sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Revolta e forma-mercadoria


Revolta e forma-mercadoria
Publicado em 14 de março de 2010

Se a mercantilização da insatisfação contra padrões da indústria cultural virou o próprio motor de funcionamento da indústria cultural, o punk foi um dos processos que deu força a essa guinada nas últimas três décadas.

Atualmente, só é possível falar sobre o movimento punk por meio de sua inserção em uma ampla análise das modificações da indústria cultural nos últimos trinta anos, pois, mais que um estilo musical influente para a cultura pop e um padrão de conduta para jovens nos anos 1970 e 1980, o punk aparece claramente hoje como um ensaio bem-sucedido de reconfiguração das dinâmicas hegemônicas da indústria cultural e das lógicas que orientam seus produtos.
É certo que o uso de um termo como “indústria cultural” pode parecer um anacronismo, ainda mais em uma época como a nossa, que insiste na existência de uma disseminação absoluta de estratégias múltiplas de recepção que orientariam nossa relação com a cultura. No reino do fluxo contínuo e plástico de “informações” que circulam em sistemas “desprovidos de centro”, que sentido faria insistir em realidades “monolíticas” como as pressupostas pelo uso do termo “indústria cultural”?
Contra os arautos da cultura contemporânea, como o espaço por excelência das multiplicidades puras, poderíamos lembrar da lógica inexorável da realidade econômica que demonstra, ao contrário, a centralização, cada vez maior, dos pólos de produção e distribuição de “bens culturais”.
Grupos de mídia/entretenimento/tecnologia, como Sony, Universal e Newscom, que controlam a produção, a difusão e o aparelhamento tecnológico da cultura, são realidades recentes que demonstram o caráter sistêmico e centralizado da cultura contemporânea.
No entanto, é verdade que isso não significou uma limitação das possibilidades de escolha oferecida para targets cada vez mais específicos (mesmo que tentar comprar um CD de Brian Ferneyhough, por exemplo, continue sendo uma aventura sem fim).
A velha visão da indústria cultural como processo de disponibilização de conteúdos ideológicos positivamente enunciados, como campo no qual estereótipos ideologicamente interessados eram criados e conteúdos normativos fornecidos por meio de padrões de identificação, não dá mais conta da integralidade do que está em jogo atualmente; embora dizer que tais padrões se esvaíram seja, simplesmente, desonesto.
Tal situação significa, na verdade, a obsolescência de colocações como as que vemos em Michel Foucault quando afirma em Microfísica do poder (Graal, 1996): “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu… mas seja magro, bonito, bronzeado!’”. Ou seja, apresente sua sexualidade… mas no interior limitado de formas socialmente fornecidas e codificadas pela indústria cultural.
É verdade que podemos encontrar atualmente nos produtos da indústria cultural tanto imperativos como “seja magro, bonito, bronzeado” quanto “seja doente, anoréxico, desajustado”, o que demonstra a ausência de vínculos entre conteúdos normativos privilegiados e produção midiática. Isso poderia ser água no moinho dos que defendem a realidade da cultura de consumo como campo das multiplicidades puras.
No entanto, tal “ecletismo hedonista” talvez apenas indique, como disse Guy Debord em A Sociedade do espetáculo (Contraponto, 1996), que “à aceitação dócil do que existe pode juntar-se a revolta puramente espetacular: isso mostra que a própria insatisfação tornou-se mercadoria, a partir do momento em que a abundância econômica foi capaz de estender sua produção até o tratamento desta matéria-prima”.
Se esse realmente for o caso, se a mercantilização da insatisfação contra padrões da indústria cultural virou o próprio motor de funcionamento da indústria cultural, então podemos dizer que o punk foi um dos processos que deu força a essa guinada.
Em direção à mercantilização da insatisfação
Todos conhecem a história. No verão de 1975, jovens ingleses suburbanos e ex-estudantes de faculdades de artes recuperaram o som primário de bandas de garagem dos anos 1960 contra o caráter sinfônico (sic) e grandioso do rock progressivo. Esse processo já era visível em bandas que se apresentavam em clubes nova-iorquinos como o CBGB’s (Ramones, Television, Blondie etc.).
