sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Muro de Berlim


Publicado em 28 de março de 2010

Vinte anos depois da queda do Muro, os debates sociais na Alemanha indicam uma tendência surpreendente: a crítica ao capitalismo foi redescoberta

Sérgio Costa Fotos: Rogerio Ferrari

Mesmo muito antes da Revolução Francesa, as primeiras reflexões sistemáticas sobre o funcionamento das sociedades já haviam mostrado que a boa vida em comum requer a combinação, em proporções adequadas, de três ingredientes básicos: igualdade, liberdade e solidariedade. Pouca gente duvida, hoje, da imprescindibilidade desses três ingredientes. Apesar disso, as duras disputas em torno da definição do que significa cada um desses termos e, sobretudo, em que proporção cada um deles deve ser incorporado à vida comum marcam a história e a política desde muitos séculos.

Com a divisão da Alemanha no pós-guerra, formas radicalmente distintas de resolver a equação entre igualdade, liberdade e fraternidade passaram a conviver numa proximidade geográfica desconcertante. O Muro de Berlim materializava, precisamente, as tensões que essa proximidade comportava. Agora, 20 anos depois de seu desaparecimento, ocorrido em 9 de novembro de 1989, cabe indagar o que aconteceu com as interpretações antes opostas. Em que medida a adesão à democracia liberal mudou ou mesmo silenciou a crítica ao capitalismo? O que aconteceu desde então?

As duas Alemanhas

A República Democrática Alemã (RDA), ou Alemanha Oriental, em seus 51 anos de existência (1949-1990), apostou numa concepção substantiva de igualdade que implicava condições materiais de vida similares para todos os cidadãos. Em um sentido correlato, a liberdade era definida como liberdade da necessidade. Ou seja, ninguém deveria estar submetido a privações ou constrangimentos materiais que o impedissem de gozar a vida plenamente. A liberdade individual, como se conhece no liberalismo, não era prioridade e se encontrava, antes, submetida aos interesses coletivos. A solidariedade, por sua vez, ganhou a forma da solidariedade estatizada, de sorte que toda a vida associativa, fosse nos clubes de jovens, fosse num clube de caça, era intermediada e regulada pelo Estado.

Independentemente dos erros e acertos pessoais de seus diversos governantes e das condições políticas que cercavam sua existência (o peso do stalinismo, a Guerra Fria etc.), a RDA, ao estatizar todas as esferas da vida, minou as bases da vitalidade e da criatividade sociais. A vida comum, fora dos pouquíssimos espaços não controlados pelo Estado ou vigiados pelos “espiões informais” do governo, era um enorme teatro burocrático. O trabalho, a política, o lazer, a visita ao médico ou à escola, a vida de vizinhança ou o baile de formatura eram todos eles parte de um enredo burocrático único. A circulação de informações nesse sistema totalizante fazia, por exemplo, com que a escolha dos amigos com quem se sentava à mesa do bar no fim de semana ou com quem se compartilhava o drama de um amor malsucedido pudesse ter consequências imediatas para a obtenção de uma promoção na fábrica coletiva ou uma vaga na universidade pública para o filho.

A República Federal da Alemanha (RFA), ou Alemanha Ocidental, por sua vez, fez do desejo de superar o passado nazista sua razão de ser como Estado-nação. Assim, tanto os laços simbólicos aos quais se recorreu para criar a comunidade nacional imaginada quanto as próprias instituições do Estado de direito buscaram proteger o país de uma nova ameaça totalitária. Nesse contexto, a igualdade buscada era a igualdade no direito à liberdade, a liberdade para a vivência plena da própria diferença. Tudo que lembrasse homogeneização e supressão da liberdade individual em nome do povo ou do Estado foi evitado e condenado.

