quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Salto para o infinito

Pequena esfera no centro de outra esfera maior: assim os antigos gregos imaginavam a terra e o universo. essa imagem se desfez há 400 anos, quando galileu observou o céu com uma luneta que ele mesmo fabricou


Por Françoise Balibar

ESA Nasa
Ao direcionar sua luneta para o céu, Galileu (acima) iniciou um irreversível processo que tem aberto o universo cada vez mais ao conhecimento humano (na foto maior, berçário de estrelas na Pequena Nuvem de Magalhães).

Em 1637 - quase 30 anos após ter usado seu telescópio para observar o céu, feito cujo 400º aniversário foi celebrado em 2009 -, o astrônomo italiano Galileu Galilei, aos 68 anos, ficou cego do olho direito. Um ano mais tarde, já totalmente cego e dominado pelo desespero, ele escreveu a Elias Diodati, seu amigo mais fiel: "Ilustre senhor, Galileu, seu servidor e caríssimo amigo, por infortúnio, está agora irremediavelmente cego. Vossa Senhoria pode imaginar meu atual estado de abatimento ao pensar como o céu, o mundo e o universo - cujas dimensões, graças a minhas observações e demonstrações, foram aumentadas cem e mil vezes em relação ao que era conhecido ou havia sido observado pelos sábios dos séculos passados - ficaram reduzidos ao espaço ocupado por minha pessoa."

NO SISTEMA COSMOLÓGICO DOS ANTIGOS GREGOS, O HOMEM ENCONTRAVA-SE PRISIONEIRO NO INTERIOR DE UM MUNDO FECHADO

Nasa
Galileu viu na Lua um relevo acidentado, tal como o da Terra. À direita, a visão cosmológica dos antigos gregos, na interpretação de Andreas Cellarius (século 17).

Palavras de um homem a quem a cegueira, ao reduzi-lo unicamente à visão do espírito, concedera a possibilidade de "enxergar" a posição que ocupa, tanto em um instante, entre as coisas deste mundo, como para sempre, na história dos homens. É como se a cegueira, ao privá-lo da visão, o capacitasse a adotar o ponto de vista da posteridade e de ver em si mesmo o homem por meio de quem a humanidade saiu do "mundo fechado" para se abrir ao "universo infinito", de acordo com as expressões do filósofo e historiador das ciências francês Alexandre Koyré (1892-1964).

A origem da ideia de um mundo fechado encontra-se na filosofia grega. A partir do século 4 a.C., a maioria dos filósofos e cientistas gregos propôs que a Terra é uma pequena esfera (a superfície mais simétrica) colocada no centro de outra esfera giratória muito maior, na qual estão dispostas as estrelas.

Durante os 20 séculos decorridos até a época de Galileu, diversos sistemas cosmológicos foram sobrepostos a esse esquema, a fim de levar em consideração os movimentos do Sol, da Lua e dos planetas (literalmente, os "astros errantes") que, supostamente, evoluíam no espaço entre as duas esferas. É importante observar que, nesse modelo, nada - nem espaço nem matéria - se encontra no exterior da esfera das estrelas; o mundo é, portanto, fechado, estando circunscrito inteiramente ao interior da segunda esfera. Por maior que seja o diâmetro dessa esfera (em comparação com o diâmetro da esfera terrestre), o homem encontrase enclausurado, e de algum modo prisioneiro, no interior desse mundo fechado.

Nesse esquema de pensamento, a cosmologia (vista como um conjunto de concepções relativas à estrutura do universo) e a astronomia (definida como a observação do céu tal como ele se apresenta à nossa vista) estão intimamente associadas e indissociáveis. O filósofo e historiador das ciências norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996) concebe o entrelace de ambas como a origem da "eficácia despropositada" da ciência ocidental.