No entanto, coube aos ingleses (em especial à dupla Vivienne Westwood e Malcolm McLaren) juntar a esse impulso de retorno ao primarismo musical uma lógica da bricolagem (posteriormente atualizada pelos samplers da música eletrônica) e da apropriação de restos e ruínas da cultura pós-industrial de consumo. Tudo isso temperado com leves laivos anarquistas e palavras de ordem de maio de 1968 (que aparecem, por exemplo, na letra de “Anarchy in the UK”, dos Sex Pistols).
Como resultado, Westwood foi catapultada para o centro da alta-costura internacional, McLaren transformado em guru dos publicitários da Saatchi & Saatchi e a cultura pop entrou um caminho aberto para a reconfiguração sem precendentes de estilos e referências.
No entanto, Westwood e McLaren tinham feito mais. Eles haviam revelado os modos de estetização de um profundo processo de esgotamento e desilusão juvenil com as promessas de modernização do capitalismo (lembremos que estávamos no epicentro da decadência econômica inglesa). Estetização essa baseada na posição bruta e no desencantada da revolta (desencantamento claramente expresso na atopia do “no future”) e no jogo, cada vez mais vertiginoso, de bricolagens com restos da cultura reduzidos a imagens.
Vários anos se passaram para que a indústria cultural percebesse que ali estava o cerne de sua sobrevivência nas próximas décadas. Tal compreensão implicou um amplo movimento de mutação no qual as representações socioculturais midiáticas começaram, digamos, a flertar com o negativo.
Ou seja, depois do dia em que The Clash virou fundo musical para filme publicitário da Levi’s, a indústria cultural aprendera a oferecer “tipos ideais de identificação” marcados pelo desencantamento em relação às promessas de modernização sociocultural e pela encenação da revolta. Um pouco como se o desencantamento com o capitalismo se tornasse a mola de sustentação do próprio capitalismo. A lista de exemplos advindos da música pop é interminável e desnecessária.
No entanto, a indústria cultural pautou suas produções, de uma forma cada vez mais forte, pela bricolagem que marca todo material apropriado com o selo da equivalência-geral e da descartabilidade que não tem medo de dizer seu nome. Como se nenhum material devesse realmente ser levado a sério.
Assim, com a entificação da lógica da descartabilidade e da posição bruta da revolta, estava pronto o mecanismo geral de mercantilização da insatisfação. Mecanismo que não tardou a migrar rapidamente da música pop para a moda, o design, a publicidade e outros pólos industriais de produção de glamour (como a arte “espetacular” britânica estilo Sensation). Há uma linha reta que vai do punk às campanhas heroin-chic da Calvin Klein, à autoderrisão da Diesel e à autocrítica da linguagem publicitária da Benetton. No entanto, a linha termina exatamente aí.
De fato, não seria totalmente correto resumir tudo o que estava em jogo no punk a um ensaio geral para a implementação do processo de reconfiguração contemporânea da indústria cultural. A partir dele, houve também uma tentativa de constituir margens da cultura midiática por meio de pólos alternativos de divulgação e produção (a Factory Records, de Tony Wilson, gravadora de Joy Division e Durutti Column, é o melhor exemplo aqui).
Alguns dos trabalhos mais criativos da cultura pop vieram à tona a partir das vias abertas pelo punk. Ao menos um bom poeta sobre o desencanto juvenil saiu da linha de montagem do punk: Ian Curtis. Um ensaio de vinculação política entre a linha de frente da cultura pop e certas aspirações esquerdistas foi tentado (The Clash, Gang of Four). Contudo, o mínimo que podemos dizer é: sem muito sucesso.
De qualquer forma, a história fez questão de mostrar a impossibilidade de uma noção como margens da cultura midiática, basta ver o destino de revistas e selos anteriormente vinculados aos desdobramentos do que veio depois da cena punk. Os que não tiveram vida curta passaram por um processo festivo de absorção. Como resultado final do punk, ficou a questão sobre a estetização adequada do nosso desencanto.
Vladimir Safatle é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP)



Revista Cult

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