O Estado de bem-estar organizou a solidariedade distributiva no âmbito de programas de tributação dos ricos e benefícios sociais para os pobres, compensando, de alguma forma, o agravamento das desigualdades sociais que o capitalismo sempre produz. Contudo, a solidariedade social, em seu sentido amplo, isto é, como redes de cooperação e associação entre os diferentes grupos da sociedade, era atividade livre de qualquer controle e intervenção do Estado. Isso permitiu o florescimento de uma sociedade civil vibrante e dinâmica, capaz de produzir inovações e transformações sociais de enorme importância. Mencione-se, a título de exemplo, o vigoroso movimento de mulheres, o movimento ambientalista ou o desafio da heteronormalidade por meio da legitimação de formas múltiplas e diversas de sexualidade e de vida em família.

A Alemanha reunificada

Do ponto de vista do direito internacional, a reunificação das Alemanhas representou uma anexação da RDA pela RFA. A anexação foi consentida tanto pela própria RDA quanto pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética. A anexação implicou a extensão da área territorial de vigência da constituição da RFA para o território da RDA e a transformação dos estados e municípios da RDA em novos estados e municípios da RFA. A unificação levou não só a economia da RDA, baseada em fazendas coletivas pouco produtivas e plantas industriais da década de 1930, à desgraça. Também muitas biografias pessoais e familiares moldadas para atender às necessidades de uma economia e uma sociedade que já não existiam mais se viram privadas de sua razão de ser.

A perda de referências produziu reações regressivas, como a xenofobia, mas também bem-humoradas, como a Ostalgie. A palavra, que junta leste (Ost) com nostalgia (Nostalgie), nomeia a atitude autoirônica de cultuar e colecionar os produtos e as lembranças da RDA. Ainda hoje lojas descoladas de Berlin-Mitte oferecem esses ícones do passado a preço de ouro como parte de um estilo que tem o seu charme.

A anexação da RDA pela RFA, contudo, não levou as ideias de igualdade, liberdade e solidariedade vigentes na RFA a se estender, imediatamente, por todo o território unificado. Tampouco implica que tenham se mantido inalteradas desde então. Na verdade, essas concepções são, ainda hoje, objeto de negociações permanentes no âmbito da política e do cotidiano no país, refletindo, naturalmente, mudanças observadas fora da Alemanha, como a intensificação da globalização ou a integração europeia.

Menciono, a seguir, alguns temas discutidos com enorme interesse na Alemanha hoje, que exemplificam como distintas interpretações da vida comum se apresentam e se confrontam publicamente.

Os grandes temas da agenda hoje

A crise financeira dos dois últimos anos levou à necessidade de controle estatal sobre a economia para o centro da agenda política na Alemanha. A euforia com os poderes autorreguladores do capitalismo que se seguiu à queda do Muro apresenta, no momento, um claro retrocesso. Há consenso entre as diferentes forças políticas de que é necessário que o Estado controle a economia. As divergências articulam-se em torno do quanto e do como.

Os argumentos usados para a defesa de formas mais ou menos estritas de controle nos interessam aqui. Eles questionam o sentido mesmo da produção e do comércio de mercadorias e serviços, denunciando como operadores financeiros irresponsáveis teriam transformado o mercado financeiro internacional num cassino de poucos milionários e economias inteiras falidas. Seria necessário, por isso, que o Estado reativasse seus controles tributando, redistribuindo e fazendo valer o sentido social da produção de riquezas.

O que essas discussões parecem mostrar é que, 20 anos depois da queda do Muro, a crítica ao capitalismo continua viva, ou, quem sabe seria mais justo afirmar, foi redescoberta. A novidade é seu alcance: a crítica não visa mais à superação do capitalismo, mas a seu controle e à sua subordinação aos interesses da sociedade.

Nesse debate, saltam aos olhos os confrontos entre distintas concepções de igualdade. Para os liberais, como aqueles representados pelo partido que agora está assumindo o poder ao lado dos democratas cristãos, os controles estatais sobre a economia devem ser mínimos. Afinal, só mesmo o mercado livre de controle e amarras poderia garantir a plena vigência da igualdade de oportunidades e do princípio meritocrático. O partido das esquerdas, derivado em parte do partido socialista único da RDA, defende uma intervenção muito mais ampla do Estado sobre a economia. O sentido é controlar a especulação financeira e promover uma ampla redistribuição de sorte a garantir o igual direito a uma vida digna, entendida como o suprimento pelo Estado das necessidades fundamentais de todos, independentemente de méritos pessoais.

