mandinga pode conduzir serenamente a sua existência individual e desenvolver plenamente o próprio destino histórico. Dunya, o mundo terrestre, especifica-se progressivamente como casa do homem em primeiro lugar enquanto wula, depois enquanto dugu, finalmente enquanto mara: o Mandê é o lugar onde, precisamente, estas três configurações do espaço geográfico fundem-se harmoniosamente.

Uma problemática cosmopolitana reverbera-se no pensamento político e na concreta prática social mandê. No seio desta problemática define- se processualmente a idéia que existe um exercício da violência, e por extensão uma prática bélica, destinados a - e indispensáveis para - fundarem uma territorialidade civil. A torção à qual esta idéia vem submetida é dupla, ideológica e histórica. É sim verdade, com efeito, que existem guerras que podem "facilmente" definir-se "justas" (a guerra defensiva horoya kelé, a guerra conduzida para prevenir os conflitos civis); é igualmente verdadeiro, todavia, que também uma kelè desencadeada por motivos expansionistas, do momento que se resolve pela difusão da ordem Mandê - e, portanto, em uma ampliação daquela precios íssima qualidade geográfica da superfície terrestre que é o mara - acaba por ser ideologicamente legitimada. Historicamente de resto - e estamos na segunda torção - viu-se como a autoridade faamaya pode erigir a ordem em valor absoluto - e a submissão total no seu corolário eminente.59

No Mandê, uma cesura precisa distingue aquele que detém o poder e aquele que dele é privado: o primeiro,fangatigi ou maratigi que seja, não só possui um atributo, mas sobretudo é legitimamente habilitado a exercitar um poder; o segundo, por seu lado - fangatan, maratan - é certamente desprovido do poder, mas, mais radicalmente, não tem título para o seu legítimo exercício.60 Por outro lado, a titularidade do tigi não esgota completamente a instância profundamente moral contida nas express ões que indicam o poder. Este último, de fato, pode ser exercitado por quem tem direito no "modo justo", ou então com abuso. Em tal caso o poder é sancionado por uma marca negativa enquanto diagoya (coercitivo), diugu (errado), dialan (estéril). Compete à política, em definitivo, mediar entre os usos mais ou menos abertamente instrumentais a que se presta o discurso sobre a guerra, para impedir, em última instância, que a territorialidade venha a ser reabsorvida além cosmópole, em direção as configurações mais primitivas e temíveis do mundo humano.

Notas

Revista Varia História

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