COM SUAS DESCOBERTAS, GALILEU DERRUBOU A CONCEPÇÃO GERAL DO MUNDO, TANTO A DOS INTELECTUAIS DE SUA ÉPOCA QUANTO A DOS HOMENS DO POVO

Na sua opinião, a necessidade assim imposta à cosmologia de produzir ao mesmo tempo uma concepção do mundo e uma explicação dos fenômenos observados canalizou o desejo inato do homem de integrar o universo em um sentido bem particular: o da busca de explicações científicas, fortalecendo, desse modo, o poder da cosmologia. Assim, "a astronomia tem a possibilidade, em alguns casos, de destruir - por razões próprias à sua especialidade - uma concepção do mundo que o havia tornado compreensível aos indivíduos, especialistas ou não, de determinada civilização". Eis precisamente o que se produziu em 1609: as observações astronômicas de Galileu demoliram a concepção geral do mundo, comum aos letrados e ao homem da rua.

Os sistemas coperniciano e ptolemaico, cujos adeptos se enfrentaram no século 17, são ambos, ao mesmo tempo, cosmológicos e astronômicos. Isso fica explícito no próprio título de uma das grandes obras de Galileu, Diálogo sobre os dois grandes sistemas do mundo, no qual os sistemas ptolemaico e coperniciano surgem com a mesma base - duas formas alternativas dentro da mesma moldura intelectual geral, em que toda modificação introduzida na explicação astronômica (por exemplo, a proposta por Nicolau Copérnico, em 1543, no livro De revolutionibus orbium coelestium) implica necessariamente uma modificação correlata na concepção cosmológica da estrutura do mundo.

Nessas condições, não surpreende que o debate suscitado pela explicação heliocêntrica, proposta por Copérnico (1473-1543), não se tenha restringido a uma disputa entre cientistas (astrônomos), mas tenha sido considerado uma ameaça à ordem estabelecida, baseada em uma concepção geocêntrica do mundo. Tampouco surpreende que as observações e interpretações de Galileu a respeito de manchas brilhantes que evoluem na interface das zonas lunares de sombra e de brilho, tal como a Lua é vista da Terra, tenham sido consideradas ainda muito mais ameaçadoras para a ordem estabelecida do que o outro grande acontecimento científico de 1609, a publicação de Astronomia nova, de Johannes Kepler (1571-1630).

Tanto mais que as observações de Galileu tinham sido feitas com a ajuda de um instrumento fabricado a partir de uma bugiganga encontrada à venda no mercado, ou seja, um instrumento de tal simplicidade que um simples mortal pode reproduzir por conta própria. Em compensação, salvo os especialistas, quem estaria em condições de ler Astronomia nova? Quem se interessaria pelas órbitas elípticas dos planetas exibidas por Kepler?

HÁ QUATRO SÉCULOS, O ASTRÔNOMO ITALIANO INTRODUZIU A IDEIA DE UM UNIVERSO COM ESTRUTURA ESPACIAL HOMOGÊNEA, SEM NENHUMA HIERARQUIA OU REFERÊNCIA A UMA ORDEM DE VALORES

Os astrônomos eram os únicos seres capazes de interpretar os resultados obtidos por Kepler como uma mudança na nossa concepção do mundo, ao passo que, a partir da descoberta das montanhas na Lua, ninguém mais poderia olhar para ela enxergando um espelho polido, uma superfície lisa radicalmente diferente da superfície terrestre, como sugeria a concepção das duas esferas - uma, imperfeita e rugosa (a Terra); outra, perfeita e cristalina (a esfera celeste).

Tendo sido observadas por Galileu, e ainda que ele tenha sido o único a enxergá-las por um tempo - além de Kepler, astrônomo profissional que adaptou a luneta enviada por Galileu à sua própria observação -, as "luas" de Júpiter (que ninguém vira até então) não seriam precisamente a prova de que, afinal, algo girava fora da órbita da Terra? Em consequência, o espaço já não poderia restringirse à sua porção no interior da esfera celeste. Pior ainda: a Terra deixava de ser o centro do universo (constatação que, mais tarde, Sigmund Freud acabou considerando como a primeira "ferida narcísica" infligida ao homem; a segunda foi a teoria da evolução de Darwin e a terceira, sua própria descoberta do inconsciente).