Privacidade

Outro tema discutido com fervor atualmente é o acesso do Estado a informações pessoais, como a troca de e-mails ou as movimentações bancárias. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, a pressão pelo controle estatal da privacidade cresceu enormemente. A disputa dá-se em torno de diferentes formas de engenharia social e, indiretamente, diferentes concepções de liberdade. Enquanto, por exemplo, os democratas cristãos mais conservadores argumentam que a renúncia a parte da proteção da privacidade significa mais segurança contra o terrorismo e, por decorrência, mais liberdade, verdes e liberais afirmam exatamente o contrário. Para esses, só a proteção à privacidade garante segurança e liberdade. Conforme entendem, a liberdade individual supõe o conhecimento e o consentimento pessoal de cada informação privada a que o Estado tem acesso. Ademais, acreditam que o armazenamento de informações pessoais, mesmo que seja feito pelo Estado, faz crescer o risco de mau uso das informações, aumentando a insegurança individual.

Nas discussões em torno das políticas de imigração, questão igualmente central na agenda política da Alemanha hoje, são sobretudo os sentidos da solidariedade que estão em debate.

Imigração

A RDA e a RFA apresentam histórias de imigração bastante distintas. Na RDA, os imigrantes não passaram de um número reduzido e eram originários fundamentalmente de países socialistas como Polônia, Moçambique e Vietnã. Eram tratados como trabalhadores temporários que não deviam constituir família no país. Imigrantes que ficassem grávidas podiam escolher entre abortar ou retornar a seu país de origem.

Na RFA, os imigrantes também chegaram como trabalhadores convidados, mas logo conquistaram o direito de trazer suas famílias. Independentemente de viverem no lado leste ou oeste da Alemanha, imigrantes e seus descendentes, apesar de constituírem quase 10% da população e já viverem, em alguns casos, há mais de 40 anos no país, não são vistos como membros da nação. Jovens de extrema direita declararam partes do território da antiga RDA como áreas livres de estrangeiros, usando da agressão e da perseguição para garantir seus objetivos. Outros setores conservadores entendem que imigrantes vivem em sociedades paralelas e que, portanto, não deveriam ser beneficiários da solidariedade institucional promovida pelo Estado.

A questão é complexa, na medida em que faltam, no debate, soluções que gerem ao mesmo tempo possibilidades e laços de pertença para os imigrantes sem assimilá-los na comunidade nacional imaginada. Além disso, as muitas posições envolvidas fazem embaralhar os campos progressistas e conservadores, tornando o debate político difícil e impenetrável.

Assim, por exemplo, muitos grupos gays e feministas, ao denunciar o sexismo ou a homofobia, sobretudo de imigrantes de origem turca ou árabe, contribuem para a estigmatização de minorias étnicas. Os grupos estigmatizados, por sua vez, contra-atacam valendo-se de ainda mais sexismo e mais homofobia. Desse modo, legitimam as reservas dos grupos conservadores, realimentando o ciclo da rejeição mútua.

Muitas Alemanhas

As duas Alemanhas, enquanto existiram, representaram, emblematicamente, dois modelos distintos de interpretar e combinar igualdade, liberdade e solidariedade. De alguma forma, as posições representadas pelas duas Alemanhas estão presentes ainda hoje no debate político. Não obstante, concorrem com uma variedade de outras posições e possibilidades. Desse ponto de vista, a Alemanha são muitas. Há uma Alemanha social-democrata, uma Alemanha neoliberal, uma Alemanha de muçulmanas que falam várias línguas, mas que nunca mostraram seu rosto em público. Não há mais, como havia há 20 anos, barreiras físicas dividindo essas muitas Alemanhas. Parece, contudo, que elas nunca foram tão alheias umas às outras.

Revista Cult

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