Desse modo, a concepção do "mundo fechado" perdeu sua coerência: ela não condizia mais com a experiência. Qual seria, então, a concepção do mundo correspondente a esse "universo infinito" citado por Koyré? O fato da fragmentação do mundo fechado e de sua abertura, por si só, não implica forçosamente que o universo tenha uma dimensão infinita. Nesse aspecto, está em questão a realidade física do infinito. Sabe-se que Kepler se opunha à ideia de um universo infinito porque, dizia ele, tal universo comportaria necessariamente regiões vazias de matéria - um puro contrassenso, em sua opinião, uma vez que é impossível a existência de espaço sem matéria.

A posição de Galileu sobre a questão do infinito é mais sutil: ele se recusa a identificar o movimento inercial (aquele que é comme nullo) com o movimento de translação mediante uma velocidade uniforme porque, dessa forma, o objeto móvel poderia ser transportado ao infinito, hipótese julgada por ele irrealista. Mas o mesmo Galileu, ao demolir a concepção de que o cosmos está ordenado segundo uma hierarquia (o firmamento, perfeito e eterno, em face da Terra, corruptível e instável), introduziu a ideia de um universo cuja estrutura espacial é homogênea, um mundo uniforme destituído de qualquer hierarquia, sem a menor referência a uma ordem de valores.

Ele introduziu uma visão cujos pontos em sua integralidade devem ser considerados do mesmo modo - em outras palavras, um espaço geométrico euclidiano, incluindo o infinito em sua própria definição; um mundo em que é possível fundamentar a matematização do mundo físico, ou seja, a física moderna.

Fotomontagem da Nasa que mostra Júpiter (no alto, à direita) e as quatro luas descobertas por Galileu, a partir de cima: Io, Europa, Ganimedes e Calisto. Os satélites jupiterianos eram a prova de que algo não girava ao redor da Terra.

É verdade que não estaríamos celebrando as descobertas astronômicas de Galileu com tanta pompa se as consequências delas não tivessem possibilitado fundar a "ciência moderna". Ao substituir a estrutura hierarquizada do espaço pela uniformidade que caracteriza alguns espaços geométricos, Galileu deu à geometria - e de modo geral à matemática, cuja aplicação fora restrita desde a Antiguidade à compreensão do movimento dos objetos celestes (e, portanto, perfeitos) - a possibilidade de participar da explicação dos fenômenos terrestres que, daí em diante, foram considerados tão perfeitos quanto seus homônimos celestes.

Três séculos mais tarde, em 1919, Albert Einstein, herdeiro de Galileu - não tanto do astrônomo, mas do inventor da ideia de matematização da natureza -, depois de ter elaborado, mediante intensos esforços e numerosos períodos de desalento, o que se designa por teoria da relatividade geral e que leva seu nome, apercebeu-se, no aprofundamento da reflexão sobre o assunto, que essa teoria físico-matemática concebida inicialmente como uma teoria da gravitação era, na realidade, uma teoria do universo e, portanto, uma cosmologia. O enlace entre astronomia e cosmologia, que em grande parte esteve na origem da ciência moderna, redundou finalmente em uma absorção da cosmologia pela ciência. A cosmologia acabou sendo um ramo da física.

Françoise Balibar, professora emérita de física na Universidade Paris-Diderot, é autora de Galileu: o mensageiro das estrelas, com Jean-Pierre Maury (Paris, Gallimard, 2005) e de Einstein: uma leitura de Galileu e Newton (Lisboa, Edições 70, 1984). O presente artigo foi extraído da conferência "De Galileu a Einstein", proferida por Françoise Balibar na sede da Unesco em 15 de janeiro de 2009, por ocasião do lançamento do Ano Internacional da Astronomia.

Revista Planeta

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